segunda-feira, novembro 14, 2005

Luka

O meu nome é Luka. Vivia no segundo andar. Por cima de ti. Nunca soube se apenas me vias passar, ou se alguma vez reparaste em mim.

Certamente deves ter ouvido por mais de uma vez o barulho que vinha de minha casa. Aqueles apartamentos não eram famosos pelo isolamento sonoro, pois não?
Aquele som característico de discussão, os gritos impacientes, as palavras não ditas mas vociferadas, a ira, o ódio. Muitas vezes pensava em como seriam esses sons depois de filtrados pelas paredes, em como chegariam aos teus ouvidos; ao teu cérebro, que entendimento farias deles, se é que fazias algum.
Muitas vezes eram sons de luta. Devem ter-te feito pensar, por certo. Não imaginas as vezes que desejei que te fizessem actuar, subir aquelas escadas, arrombar a porta e salvar-me. Ingenuidade minha, eu sei, mas pouco mais tinha que a minha ingenuidade, na altura.

Numa das piores fases da minha vida, há muitos anos, escrevi-te. Era um misto de explicação e desabafo. Também era um lamento. Sempre escrevi muito porque sempre falei pouco. Guardava tudo para mim. O papel era (ainda é) o meu fiel confidente.
Nunca tive coragem de te fazer chegar o texto, claro, mas ajudou-me muito na altura. Era uma coisa simples, apenas os sentimentos de um jovem em relação à sua vida; um pouco também em relação a alguém que não conhecia mas de quem gostava. Tu.

Sim, gostava de ti. À minha maneira. Nunca falámos, nem sei se alguma vez nos cruzámos na escada. Não me lembro sequer de alguma vez o teu olhar ter cruzado o meu, mas eu gostava de ti. Observava-te ao longe e pensava em como eras bonita. (Se tivesse sentimentos dentro de mim para além de pena e tristeza, diria que te amava).
Na minha imaginação, a partir de certa altura, substitui o papel por ti como minha confidente. Passou a ser a ti que eu contava as minhas dúvidas, as minhas incapacidades, os meus medos, as minhas falhas… os problemas que tinha em casa.
A primeira vez que te escrevi, percebo-o agora, foi uma tentativa de explicação daquilo que tu ouvias, e da ideia que isso te poderia fazer ter em relação a mim. Não queria que tivesses má opinião sobre mim, sobre a minha família. É que tinha uma estúpida esperança de que pudéssemos vir a ser amigos, que pudesses passar de confidente imaginada a confidente materializada. Foi a última esperança que tive durante muitos anos.

Foi uma fase muito má da minha vida. Muitos problemas em casa, muitos problemas comigo próprio. Anulei-me, reduzi-me a pouco mais que o estritamente necessário para sobreviver. Fiz tudo isso inconscientemente. Pura e simplesmente convenci-me de que era assim que as coisas tinham que ser.
Esse convencimento da inevitabilidade dos maus-tratos, da falta de amor, do não ser desejado, fizeram com que interiorizasse que nada estava errado comigo ou com a minha vida e comecei a negar a evidência. Desde logo a mim próprio.
Hoje, quase me custa a crer tudo isto. Vê bem que desenvolvi um pensamento unidimensional e convergente em que nada era questionado, tudo era aceite porque sim. Convenci-me mesmo de que o melhor que me podia acontecer era ficar sozinho para o resto da vida, de que nunca ninguém ia querer saber de mim que não fosse para me magoar. Para sofrer, antes estar sozinho. Isolei-me, fechei-me dentro de mim.

Demorei muitos anos a perceber o isolamento em que vivia, o automatismo, a rotina em que estava transformada a minha vida e, acima de tudo, a perceber que não tinha de ser assim, que havia mais vida para ser vivida, que não tinha que me limitar a sobreviver, a chegar ao dia seguinte. A perder o medo de voltar a sofrer, que em grande medida acho que era isso.
Quando percebi que conseguia voltar a lidar com o sofrimento, com a perda, acho que voltei a viver - sim, estou convencido que não se vive sem sofrimento e que temos que aprender a lidar com isso.
É claro que todos esses anos marcam uma pessoa. Eu hoje sou também quem fui nesses anos em que fomos vizinhos. Sendo diferente, tenho esses anos bem presentes, fazem parte de mim.

(Há uma descoberta minha que é muito recente e que me tem dado que pensar: se, apesar de tudo, não foi esse isolamento, esse fechar para o mundo que me salvou, que me permitiu chegar aqui, hoje. Mas isso fica para outra altura).

Entretanto, voltei a escrever muito. Nunca mais tinha era escrito para ti. Lembrei-me hoje de o fazer. Porquê, não sei, ou melhor, talvez por ter percebido que da última vez em que o fiz, terminava dizendo-te para não me perguntares como eu estava; hoje escrevo-te para te dizer que já não tenho medo dessa pergunta, nem da resposta… já não preciso mentir!
Hoje consigo falar do que ficou para trás, do que me aconteceu, de quem eu era. Mas também só se for preciso, só a ti. Interessa-me muito mais o futuro, o que falta viver, não o que foi (sobre)vivido.
Hoje já não quero estar sozinho. Apesar de não ter nenhuma relação de momento, sou relativamente feliz, acima de tudo, tenho esperança, sabes? Foi essa a minha maior conquista: recuperar a esperança. Agora tenho razões para sair da cama todas as manhãs, tenho uma ocupação, tenho vontade de ser feliz.

