quinta-feira, março 16, 2006

O Olhar de Arminda (III)

A princípio, não deu importância; estranhou, apenas. Até que uma noite, deitada na sua cama, no sótão, se lembrou de uma conversa ouvida, anos atrás, entre a sua mãe – que Deus a tenha – e a vizinha Ofélia:

- Eu devia ter percebido. – dizia a vizinha. – O que vossemecê quer…
- E não sabia que a falta das regras é sinal de que podia estar prenha?
- Soubesse eu…
- E agora mulher?
- A ver se ainda vou a tempo do desmancho.

Instintivamente, levou as mãos à barriga. E se eu… Afastou o pensamento com um movimento da mão, como se estivesse a enxotar um mosquito.
À medida que os dias passavam, não conseguia pensar noutra coisa. Aquele frio na barriga que tinha sentido nessa noite, dias atrás, teimava em não passar. De alguma maneira, sabia que estava grávida.
No domingo seguinte, contou a Joaquim.

- Rapariga, rapariga… o que me contas tu. Logo hoje que tinha uma noticia para te dar… como as coisas são. – Segurou na mão dela. – É que recebi na sexta-feira guia de marcha para Lisboa, vou embarcar daqui a 10 dias para África, parece que há por lá guerra.
O raciocínio rápido era uma das características de que Joaquim mais se orgulhava de possuir. A lábia, era outra.
- Mas vais ver que isso não é nada, que o sangue ainda te vem.

Francelina não tinha tirado os seus olhos dos dele. Não ficou a saber mais, no entanto, ele tinha-os sem vida; cinzentos, frios e duros como aço. Não lhe viu emoção.
Mais frio na barriga.
Depois de lhe dar um beijo na face, Joaquim retirou a carteira de um bolso interior do casaco, abriu-a e procurou algo. Entregou-lhe um pequeno quadrado de papel, recortado em pequenas ondas. De um lado, umas letras escritas à mão - Francelina não sabia ler -, do outro, cercado por uma moldura branca, o rosto dele. Era uma foto.
Joaquim estava muito bem penteado, tinha aquele sorriso magnífico dele. Parecia olhar para o infinito. Ali, na foto, o olhar era diferente: expressivo, vivo.

- Para que não te esqueças de mim.

Após juras de amor eterno e de um regresso em breve, Joaquim desculpou-se com a trouxa para fazer e foi embora.
Francelina nada disse. Limitou-se a vê-lo afastar-se.

Esperou até ao mês seguinte, talvez tivesse tido o período e apenas não se lembrava disso. Um dia, deixou de se tentar enganar a si própria e contou ao irmão.

Depois de muito drama e lágrimas, o irmão procurou Joaquim. Com a foto, foi ao quartel.

- Olha quem é ele! – Exclamou o oficial de dia. – Você ‘tá tramado, amigo. Esse daí é um grande artista. Deixe-me adivinhar, deve-lhe dinheiro… não é o primeiro, deixe. Foi passado à Reserva compulsivamente há mais de seis meses… um aldrabão, roubava munição para vender em Espanha. E veja lá que parece que nem pode voltar para Lisboa, que se o apanham por lá lhe limpam o sebo.

Após aquilo, o irmão foi da opinião que ela devia abortar. Francelina disse que sim mas, depois, mudou de ideias. Ia voltar para a aldeia.

- Estás louca… matavas o pai de vergonha… impossível… o falatório… eu não deixo…
- Tu vais ajudar-me, irmão. A criança vai nascer aqui e vai viver em tua casa até fazer um ano. Nessa altura, vou enviuvar e regressar então a casa. Ninguém vai saber da mentira.

E assim foi. Mandou-se para a aldeia notícia do casamento – coisa simples, sem direito a festa que os tempos eram difíceis -, da gravidez – uma menina linda e saudável - e do infeliz acidente que vitimou o pobre rapaz, tão novo…
Feliz coincidência, foi o pai a propor que Francelina voltasse.

No regresso a Chaves, após deixar a irmã e a sobrinha, o irmão sentiu remorsos. Não tinha sido capaz de dizer à irmã o quanto se orgulhava dela.
Tinha levado, pouco tempo antes, uma miúda frágil e assustada e trazido, agora, uma mulher forte e determinada.

27 comentários:

Isa disse...

grande cabrão esse joaquim!!!

Sofia disse...

:)
todas as mulheres são fortes Rui. Ainda bem que o descreves tão bem.
Continua belo o conto....

bjs

Anónimo disse...

