sexta-feira, outubro 02, 2009

Mãe

Despertou-o o aroma esquecido da excitação. Pelas frestas, o dia começou a esgueirar-se para o quarto e ele deixou-se ficar de olhos fechados, muito quieto, para não quebrar o fio condutor da memória.

Duas coisas sempre foram iguais nos dias de visita de estudo: as noites mal dormidas, passadas em febril antecipação, e os queques de mel que a mãe sempre fazia pela manhã, bem cedo, e lhe colocava, ainda quentes, na lancheira.

Comeu um queque na Sala dos Capelos, no Convento de Mafra, na Capela dos Ossos, no Navio-Escola Sagres, nas Portas do Sol, no Portugal dos Pequeninos, nas Linhas de Torres…

Hoje, dia da primeira visita de estudo do novo ano lectivo, sorri ao sentir a mãe na cozinha e delicia-se com o perfume que lhe chega dos queques a cozer no forno. Desta vez, contudo, são duas as diferenças: tinha dormido tranquilamente e, agora, ia na visita como professor.

Embrulhado nos lençóis, sentiu um enorme amor pela mãe.



(Vicente, de costas)

quarta-feira, julho 01, 2009

Os Coreógrafos

"Lento para quarteto de cordas", disse Laureano Penetra, num suspiro. Sentado no banco corrido, na sombra delgada da Casa do Povo, sentia-se encalmado em pleno Inverno. Passou a boina para o alto da cabeça e encostou as costas da mão à testa. Não tinha febre e isso deixou-o ainda mais abatido – detestava não saber de onde lhe vinham aqueles calores ("se ao menos estivesse doente..."); e detestava também não saber de onde lhe vinham aqueles pensamentos vagos e longínquos, que lhe perturbavam o sossego. Nas noites mais compridas, quando tudo se tornava ainda mais sossegado, quase se convencia que era de ser alentejano, que a culpa era da planície, essa plenitude feita de nada, que os pensamentos que implicavam consigo eram eles uma planície dentro de si, cheia de tudo e, no fim de contas, de coisa nenhuma. Acabava por adormecer, vencido pelo cansaço, e logo acordar, em sobressalto, ainda de noite, banhado em suor, cercado pela neblina das ideias, que o não deixavam, por momentos, saber onde estava.

A sombra era agora ainda mais estreita e empurrava os homens, sem saudades do sol, para outra parede – onde não havia banco que aceitasse o depósito a prazo das suas ossadas. Resistiram todos o mais que conseguiram.

Passavam as tardes quase sem uma palavra. Eram velhos o suficiente para já terem falado tudo – e no Alentejo parece haver menos o que dizer. Foi por isso que todos olharam para Laureano quando ele suspirou aquelas palavras inauditas. Semi-cerraram o olhar em forma de interrogação, por baixo das palas das boinas. Ele sacudiu o panfleto colorido, que falava da Companhia Nacional de Bailado, na direcção dos outros. "Tirei isto quando fui à Junta. Tem aqui escrito ‘lento para quarteto de cordas’”. Ninguém falou, nem sequer pestanejou, e ele achou-se na obrigação de olhar para o papel e tentar perceber o que aquilo significava. Trouxe a folha até aos olhos e demorou-se na leitura. "Parece que são uns moços e umas moças que vêm a Évora dançar". Foi a voz nasalada de Crispim Batata que se fez ouvir. "Espertos esses moços, compadre". E, depois de um breve silêncio, rematou. "Virem ao Alentejo dançar devagar". Já com o sol a moer-lhes as pernas, todos riram. Para dentro.

quinta-feira, junho 18, 2009

Parassonia

Dá muitas voltas à vida – nunca lhe pareceu que fosse a vida a dar muitas voltas. Estranha quando não reconhece nos mais ínfimos recantos do corpo a fadiga dos dias. É sinal que não se conseguiu afastar a distância necessária. Nessas voltas que inventa para si, centrifuga a sua existência: aquilo que sente a mais. É por isso que o tempo entre o abrandar e o adormecer lhe é o mais insuportável. Confinado ao seu espaço, tudo é mais presente. Corpo e mente não reconciliam a forma e o modo do repouso. As voltas que dá na cama são insuficientes e as paredes estão logo ali. Dói-lhe o arrastar das horas em que se tenta converter em sonâmbulo. Seria, então, menos difícil.




