sexta-feira, fevereiro 24, 2006

O Baloiço (parte 2)

Braga, 15 de Setembro 1997

Patrícia,

Espero que tenhas tido o melhor aniversário possível. Na hora exacta do teu nascimento fiz um brinde à tua saúde – com sumo de laranja, que não toco em álcool há quase quatro meses.
Era uma novidade que tinha para te dar, caso tivesses voltado para casa: “alistei-me” nos Alcoólicos Anónimos e estou determinado a conseguir recuperar – sinto a mesma determinação que me levou a alistar nos Comandos em tempo de guerra. Não tem sido fácil, como deves calcular, mas mais pormenores sobre isso gostava de te os dar em pessoa.

Não me leves a mal a insistência, mas queria muito falar contigo. Se não for antes, considera, pelo menos, a hipótese de cá vires pelo Natal.

O teu pai.

[…]

Braga, 22 Dezembro 1997

Filha,

Continuo sem notícias tuas e, por isso, já não tenho esperança que cá venhas este Natal. Se mudares de ideias, ia ficar muito contente.

Feliz Natal. Tudo de bom para ti. Que 1998 seja um ano bom para todos nós, bem precisamos. Que seja um novo inicio.

O teu pai.

PS – Gosto do teu novo corte de cabelo. Estás muito bonita.

* * *

Lembrava-se, com inusitado detalhe, de todos os acontecimentos daquele ano de 1997. Tinham-na marcado profundamente. Para o melhor e para o pior, transformara-se numa pessoa diferente.
Ao longo dos anos tinha sido sua convicção de que se tornara numa pessoa mais forte, mais determinada. Numa palavra, melhor. Tinha também perfeita consciência do preço que tinha pago: tornara-se mais fria, mais distante, mais inacessível.
Nada disso tinha importado muito. O que tinha que ser feito, foi feito. Sem dó, nem piedade. Sem nunca olhar para trás, sem nunca pensar e se

Agora, ali sentada, a ler a correspondência do pai, teve, pela primeira vez, dúvidas. Hesitava. Teria mesmo feito bem quando criou em seu redor uma barreira intransponível para as coisas do passado? Teria, de facto, se tornado numa pessoa melhor?
Mas eu dei-lhe várias oportunidades, e ele nunca as quis – soube? – aproveitar… Os acontecimentos daquele dia de Fevereiro, tinham sido a gota de água final num copo já muito cheio. É claro que fiz bem, pensou alto, enquanto se assoava.
Reparou que o próximo envelope tinha o carimbo de dia 31 de Janeiro.

15 comentários:

919 disse...

Continuo a ler com muita emoção esta história... Ela começa com a data de 1997, que foi o ano em que o meu pai disse adeus... pequena coincidencia...

Eli disse...

Li os dois posts de uma forma diagonal. Apercebi-me que tens história!

Aqui a ler deve soar mais fácil do que deve ser na realidade...

:)

Obrigada pela passagem no meu blog e por teres parado lá.

:)

Dani disse...

E o abrir de olhos?

Margarida Atheling disse...

Temos sempre dúvidas...

Escreve o resto!!!

Alberto Oliveira disse...

Patrícia começa a interrogar-se; há decisões que não são fáceis de tomar mas difíceis de assumir...

Anónimo disse...

Bem... acho que vou guardar o comentário para o próximo episódio...
Não sei se são os olhos, os envelopes, o passado ou o recalcado... mas alguma coisa se vai abrindo...

ivamarle disse...

sentimentos pungentes se denotam nestas palavras tão bem escritas. parabéns pelo blog, e obrigada pela força.

th disse...

Rui... este Mundo é louco.
O meu conto na Sebenta ainda não terminou.
Tenho um amigo que é daltónico e comprou uma tela e tintas e quer ser pintor...
e eu fiz 73 anos...áh áh áh,
th

Anónimo disse...

Continuo a achar que não vale a pena olhar para trás...

segurademim disse...

... criam-se barreiras, metemo-nos dentro de espartilhos, fortalezas! depois quando as dúvidas assaltam, ou se está a tempo de descristalizar e viver com o que a vida nos oferece - o bom e o mau - em paz!
ou não, e se não, então meu amigo é a depressão, os remorsos a culpabilização! somos tramados connosco próprios...

Beijo, bom domingo de carnaval ;)

Sara MM disse...

o mais dificil (para todos?) é precisamente conseguirmos o equilibrio entre sermos fortes e determinados, não sendo frios nem distantes.
Porque sermos inacessíveis pode deixar marcas (a todos?) tão grandes como as de sermos demasiado...

cada um tem de fazer a sua aposta, né?
está-me cá a parecer que a Patrícia jogaria de outro modo se pudesse !?
Se pudesse... mas se a vida o tivesse permitido... o "pudesse" nunca dependeria só dela, e aí é que "a porca torce o rabo"... e com álcool "ao barulho"... não é fácil!

(já chega né?)
BJs

Anónimo disse...

As decisões são sempre dificeis, muito mais aqueles que mexem com o coração! As vezes pensamos dar o passo mais correcto, mas temos que ter sempre em mente que isso terá uma implicação directa na vida de outras pessoas. Bom texto!
Beijos e boa semana.

Fortunata Godinho disse...

Don Rui, Como estamos?
Quando coloquei um Link para o teu Blog no meu, ponderei profundamente no título que deveria dar-lhe...
Não me enganarei, estou certa.

Legionaria disse...

Rui, ja sabes o que sinto em rerlaçao a estes teus textos..beijo

a_mais_fofa disse...

Muito bom... (para variar)
*a_mais_fofa*