segunda-feira, março 06, 2006

O Baloiço (fim)

José Miguel Antunes
Advogado

Exma. Sra.
Patrícia Fonseca Costa
Rua xxxxxxxxxxxxx, 62 2º
1500-256 Lisboa

Registado com AR

Porto, 2 Fevereiro 2006

Assunto: Testamento.

Exma. Sra.,

Venho por este meio informá-la que seu pai, e meu cliente, Artur Fonseca, me encarregou em vida de ficar fiel depositário do seu testamento.
Em virtude do seu falecimento, no passado dia 31 de Janeiro, compete-me contactá-la, na qualidade de única herdeira, para se proceder à abertura do referido testamento e, assim, dar cumprimento às suas últimas vontades. Pelo que agradecia me contactasse pelo telefone abaixo indicado.

Os meus respeitosos cumprimentos.

* * *

Primeiro, o choque; saber assim da morte do pai. Depois, a consciência de que, ao fim de 9 anos a ignorar a sua existência, outra coisa não seria de esperar. Por fim, a emoção, que não conseguiu evitar.
O chão pareceu fugir-lhe debaixo dos pés. Sentia o quê, afinal? Não tinha perdoado ao pai. As razões da sua saída de casa estavam presentes, ainda. Tinha seguido com a sua vida e deixado o passado para trás. Bem para trás. Não era, por isso, suposto não sentir nada de especial?
Mas sentia algo. Foi invadida por um sentimento de terror: e se tivesse sido injusta? Sentou-se e chorou, chorou muito.

O advogado acedeu a recebê-la no sábado. Contou-lhe como o seu pai o tinha chamado, mais um notário, ao hospital para lhe ditar o seu testamento. Que, apesar de lhe ter explicado que isso não seria necessário uma vez apenas tinha uma herdeira, o pai tinha feito questão em o fazer.
Contou-lhe também da carta que ele havia ditado para lhe ser entregue, uma vez que já não conseguia escrever.

Rodou a chave de casa e entreabriu a porta. Um aroma característico invadiu-lhe o olfacto. Tinha-se esquecido dele; era o odor particular da sua casa.
Abriu todas as janelas para deixar entrar o sol ameno daquela manhã de domingo. Poucas alterações haviam desde o dia em que tinha saído de casa.
Reparou nas várias molduras com fotos suas, do marido e da filha, tiradas ao longe. Ficou confusa, não percebia aquilo. Lembrou-se então do texto do testamento: vais encontrar algumas respostas para as perguntas que te assaltarem.
Subiu ao primeiro andar. Em frente às escadas, o quarto. Na porta, continuava colado o sinal de trânsito: sentido proibido. Entrou. A única diferença em relação à memória que guardava dele, era a cama estar feita. Em cima dela, 3 caixas de sapatos com envelopes por abrir.
Retirou um deles, a meio do envelope, escrito em letras garrafais pela sua própria mão leu DEVOLVER AO REMETENTE. Tinha escrito aquelas palavras centenas de vezes ao longo dos anos. Uma lágrima rolou-lhe pela face.

Sentada à mesa da cozinha, viu o último raio de sol desaparecer, escondido pela moradia vizinha. Fechou os olhos.

Tentava procurar um sinal no facto de fazer, precisamente naquele dia, 9 anos em que tinha atravessado aquela cozinha de olhos cerrados pela última vez. Apenas uma daquelas ironias em que a sua vida parecia ser fértil?

Na mão tinha agora o envelope com a última carta do pai, ditada ao advogado. Ia abri-lo quando um grito a fez olhar para o jardim.
No baloiço, empurrada pelo pai, Carolina gritava de felicidade. – Mais alto papá, mais alto…

Ficou a olhar para ela aquilo que lhe pareceu serem horas infinitas.

Fim

Nota: Este texto foi inspirado por duas personagens a que o Clint Eastwood deu vida no cinema: Luther Whitney (Absolute Power) e Frankie Dunn (Million Dollar Baby).

24 comentários:

Sofia disse...

Rui,
arrepiei-me só de te ler.... 9 anos é muito tempo, demais para nao se perdoar a alguem. E o tempo é preciso, para se viver em Paz e Harmonia.
A tua história é fantastica e faz-me pensar como a familia é importante, como é importante ter-se uma familia.
Vou lutar por ter uma,uma familia feliz e sem desencontros.
Beijinhos

Anónimo disse...

A família... Por mto k se diga é smp o mais importante, o suporte...
Mas cada um é livre de escolher e dorme na cama que faz...
Sorrisos com beijos. Está linda

Margarida Atheling disse...

Ai, Rui!
Fiquei com o coração apertado!

Anónimo disse...

Simplesmente...deslumbrante!! Um beijo enorme e votos de uma boa semana

Anónimo disse...