quinta-feira, junho 04, 2009

Mini-Poderes

Apoiou-se com ambas as mãos no lavatório da casa de banho. A cabeça pendeu-lhe dos ombros, parecendo mais pesada que nunca. Sentiu a neblina deixada pelo banho da sua mulher envolvê-lo, como que enviada por Hipnos para o trazer de volta ao leito. Lutou como pôde contra o suave embalo dos deuses, mas as pálpebras continuavam sem obedecer à ordem para se erguerem e deixou-se ficar até que uma inoportuna erecção lhe veio lembrar as imperiosas necessidades que havia que satisfazer.

Saíra da cama há menos de dez minutos e sentia já a culpa das oportunidades desperdiçadas.

A custo, virou cento e oitenta graus e baixou os boxers até aos joelhos. Ficou a coçar o rabo enquanto não foi capaz de descolar as pestanas remelosas. Por fim, pelo canto do olho esquerdo, conseguiu fitar a sanita que, felizmente, foi deixada com a tampa levantada. Precisou de ambas as mãos para fazer pontaria e, no exacto momento em que permitiu a abertura da comporta, teve a certeza que aquele empreendimento ia correr mal: por causa da erecção, por estar ainda mais a dormir que acordado. Não se enganou. Quando a bexiga finalmente se escoou, o seu conteúdo tinha ido parar dentro da sanita, em cima da sanita, e à volta da sanita. Sacudiu-se de alto a baixo, num arrepio e depois, sentindo-os húmidos, abanou ambos os pés, passando, à vez, o peito de cada um pela barriga da perna contrária. Coçou novamente o rabo, conformado com a inevitabilidade das manhãs úteis.

Rodando nos calcanhares, o queixo ainda a não se conseguir desembaraçar do emaranhado de pêlos que espreitavam pela gola da t-shirt, voltou à posição original, no lavatório. Tentou descolar a cabeça do peito, abanando-se, mas todo o corpo se balançou, num gesto de negação.

Maquinalmente, a razão a desafiar a vontade mais profunda, tapou o ralo do lavatório, abriu a torneira, tacteou até à embalagem de espuma para a barba, agitou-a, destapou-a, abriu uma das gavetas, de onde retirou uma lâmina descartável, fechou a torneira e mergulhou as mãos na água fria. Uma onda de choque trespassou-o, soltando-lhe o queixo e quase fazendo os olhos abrirem-se. Dobrou-se então, atirando água à cara, enquanto maldizia a sua vida e tudo o que ela implicava. Repetiu a promessa – nunca cumprida – que fazia de segunda a sexta-feira, religiosamente, àquela hora: que nessa noite se deitaria mais cedo.

Quando se ergueu, lá estava ele, no espelho meio embaciado, mal-encarado como sempre, com ar de que todos lhe deviam e ninguém lhe pagava. Passou a mão pela pequena cicatriz feita na véspera e perguntou-se onde aconteceria a cicatriz de hoje. Uma outra pergunta ecoou-lhe na caixa craniana, propagando-se como um incêndio de Verão, até lhe queimar os lábios. “O que queres ser quando fores grande”?, murmurou. O homem no espelho mostrou-se surpreendido e até chegou a encolher os ombros, sem saber o que responder. Mas havia uma resposta, a mesma que dava quando era infante e que tantas vezes fez sorrir quem o interpelava. “Quero ser super-herói”!

Mergulhou novamente as mãos no líquido frio e, desta vez, não as trouxe à tona, levando antes o rosto a elas. Abriu os olhos debaixo de água e não viu nada, tudo era difuso e inconsistente. Assim como a sua existência, ocorreu-lhe. Ergueu-se em aflição, esquecido que esteve da impossibilidade de respirar. Uma dor funda massacrava-lhe as costas, junto aos rins. Despiu a t-shirt, toda molhada, e procurou nas gavetas uma tesoura, com que cortou os pêlos junto do pescoço, atirando-os para a sanita.