Tens um dom com as palavras isso é certo...essa é mais uma entre tantas histórias de antigamente que infelizmente hoje ainda acontecem. A mulher é um "bicho" apaixonado e cheio de amor...
E quem nunca se deixou levar por palavras, por amor, por falsas esperanças...
Sublimes estes teus textos!
Beijos

isabel disse...

Já estou presa há estória.
Quero saber mais.
Está bonita, sensível e tão bem escrita.

Um beijo

mixtu disse...

Eu passo em frente sobre a tua escrita sob pena de estarmos a falar do que tu sabes,

As mulheres do campo sempre foram rijas, preconceitos sempre houve, artimanhas para lutar contra eles...também, esse gajo de Lisboa é que me está aqui atravessado na garganta;)
cumprimentos monárquicos,

Sara MM disse...

ora pois......
...qual é o sexo fraco!?!?!?!??!

bem me parecia!!!

Bjsss

Martini_Lady disse...

Mais um belo conto :-)

isabel disse...

Boas noites!
Beijito

Dani disse...

Uma mulher de armas, esta Francelina...

th disse...

VIDA REAL! MULHERES DE FIBRA!
FELIZMENTE QUE AS HÁ POR AÍ, CADA VEZ MAIS.
PARABENS AOS OLHOS QUE AS SABEM VER...th

CS disse...

Sempre na peugada de Arminda...

Bom fim de semana!

Anónimo disse...

Querem ver que o Laureano tem uma identidade falsa, e que o Joaquim é...
Venha mais

Um abraço

Anónimo disse...

Se fosse um livro, lia-o num piscar de olhos, de tão cativante!

Tens sistema de envio de sms, para avisar quando houver mais um capítulo para ler?

Vanda disse...

Estou a gostar, Rui.

Fico a pensar no proximo Olhar...

Quero mais :)

Beijinhos

Van

rafaela disse...

só li a III parte, mas tocou-me, carregada de emoção, uma emoção tão miudinha que quase não se dá por ela, mas que está lá, em todo o lado.

muito bom.

bom dia =)

Alberto Oliveira disse...

... já naquele tempo se dava a "volta ao assunto com uma perna às costas". Havia que não passar pela vergonha de...

Um retrato da época muito interessante e para continuar a acompanhar.

Vanda disse...

Tempos dificeis estes, os meus.

Nem sei se as palavras que escrevo não são a minha tábua de salvação, a expiação da angustia, todos os dias renovada.

Mas hei-de chegar a terra, dos naufragos nao reza a história :)

Obrigada pela visita e pelas tuas historias :)

Vanda disse...

Um dia saberei a resposta...se o ajudei a ser um homem mais feliz, mais estável, com menos perdas e danos...

Só o tempo e a persistencia dele nos dirão como vai acabar toda esta luta contra as ondas...

...e tal como eu espero pelo IV Olhar, tb tu teras que esperar pela...
sabemos lá nós ;)

beijinho de boa noite!

Fátima Santos disse...

gostei do que li - da forma e da temática. tem um bom fds

segurademim disse...

o que realmente conta é que a criança nasceu saudável, a mãe é inteligente terão as duas um bom prognóstico de vida!
protegidas e acarinhadas, a familia fará o resto...

beijo, bom fim-de-semana :)

hala_kazam disse...

"tinha levado,pouco tempo antes,uma miúda frágil e assustada e trazido,agora,uma mulher forte e determinada"

adorei...
é sempre bom lembrar que sao os momentos dificeis que nos moldam...e ajudam num futuro

*beijos*

Patrícia

Margarida Atheling disse...

Deve haver tantas Armindas por aí... :)

Beijinhos!

Vanda disse...

Sabes o que eu sinto que impulsiona a audácia? o medo virado do avesso. O medo absoluto.

E em cada mulher forte ha uma menina que ja foi fragil.


Esquece a chuva e bom domingo!

Vilma disse...

Rui: tenho um desafio no meu blogue. Lembrei-me de ti! Tens um talento especial pra escrever por isso se quiseres, participa! :))))

919 disse...

Isto de enganar e ser enganado, tem que se lhe diga!... Os outros enganam-nos, ou nós enganamo-nos?...

isabel disse...

Um dia muito feliz.

Beijinhos

Lagoa_Azul disse...

Epá Rui , até estou cansada, uma verdadeira maratona de leituras contigo...
E olha que já vinha cansada de estar nas danças de salão, lolll

Deixo-te beijos com carinho, e um bom fds.