quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Mar de Penas

Leontino Pascual é um fora-da-lei. Quem o vê, não imagina estar perante um infractor: cabelo grisalho, já mal semeado no couro cabeludo engelhado e às manchas castanhas, caminha lentamente, curvado sobre si, apoiado numa bengala velha e sebosa. Vai na direcção do Miradouro do Monte Agudo, atento à calçada que pisa, sempre pródiga em surpresas desagradáveis. Não precisa olhar em frente: era capaz, se a isso fosse obrigado, de palmilhar o trajecto entre a Rua do Triângulo Vermelho – onde mora – e a Rua Heliodoro Salgado – para onde se dirige – de olhos fechados. São muitos anos de passos perdidos na Penha de França.
Na mão esquerda, o sempre presente saco de plástico, onde transporta a “arma do crime”: milho. Sentado num dos bancos de jardim do miradouro, Leontino tem o péssimo hábito de dar milho aos pombos, enquanto pensa na vida e fala sozinho. Zelosa na sua tarefa de proteger a saúde pública, e por manifesto fastio provocado por uma vida solitária em que nada parecia acontecer, uma moradora das redondezas fez queixa contra o velho. Assim, foram duas vidas fastidiosas e vazias, em que nada acontecia, que foram perturbadas: a dela – pouco, que a coisa resumiu-se a ir à esquadra apontar o dedo ao “bandido da bengala” – e a de Leontino, que teve o azar de o processo ir aterrar na secretária do delegado do Ministério Público com maior taxa de produtividade (e o mais salazarento de todos) e lhe deu seguimento.
A acusação não foi meiga. No processo – para o qual Leontino não se deu sequer ao trabalho de olhar – podia-se ler que “(…) diariamente, o requerido desloca-se até ao referido local, munido de uma generosa quantidade de alimento (…) os pombos permanecem em atitude expectante à espera da comida (…) logo que o requerido se senta no banco de jardim, os pombos voam do telhado do prédio do nº 60 para o jardim para se alimentarem (…) A aludida alimentação diária dos pombos tem provocado uma elevada concentração de pombos no local, designadamente, no telhado dos prédios circundantes (…) que tem constituído um factor perturbador da vida dos moradores do prédio onde habitam as requeridas e dos prédios circundantes, já que os pombos que ali permanecem têm vindo a inundar de penas e dejectos os telhados, as chaminés e os algerozes, as varandas e os estendais, bem como a rua e as viaturas nela estacionados ou que nela circulem (…) A situação é de tal modo insustentável que, presentemente, mostra-se prejudicada a utilização dos próprios espaços das habitações, em concreto das varandas e dos estendais das roupas, impedindo os respectivos proprietários ou arrendatários de aí se deslocarem ou de estenderem a roupa (…) Por outro lado, a elevada concentração de pombos e a sujidade que provocam, com as penas e dejectos que ali vêm depositando, colocam em perigo a saúde e a qualidade de vida das requeridas, dos restantes moradores do mesmo prédio das requeridas, bem como da dos prédios contíguos, assim como de todos quantos aí têm necessidade de permanecer ou de se deslocar, residentes ou não no local (…).
Seguia-se uma descrição de algumas das doenças e pragas que era acusado de propagar: Histoplasmose, Criptococose, Psitacose, Salmonelose, Piolhos e a Doença do Tratador de Pombos.
Sem apelo nem agravo, foi-lhe fixada ao abrigo do artº 384º, nº 2º, do Código de Processo Civil, e do artº 829º-A, do Código Civil, a fixação de uma sanção pecuniária compulsória no montante de €100,00 por cada dia que alimentasse os pombos.

Escasso de sanidade mental e de finanças, mas a abarrotar de tranquilidade na consciência, Leontino esteve-se a borrifar para a condenação e para os moradores das redondezas. A bem dizer, já nem se lembrava do sucedido – que a polícia nunca tinha vindo ter consigo – quando, sem olhar, atirou uma mão cheia de milho que foi aterrar em cima dos pés da rapariga que todas as tardes se sentava no banco ao lado do seu.
Boquiaberto, não dava pelo fio de saliva que se escapava pelo canto esquerdo da boca. Ultimamente acontecia-lhe muito: distraía-se a pensar em coisas de que logo se esquecia e perdia a noção de tudo à sua volta. Foram os gestos da rapariga a sacudir o milho de cima dos pés, que o trouxe de volta.