Interrogou-se sobre os motivos daquelas ideias lhe assaltarem o espírito, assim, sem propósito aparente. Talvez fossem apenas sonhos, e os sonhos não se sabe bem de onde vêm, nem porque têm tão estranhos argumentos. Afinal de contas, não estava ele ainda meio a dormir, na casa de banho? Encheu uma mão com espuma e espalhou-a na cara, quase até aos olhos. Manejando a lâmina com movimentos trôpegos, desbravou a face direita, depois a esquerda, o bigode e, quando chegou ao queixo, uma pontada aguda fê-lo perceber que se tinha cortado. Não tardou a que uma pequena mancha escura se propagasse por entre a espuma que restava. Baixou a tampa da sanita e sentou-se. Enquanto observava no espelho, com um misto de atenção e desalento, o ponto cada vez mais vermelho que alastrava lentamente no queixo de um homem que julgou não conhecer, não pôde deixar se considerar as manhãs, em geral, e as casas de banho, em particular, péssimas para reflexões sobre a condição humana. E que os super-heróis não têm barba.

quinta-feira, maio 21, 2009

Passam Tempos

A decrépita carrinha parou no inicio da rua, doze bem cronometrados minutos mais tarde que na semana anterior. Antes que o também decrépito condutor e dois dos rapazes que seguiam no banco de trás tivessem tempo de sair, já ele tinha fechado a janela da sala, pegado nas chaves de casa e saído, descendo as escadas tão depressa quanto a Gota e a baça visão lhe permitiam. Quando chegou à rua, a carrinha já tinha desaparecido e nenhum dos rapazes estava à vista. Por descargo de consciência, abriu a caixa do correio, mas estava vazia. Cobriu o sol com a mão e perscrutou a rua. A manhã fazia promessas de calor sem tréguas. Ali parado, à espera, as articulações latejavam-lhe ainda mais.

Não tardou muito a que, puxando com uma mão um trolley e com a outra envergando uma grande braçada de jornais, um rapaz surgisse do prédio anterior ao seu. Nunca o tinha visto, mas isso era habitual naquele tipo de tarefa. Dirigiu-lhe a palavra: não precisa meter no segundo direito, pode dar já a mim. Sem responder ou sequer olhar, o rapaz estendeu-lhe a publicação que promove, por entre artigos breves, entrevistas e outra publicidade, os produtos de uma cadeia de supermercados, enfiando de seguida um exemplar em cada caixa de correio, segundo direito incluído. De volta a casa, agarrado ao corrimão esforçando-se para conquistar cada degrau, amaldiçoou primeiro os prédios sem elevador e depois os corpos sem saúde.

A sala, entretanto, tinha sido invadida pelo acentuado aquecimento diurno e estava cheia de uma luz que parecia afastar as paredes daquela estreita existência. O barulho da cidade confundia-se com o sossego que tudo ali transmitia, na sua arrumação cuidada e imperturbada, como se o tempo naquela casa demorasse mais a passar que fora dela.

Sentou-se à mesa e dobrou com cuidado uma das extremidades da comprida tira de renda, que a sua falecida mulher havia tricotado para servir de decoração e de base a um castiçal de aspecto pesado e algo sombrio. Passou as costas da mão pelo tampo da mesa, desfazendo a quadrícula de pó que ficara para trás. Num movimento inverso, desdobrou o jornal e alisou várias vezes o vinco. Ignorou os sonhos imensos da cavaleira tauromáquica que sorria na primeira página e as notícias vagas, apenas reparando brevemente nas promoções dos produtos alimentares[1]. Deteve-se, por fim, na penúltima página, no concurso proposto para essa semana. Como sempre, dever-se-ia criar uma frase em que constasse os nomes das lojas e do patrocinador do passatempo e ainda de um produto que constasse no jornal. O prémio, desta vez, era um cruzeiro Porto/Régua.