Eu sabia que o desfecho não podia ser positivo...ou pelo menos com um happy ending há lá hollywood. Há que aprender com os erros do passado, há que perceber que as coisas que mais amamos são as mais dificies de perder...e nunca se perdem na verdade! Há que saber perdoar, os outros e a nós mesmos e procurar sempre o entendimento...pois o pior mal que fazemos é a nós mesmos e não aos outros! Beijos e boa semana ;)

Anónimo disse...

Um Abraço.

M.M. disse...

Gostei imenso de ler esta tua história que pode servir de lição de vida a muita gente.
Parabéns, está de facto excelente.

P.S. E o luxo de ler tudo de uma assentada, sem ter de esperar pelo próximo "capítulo", huh? ;-)

CS disse...

Não conheço a primeira personagem, mas a segunda... gostei muito.

Podia dizer mais coisas, mas há uma, sobretudo, que não quero passar sem dizer: apreciei que, contrariando o mundo, soubesses que "personagem" é um substantivo feminino...

Meia Lua disse...

Muitas vezes na vida, insistimos em não perdoar e acabamos por não viver. Como no teu texto tão cheio de sentimentos e verdades, deixa-se de viver e fazer parte da vida de alguém que amamos por não perdoarmos ou por não nos perdoarmos... Triste... muito triste.
Como sempre estás de parabéns... tocas o coração com as tuas palavras. Beijinho :*

Ana P. disse...

Rui, nem comento. É muito comovente pah

Beijitu

"Snirsga"

919 disse...

Rui, o texto todo fazia esperar um final triste, mas nunca me passou pela cabeça que a Patrícia estava a ler cartas, que antes (presumo) tenha recusado! Parece que o problema dela não é perdoar o pai mas a ela própria!...

Dani disse...

Terão os problemas sido assim tão graves que não merececem perdão?

Sara MM disse...

...

manhã disse...

Este texto fez-me pensar nas múltiplas relações que pode haver entre um pai e um filho,uma mãe e um filho, e que para além de sermos todos filhos somos também pessoas com uma vida a construir e que para o fazer muitas vezes tem mesmo que ser assim, com dor,quando não pode ser de outro modo, não podemos é anular a esperança e as expectativas que temos.Bom texto. Parabéns!

Anónimo disse...

Tal como o/a lélé, tb n me tinha apercebido q as cartas tinham sido recusadas por ela... touché, lélé! O pior mm é qdo n nos podemos perdoar a nós próprios... ele, pelo contrário, ficou perdoado pela demonstração de amor incondicional e dedicação demonstrada ao longo dos anos.

LD

Marta disse...

Tenho estado á espera do fim do texto para comentar, portanto cá vai... :)

A primeira coisa em que pensei quando li a 3ª parte deste conto até ao fim foi no Frankie Dunn, um dos personagens que citas! Foi dos personagens que mais me marcou até hoje, pelo seu carácter misterioso, mas ao mesmo tempo tão doce e sincero...

Como já aqui disse várias vezes - e na minha qualidade de leiga no que toca à Literatura - considero a tua escrita muito bem conseguida. Não só consegues cativar o leitor (de forma que me obrigas a cá vir dar uma espreitadela todos os dias, como também falas de assuntos tocantes e - neste caso - arrepiantes!

Adorei o final... Acho o conto de uma sensibilidade fantástica! Muitos parabéns!!

Vanda disse...

Já disseram tudo, Rui :)

quero mais!!! Pode ser??? :)

Alberto Oliveira disse...

... sempre me quis parecer que (e já o escrevi) que devias escrever uns argumentos para cinema; este será porventura o primeiro passo, tendo por referência o Clint...

A sério, a sério, gostei muito.

isabel disse...

Gostei, gostei, gostei muito.

Os teus textos têm o condão de me deixar emocionada.
Enquanto o lia ouvia rodrigo leão (cinema) e que bem que me soube o conjunto.
A familia é a nossa base, o suporte, o porto de abrigo mas, cada um toma o rumo que quer e que tem que tomar.

um beijo muito grande e um dia feliz

segurademim disse...

Interrogo-me, como é que se consegue continuar a vida de cabeça erguida, quando a morte ultrapassa e fecha a possibilidade de se resolverem os problemas que deveriam ser resolvidos na altura própria...

excelente post, como sempre!

beijo ;)

Anónimo disse...

Só para dizer que correu bem.:)

Rui para quando um post, que envolva no minimo um taxista que passa ali pertinho da catedral, que fica de frente para o Colombo.

Rui disse...

Correu muito bem, mesmo.

Este taxista sente-se intimidado pelo Zé Manel. Mas são bons amigos... quem sabe um dia.

a_mais_fofa disse...

Às vezes é tarde demais...
Adorei esta história.. que acaba por ser tão real...
Mais uma vez, Parabéns!

butterfly disse...

Bem,uma história incrivel...e sempre com um final que nos faz pensar...é que por vezes é mesmo tarde demais e só nessa altura tomamos consciência disso e então pensamos se realmente fizemos a escolha certa...gostei muito!!
Beijinhos!!