– Já aí está… nem a vi. Estava aqui a pensar que a minha vida dava uma novela… dessas que nunca mais acabam, compridas, em que está sempre a aparecer gente nova, só para nos confundir… novas situações. A diferença é que o que lá demora uma data de episódios, na minha vida, acontece tudo muito depressa… A minha mulher já se foi há… sei lá, muitos anos, mas parece que foi ontem que fui com ela ao Mercado de Arroios comprar um melão… gosto muito de melão, sabe… – Leontino atirou a última mão cheia de milho e guardou o saco no bolso do casaco. – Sabe menina, o amor é como o mar, pode ser calmo, mas também pode ser violento; transparente, ou turvo; pode derrubar-nos ou embalar-nos, se soubermos esperar por ele…. É, o amor é como o mar, umas vezes vem, mas também vai.

A rapariga sorriu-lhe, como sorria sempre. Observava o afã dos pombos de volta dos grãos do milho e tentava adivinhar que histórias aquela pessoa lhe contava todas as tardes. Quem seria aquele homem que nada lhe pedia em troca?
De início, ela ainda lhe tinha tentado explicar por gestos, mas ele nunca compreendeu que ela era surda-muda. Naquela tarde, sacudindo farinha de milho dos sapatos, uma ideia assaltou-a subitamente: talvez ele não tenha querido perceber.

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

O Glorioso

Josefina sabe que os há de vários tamanhos, cores e feitios. Já esteve até dentro de alguns, mas nunca desfrutou do prazer que dizem que dão. Todos os dias os vê, a toda a hora, muitas vezes: a voar, parados, a andar devagar, a andar depressa; às vezes, até a andar para trás. Já não lhes liga.
A princípio, ficava como que extasiada a apreciar aquelas máquinas fantásticas. Chegava a fingir fazer o que tinha para fazer, só para os observar através das grandes vidraças. Agora já não, de tanto convívio, tinham perdido o interesse.
Passou a interessar-se pelas pessoas que ali estão por eles. Também as há de vários tamanhos, cores e feitios, mas são sempre diferentes. Sempre interessantes aos seus olhos pequenos e atentos.
No passado sábado à noite, por volta das nove, já ela estava para se deitar – que tinha que se levantar antes das cinco, para ir trabalhar e a idade já lhe pedia explicações para tanta noite mal dormida – quando Adolfo, o seu marido, chegou a casa. Ainda ele não tinha colocado a chave à porta, quando Josefina suspirou de alívio. Conhecia-o tão bem que, só pelo som dos seus passos na pedra dos degraus, lhe conseguia adivinhar o humor. E no sábado passado ele vinha contente. “Antes assim”, pensou ela para com os botões da bata aos quadrados amarelos e brancos, que se preparava para despir.


– Então, ganharam?
– Não te preocupes, hoje não te bato – respondeu ele sem que ela percebesse se estava a brincar ou a falar a sério. – Demos duas na pá do Nacional. Foi limpinho.
– Ainda vão ser campeões – respondeu ela, tentando que as suas últimas palavras do dia fossem pela positiva. Não percebia nada de futebol, apenas o que o marido lhe dizia e o que espreitava nos dias em que a TVI transmitia um jogo.

Adolfo já estava na casa de banho a livrar-se da cerveja ingerida nas três horas anteriores, n’”O Glorioso das Galinheiras”, o seu café preferido do bairro e onde assistia aos jogos do seu Benfica, que o orçamento familiar – apenas recheado pela magro vencimento da mulher – não permitia Sporttv’s e outros luxos semelhantes.


– Sabes que a cerveja nunca se compra, apenas se aluga? – entrou no quarto abotoando a braguilha.
– Onde ouviste isso?
– Está escrito na casa de banho d’”O Glorioso”. É bem verdade… Já te vais deitar?
– Amanhã tenho de entrar às seis – o som próximo de um avião a levantar voo, fez estremecer os bibelots de Josefina. Ambos olharam para o tecto e suspiraram.
– Sempre os aviões…

Foram poucas centenas as pessoas que, no Campo João Gualberto Arruda, em Lagoa, ilha de São Miguel, nos Açores, assistiram no domingo à tarde, ao jogo entre a equipa local, o Clube Operário Desportivo e o Sport Lisboa e Nelas, filial número 16 do Sport Lisboa e Benfica.
Aos 59 minutos, Jefferson, marcou para o Nelas, dando esperanças de uma vitória, o que ajudaria a equipa a manter viva a luta pelo primeiro lugar da sua série na II Divisão, ainda para mais, quando o Operário é concorrente directo.
Durou apenas 11 minutos a vantagem, tendo o COD acabado por vencer a partida por 3–1, ultrapassando assim o oponente na tabela classificativa, onde ocupa agora o segundo lugar.
Eram homens desanimados os que chegaram ao Aeroporto João Paulo II, em Ponta Delgada, naquela final de domingo. Mais ficaram, quando descobriram que o voo programado para as 21h25 e que os traria até Lisboa, estava tão atrasado que apenas chegariam ao destino na manhã do dia seguinte.