Uma foto apresentava o barco em que o vencedor faria o passeio. Pareceu-lhe pacífico, vogando sobre águas calmas, uma vereda com socalcos em fundo. Afiou a vista e aproximou o jornal da cara para tentar perceber se eram pessoas que estavam no piso superior da embarcação. Um lampejo de excitação tomou conta de si: nunca tinha andado de barco e devia estar a perder o juízo, porque lhe pareceu que a sala balançava ao sabor da corrente de um rio que corria através de um vale de vegetação frondosa, muito verde e de formas variadas. Foi a mancha de humidade que já tomava conta do papel de parede da sala que o fez acostar à realidade.

Também nunca tinha ido ao Porto. Nem à Régua. Nunca tinha visto o Douro, nem tudo o que ficava na distância entre a cidade onde vivia e esse norte. As únicas paisagens que conhecia por experiência própria eram as da aldeia onde crescera, dos campos em redor, muito direitos e quase sempre calcinados pelo sol, numa imensidão a perder de vista, e as da cidade para onde viera, homem novo, à procura de uma vida mais vivida, também ela calcinada e imensa, mas onde o olhar não se conseguia perder.

Passou a ponta dos dedos pelas águas paradas da fotografia enquanto recordava os poucos cursos de água que vira na infância: riachos corajosos, que desafiavam a secura dos torrões no verão e a pouca chuva no inverno; um deles em particular, porque formava um pego onde, de tempos a tempos, durante a época da cortiça, tomava banho – no sentido higiénico do termo. O rio que desenhava parte dos contornos da sua cidade era, pelo contrário, imenso e, talvez por isso, por lhe impor o temor que o desconhecido impõe, nunca nele tivesse navegado, nem que fosse apenas para poder dizer que o havia feito.

Levantou-se e dirigiu-se a um pequeno aparador, de cuja gaveta cimeira retirou duas folhas de papel, uma esferográfica, um envelope e um pedaço de papel muito dobrado. De volta à mesa, o quadriculado disponibilizado pelo jornal para escrever a frase pareceu-lhe, por entre a névoa em que a Retinite o fazia cada vez mais viver, o desenho do pó que havia limpo há pouco. Desgostou-se com a acelerada progressão da maleita, que o impedia já de acertar as letras naqueles pequenos quadrados. Tudo isso fê-lo sentir com ainda mais premência a necessidade de, por uma vez, aquela vez! naquela semana! engendrar uma frase vencedora. Sabia não lhe restarem muitas mais oportunidades de ver alguns dos seus sonhos cumpridos.

Numa das folhas, já quase cheia de frases passadas, em que o tamanho das letras ia progressivamente aumentando com o passar dos passatempos, começou a ensaiar rimas com as palavras obrigatórias. Já perto da hora de almoço, transpirado, com os olhos injectados e a arderem-lhe, deu-se por satisfeito com uma das quadras e passou-a a limpo para a folha em branco. Desdobrou depois com cuidado o pequeno papel. Nele, apontadas em letras garrafais pelo dono da papelaria da esquina, estavam as condições de participação no passatempo. Sabia-as de cor mas, ainda assim, achou por bem conformar: não escrever rimas com mais de 160 letras; colocar o nome e o contacto telefónico; a morada para onde se devia enviar o sobrescrito. Cumpriu todos os passos com particular zelo, apenas respirando à vontade quando acabou de desenhar a última letra da morada do destinatário.

Estava confiante quando, em frente ao espelho do corredor, ajeitou as roupas e colocou a boina, não deixando que a imagem que lhe foi devolvida, de um corpo seco e vergado, o afectasse. Certificou-se que tinha a chave, o envelope e os trinta e um cêntimos para o selo, antes de sair e voltar a enfrentar a escada.

A caminho da estação dos Correios parou à porta da papelaria, para inquirir da saúde do amigo e da família. Com um entusiasmo inusitado, falou da esperança em que seria aquela a sua semana de sorte que, mais uma vez, a rima que ganhara no concurso passado não era em nada melhor que a sua, e em como já era tempo de calhar a si. Despediu-se com um aceno do envelope, pedindo sorte ao vizinho. Ignorava que ele, ao lhe copiar as condições de participação nos passatempos, não reparara na necessidade imperiosa de juntar ao texto um vale postal no valor de um euro.