Espero que esteja tudo bem contigo. Let me ask you: how are you?

PS – Um óbvio agradecimento à Suzanne Vega pela música… por todas as músicas.

27 comentários:

LUA DE LOBOS disse...

como eu gosto de te ler...

Anónimo disse...

Bonito, diferente, profundo, "filosófico"...... Sem mais nd a acrescentar pk axei fantástico...
Sorrisos e beijinhos
Boa semana
=P

Anónimo disse...

Soou-me tão familiar...
E sim a música é linda...

Um beijo da menina das asas de borboleta :)

Ps já viste que a despedida é maior que o comentário lol

Anónimo disse...

... simplesmente ADOREI!
Beijinhos da Jaqui :-)

Anónimo disse...

Um texto profundo muito bem concebido...excelente! Beijinhos :)

Anónimo disse...

Agradecimento à Suzanne Vega e à Vodafone, se faz favor ("how are you?")
eheheeehehehehehe

segurademim disse...

Muito bem!!! bem desenvolvido, bem fundamentado, há períodos na vida assim... com relações vazias, vãs, maltratantes, em que embora se esteja acompanhado, vive-se na maior incompreensão, solidão e abandono!
Depois, chega o tal dia, em que pequenos nadas, como uma música, um livro, uma paisagem, um amigo imaginado, podem ser a ancora, a força necessária para cortar, romper o acomodamento, devolver a vida e os dias bonitos...

Beijo

Anónimo disse...

;)))))

Ruizinho!!!!! Que lindo q está! Fizeste-me recordar a razão que muitas vezes me leva a mim mesma a escrever. Revi-me completamente na personagem.

Beijocas

Margarida Atheling disse...

Está muito bom!
Já não é novidade!

Anónimo disse...

Gosto muio de Susanas :)
Muito bom.
Um abraço

Anónimo disse...

"Magoei os pés no chão onde nasci.
Cilícios de raivosa hostilidade
Abriram golpes na fragilidade
De criatura
Que não pude deixar de ser um dia.
Com lágrimas de pasmo e de amargura
Paguei à terra o pão que lhe pedia.


Comprei a consciência de que sou
Homem de trocas com a natureza.
Fera sentada à mesa
Depois de ter escoado o coração
Na incerteza
De comer o suor que semeou,
Varejou,
E, dobrada de lírica tristeza,
Carregou."

Começo, Miguel Torga


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Que Bem Cheira A Maresia disse...

Olá Rui;

Obrigada pela tua visita à nossa casa :)

Também gostei muito de conhecer a tua e deliciei-me com este texto.

Beijoka da Lina (mar revolto)

Marta disse...

como sempre...gostei de te ler...gostei desta personagem enredada em musica, sentimentos de procura de protecção, solidão...
bjs***

butterfly disse...

Olá!
Obrigada pela tua visita ao meu cantinho e pelas palavaras deixadas... És sempre bem-vindo!
Gostei do teu blog...gostei do teu texto...muito bonito!
Beijinhos!!

Caracolinha disse...

Olá Rui, quero, em primeiro lugar dar-te os parabéns pelo blog e em segundo agradecer muito a visita que fizeste lá na casquinha.

Volta sempre. A minha casca é a vossa casa ;)

Anónimo disse...

E sempre bom encontrar "caras" novas no meu cantinho tão pessoal!Não conhecia o teu espaço mas pelo que pude reprar temos algumas coisas em comum...é sempre bom encontrar palavras tão boas, e pensamentos tão especiais como os que aqui mostras.
Obrigada pela visita e volta sempre!

Sara MM disse...

Fiquei sem palavras... (e isso é raro!) Foi bom ler... aliás, foi precisamente uma das primeiras letras que me dei ao trabalho de perceber tudinho...
BJs

Sara MM disse...

... mas assim escrito talvez esteja ainda melhor!

segurademim disse...

... de facto já se esgotaram as castanhas, não vai uma limonada?
Beijo

virilão disse...

conheço um ou dois Lukas, e outros há por aí... e se falarmos de 2.ºs andares...já sabes, aparece.
Aquele abraço

Sukie disse...

I`m fine..almost great!

Vampiria disse...

Que lindo, o texto, que prosa tão solta, genuína, quase palpável. Adorei, tens mm sentido da prosa! mt, mt bom!

Gina disse...

Como sempre Ruizito!

Lindo, como só tu consegues.
Tocas o coração e alma, com as tua palavras

Beijo

Gina

cinderela disse...

Gostei tanto!...
Parabéns pelo post!

Å®t Øf £övë disse...

Luis,
Fantástica a forma como escreves.
Essa tua realidade, é infelizmente a realidade de muitos "lares" de muitas familias.
Mas o mais importante é teres ultrapassado tudo isso e teres aprendido a aceitar e a conviver com o teu passado.
Nunca o devemos renegar, porque como dizes, e bem, o passado faz parte de nós, e faz-nos ser aquilo que somos hoje.
Fico contente por perceber que agora encaras a vida com um espirito positivo, e que ela te está a sorrir.
Vai ver que agora será sempre para cima.
Abraço.

Sukie disse...

I`m happy!

Sukie disse...

E gosto dessa música. Dei o nome Luka a uma cadela porque gosto dessa música. se bem que na Itália, Luca é um nome masculino.