Ao mesmo tempo, nas Galinheiras, Josefina desabotoava novamente a bata para se ir deitar. Tinha sido um domingo esgotante. A bem dizer, nem tinha dado por ele. Nem sequer se lembrava se tinha pensado durante todo o dia. Apesar de ser o dia de descanso da maioria das pessoas, era, sem dúvida alguma, o dia em que tinha mais trabalho. “Talvez uma coisa tenha a ver com a outra”, pensava ela sentada à beira da cama.


– Já vais? – Adolfo gritou-lhe a pergunta do sofá, em frente à televisão. – O homem vai começar a falar.
– Esse tem a mania que sabe tudo. Hoje não quero saber de comentários, estou estafada e amanhã cedo tenho que para lá voltar.
– Os aviões, sempre os aviões…

Ainda não eram sete horas e Josefina já tinha lavado a esfregona toda a zona das chegadas internacionais no Aeroporto de Lisboa. Havia um intervalo de alguns minutos até os passageiros do próximo avião chegarem, e ela dava com força no cabo do seu instrumento de trabalho já junto aos tapetes de recolha de bagagem. “Malditas pastilhas”, pensava ela, rangendo os dentes. As pastilhas eram o seu pior inimigo.
Pouco depois, o televisor por cima da sua cabeça apresentou uma nova mensagem: SATA voo S4 128 Ponta Delgada. Já não faltava muito para que os primeiros passageiros chegassem cheios de pressa. Para mais estes, que deviam ter chagado na noite anterior.
Assim foi, não demorou muito a que as primeiras pessoas aparecessem. Tal como ela suspeitara, vinham com ar zangado, cansadas, dispostas a atropelá-la, caso ela se atravessasse no seu caminho. Foi limpar o chão junto à parede, afastando-se um pouco do tapete. E depois, viu-os.
Era um grupo ainda grande, vinham todos vestidos com um fato de treino vermelho. Ao peito, o símbolo que tão bem conhecia: a águia de asas abertas, em cima da roda de bicicleta. O que o seu Adolfo não daria para estar ali.
Encheu-se de coragem e avançou para um rapaz pequeno, cabelo em desalinho e barba por fazer. Via-se-lhe nos olhos que não tinha dormido nada de jeito, tão inchados estavam.


– Anime-se homem, então não ganharam dois a zero?

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Da Pausa Que Termina, Continuando

devia escrever aqui alguma coisa,

dar uma palavra,

mas sinto como se as tivesse consumido todas,

num altar cheio de vozes.

não é assim,

sei disso.

e sinto o que sei não ser

apenas mais um murmúrio,

que se escapa.

mas eu sei que não é assim,

que devia dar uma palavra.

depois.

segunda-feira, janeiro 22, 2007

Breve Crónica da Pausa

Olá,

Antes de mais, agradecer as palavras que me têm animado durante a ausência e dizer que tenho consciência de que estou a dever a visita a muitos de vocês, mas não tenho mesmo conseguido.

A pausa tem-se devido, em grande parte, à decisão que tomei de, desta vez, só começar a publicar um novo texto, quando o tivesse todo escrito e não, como tem sido até aqui, de o ir escrevendo à medida que vai sendo necessário publicar (queria com isto assentar melhor as ideias, ter uma ideia prévia da coisa completa; no fundo, fazer a coisa como ela deve ser feita).

O que acontece é que este fim-de-semana deu-me para a imodéstia e decidi arriscar a participação no Prémio Literário Fnac/Teorema, que procura novos talentos na área das letras, com este texto que está entre mãos.

Como os textos têm que ser inéditos, não o vou poder publicar aqui. Ou seja, não faço ideia de quando a Pausa cessa (neste momento, tenho sérias dúvidas que consiga ter o texto pronto até dia 15 de Fevereiro, que é o último dia de recepção das candidaturas, quanto mais escrever uma qualquer parvoíce para aqui meter entretanto).

E é isto. Um abraço e até já, que vou fazer por vos ir lendo/comentando, pelo menos.

terça-feira, dezembro 19, 2006

K331 - Alla Turca (sexto andamento)

- Ana…
(levanta-se do chão a custo)
- Sim…
(responde após uma pausa; está estática, a meio da sala)
- Eu queria muito entregar-te o piano.
(procura-o)
- Estás a falar a sério?
- Sempre estive.

(ela deixa escapar uma interjeição)
hoje, sempre estive.
- Eu não o quero, a sério.
- Não vamos ter esta conversa outra vez, peço-te. Acredita por uma vez em mim, quando te digo que não sou capaz de ficar com isto, nem de o deitar fora.

(observa-o)
- Qual é a tua ideia?
(suspira)
- Encontrar-me contigo, cinco minutos, sem dramas, sem… sem trocarmos uma palavra, se for preciso. Entrego-te isto e pronto.
- Para isso, um minuto chega.
- Combinado.