[1] Mais tarde, com outra disponibilidade da vontade, irá recortar os artigos indispensáveis que estejam ao melhor preço, colá-los numa folha – fazendo assim uma lista de compras ilustrada, mais amiga da sua débil visão –, que levará à loja na sexta-feira, o dia das compras.



sexta-feira, maio 15, 2009

O Texto Publicado Ontem

Teve que ser retirado. Porque sim.
Como não tenho mais nada com que redecorar este vosso estabelecimento, fica assim.

A quem já tinha comentado, as minhas desculpas.

quinta-feira, abril 23, 2009

Fingir

Tem sido com olhos preguiçosos que percorro a cidade. A cada dia, demoro mais tempo a chegar. A calçada permanece escura, reflexo do céu, que teima em se não destapar. Pesam-me os pensamentos nas pálpebras que, incapazes de sucumbirem, permitem a orientação suficiente que me vai amparando a queda. Desvio-me de tudo e de todos por instinto – esse traidor que me permitiu o convencimento na minha capacidade para os maiores feitos: uma certeza que chegou, insuspeita, e se instalou mansamente, enquanto a negava – o meu inferno.

Absurda, a crença em que a existência não pode ser apenas isto, que estamos destinados a algo maior e melhor quando, afinal, nos limitamos a apressarmo-nos de um lado para o outro para, no fim, nos encontrarmos sempre no mesmo sítio, da mesma maneira. Sempre iguais ao que de nós esperam. Mais distantes daquilo que verdadeiramente somos e de quem nos quer alguma coisa de bem.

Vi hoje a calçada a ser rasgada pelo negrume da água, de cima a mim atirada para que não esqueça aquilo que sou e, finalmente, senti nos músculos a coragem que só a percepção indubitável das coisas dá.

Derrubei-me ruas acima, cidade abaixo, até aqui chegar. Vim rápido, para ter tempo de te deixar uma palavra. Eu sei, não de viva voz, mas perdoar-me-ás, por certo, mais esta minha fraqueza; tu, que conheces o tortuoso labirinto em que me enclausurei.

É chegado o tempo de fingir.



Amarrotou a folha e deixou-se cair na velha cadeira de madeira, sem saber o que fazer ao papel. O estofo estava degradado e já não dava conforto à dor. O olhar encontrou o espaço entre as cortinas, que não tinham sido totalmente corridas, e o exterior surgiu-lhe em quadrados baços e desfocados, do tamanho dos pequenos vidros de que eram feitas as portas de acesso à varanda. Reparou em como não era a luz vinda da rua que iluminava a divisão, mas antes, era a penumbra da sala que emprestava alguma da sua luminosidade aquele dia de chumbo.

Sim, há demasiado tempo que a falta de vida das nuvens não dava tréguas, mas apenas isso, pensou. Tudo o resto não tinha de ser assim tão definitivamente trágico. Quis ter a oportunidade de dizer isso e de que não existem distâncias tais que uma palavra não consiga encurtar.

Não a teria.

Dobrou-se para a frente na cadeira, como se uma dor insuportável tivesse tomado posse de si. Estava sozinho na sala, mas sentiu-se desconfortavelmente observado pelas memórias que a habitam. Levantou-se ao mesmo tempo que recomeçou a chover. Água que encharca o raciocínio e o enegrece. Abriu a mão e a folha aumentou de volume, revelando a última frase. Ficou largo tempo a olhar para ela. Depois, abriu as portas da varanda e atirou o papel fora.

A calçada ficou ainda mais escura, com a tinta que da folha se derramou.


terça-feira, abril 14, 2009

Vagar

Vinte carcaças… não, quinze carcaças... dez carcaças… quinze carcaças! Talvez sejam demasiadas. Talvez não caibam no congelador. Separadas, às três ou quatro, haverão de caber. E porque não voltar cá amanhã? Duas chegavam…

Os algarismos contorceram-se no mostrador vermelho, acompanhados pelo habitual ruído que chama a atenção para a progressão numérica. Deu um pequeno passo à frente, indeciso. Tossiu sem vontade e sorriu sem convicção, para ganhar tempo. Quinze carcaças, acabou por murmurar – acrescentou um se faz favor, mas as palavras morreram-lhe ainda antes de chegarem aos lábios. Trocou umas moedas por um saco de papel cheio de pão fumegante, que enfiou dentro de um saco de plástico com asas. Deixou a pastelaria do pão sempre quente e atravessou a estrada, a caminho de casa mas, ao deixar o asfalto, mudou de ideias. Diante de si, reflectido no extenso relvado, o sol de inverno convidava a pensar em mergulhos de verão. Sentou-se num dos bancos de muitos tamanhos e feitios que cercavam o quadrado verde, a contemplar as árvores despidas e os riscos assimétricos e desordenados que elas desenhavam na relva mal tratada. Corriam cães em todas as direcções e não faziam barulho, não ladravam. Jogavam miúdos às cartas, num dos vértices do Largo, e enchiam a tarde de gritos e palavrões. Do outro lado, um dos bancos, de pedra larga e comprida, estava preenchido a todo o comprimento pela indiferença de alguém perante a vida. Dormirá? Uma rapariga com ar de longe, aparentava aflição ao querer muito retirar uma cadeira de rodas, com um velho dentro, do relvado. Para a próxima, não vás para tão dentro da erva. O aroma que se libertava de dentro dos sacos distraiu-o da paisagem, ao mesmo tempo que um ronco profundo e grave lhe percorreu as entranhas. Estava-se bem ali, não fora a gulodice e a cabeça a ficar quente na proporção inversa em que as carcaças arrefeciam. Olá gente estranha, ‘atão? Mais uma rapariga para a molhada do jogo de cartas. Poupados nos cumprimentos de ocasião, que não servem propósito evidente, o grupo respondeu passando-lhe para a mão uma garrafa de litro de cerveja. Quente, foi fácil adivinhar no trejeito contorcido, que ela tentou disfarçar gritando um qualquer disparate mais alto que os gritos do grupo. Juvenil e jovialmente, deu por si a dar aos pés, como se estivesse a dar balanço num baloiço imaginário. Não conhecia outro jardim onde, à frente de cada banco, existissem tão profundas e largas crateras, seguramente escavadas por inquietos e balouçantes pés, ao longo de não pouco tempo. Era de tal maneira assim que, estando sentada normalmente no banco, nenhuma pessoa de estatura corrente conseguiria chegar com os pés ao chão. Sentiu saudades de baloiços. Quando terá sido a última vez que andei num? Vasculhou os recantos mais esquecidos da memória, mas não encontrou a resposta. Pudera, como pode alguém saber que aquela é a última vez que anda de baloiço; é algo importante apenas quando já não se tem idade para isso. Ficou a remoer aquele pensamento. Haverá uma idade para andar de baloiço? Um peso, talvez… – não se achando com coragem para voltar a sentar-se num baloiço, lamentou não se ter despedido convenientemente. Uma súbita sensação de vazio encheu-lhe o peito e o estômago, apontando-lhe o caminho de casa. Para mais, aquele sol era matreiro o suficiente para, aproveitando-se do seu pouco habitual baixar da guarda, o constipar. Devo ir. Mas o vagar daquela tarde manteve-o sossegado por mais algum tempo. Se ao menos tivesse trazido a boina... Teve uma ideia. Retirou o saco de papel com o pão e sacudiu vigorosamente o saco de plástico. Dobrou as asas para dentro e, indiferente aos olhares que sabia que iria atrair, colocou o saco no alto da cabeça. Os cães, ainda em silêncio, continuavam a correr toda a extensão do relvado. No canto do jogo de cartas, jazia abandonada e vazia uma garrafa de litro de cerveja. A rapariga que aparentava ter vindo de longe, já sem aflições, ia atrás da cadeira de rodas, pelo passeio. Escorrendo de dentro do saco de plástico, o ténue aroma de pão acabado de cozer penetrava-lhe as narinas, desassossegando-o. Um novo rugido subiu-lhe das tripas, mas ele deixou-se estar. A abanar os pés, como se estivesse a dar balanço.