(aquela tinha sido a frase que mais lhe tinha custado ouvir; por seu lado, ela arrepende-se de a ter dito e hesita por um segundo, não sabe se há-de pedir desculpa; não o faz e apagam-se as luzes lentamente)

Acendem-se apenas dois projectores, incidindo cada um numa personagem.
Estão agora na parte central do palco, frente-a-frente.


- Aqui está ele.
(estende-lhe o piano)
- Como uma coisa tão insignificante…
(olha para o piano, não para ele)
- Não o será assim tanto.
- Talvez não seja, verdade…e olha, quero que saibas que não mudou nada, absolutamente nada. Não te quero a pensar que lá por termos falado como o não fazíamos há muito, com uma sinceridade que… bom, podemos voltar ao que tínhamos, ao que éramos antes.

(seca-se-lhe a boca)
eu sei como és, no que estás a pensar, mas não quero isso para mim, não posso… não consigo. O que foi não volta a ser.
(encara-o, por fim)
- Lembras-te do Matias, aquele meu amigo?
- Sim, o do PS, que chegou a ser assessor de um ministro do Guterres!?
- Exactamente. Ele foi com o Guterres para o Alto Comissariado das nações Unidas para os Refugiados, continua a ser um diligente assessor politico. Falei com ele já há uns meses… se sabia de alguma coisa, se me arranjava o que fazer.
- Vais para Genebra?

(não consegue evitar algum espanto)
- Não!
(sorri)
vou para a Zâmbia… para um campo de refugiados angolanos… aquilo tem um nome estranhíssimo…
- Sinto-me uma parva…
- Não penses nisso, tens razões para pensar isso de mim… de qualquer maneira, estou só a arrumar umas coisas antes de partir e… quis deixar-te isso, é teu.
- Aquela história de isto começar a tocar sem mais nem menos…
- É verdade, não é história nenhuma. Isso liga-se a toda a hora.
- Tu, na Zâmbia… vais conseguir?
- Preciso disto, acho que me vai fazer bem. Espero conseguir… espero…
- Vais sim… e olha, quanto ao teu primo, ao que aconteceu…
- Ana, já passou o tal minuto… aliás, já passaram os cinco minutos.
- Está bem…

(silêncio)
- Eu…

Os primeiros acordes da Sonata para piano Nº11, K331 – Alla Turca, de Mozart, fazem-se ouvir.
Ambos olham o piano enquanto as luzes vão perdendo intensidade até se apagarem.

Fim

Quem tiver curiosidade, encontra aqui um link para a música em causa (media player), ou aqui (através do browser).

Uma arreliadora falta de tempo, tem-me afastado da escrita e da leitura. Este andamento final é bem sinal disso.
Aproveito a oportunidade e a época do ano, para desejar a todos uma boas festas pelo corpo todo e dizer que este blogue vai entrar por uns tempos em pausa.

E obrigado.

terça-feira, dezembro 12, 2006

K331 - Alla Turca (quinto andamento)

- Calculei que não fosse.
(acende mais um cigarro)
- Como adivinhaste?
- Não sei, foi algo que intuí. Conhecendo-te como conheço, percebi que não bastaria uma simples vingança.
- Quem te ouvisse… fazes de mim algo que não sou.
- Não me faças rir.

(interrompe a aspiração do cigarro, engasgando-se)
- Porquê, que foi?
- Que foi? Então, Ana é comigo que estás a falar.
- Isso quer dizer exactamente o quê?
- Quer dizer que estou com a cabeça a 200 à hora, tentando fazer com que tudo o que me tens dito faça sentido, tentando encaixar estas revelações em pequenas coisas do passado… atitudes tuas, incongruências, coisas que eu não percebi, que fingi não terem importância e que agora… não sei, de repente, ficou claro para mim que não te podias limitar a responder à letra. A partir do momento em que decidiste a vingança, terias de a complementar com… um toque de requinte.
- Eu não sou assim!

(ergue-se, visivelmente perturbada. Caminha pela sala)
- Mas és, e tu sabes que eu tenho razão.
- Oh…
- E requinte é mesmo o termo adequado. Tu adoras dar um toque… especial, muito pessoal, a tudo aquilo em que te envolves. Aliás, um dos teus fracassos foi nunca me teres conseguido tornar um gajo requintado.
- João, pelo amor de Deus, para quê isso agora?
- Então não estamos no momento das verdades, não foi o que disseste?
- Mas não é deste tipo de coisas que eu estou a falar, acusações que nada adiantam… em saber se tens muito ou pouco requinte.
- Sim, tens razão mas, ainda assim, te digo que tenho razão

(ela suspira e volta a sentar-se)
é verdade que nunca me adaptei ao teu estilo
(faz uma careta quando diz a palavra estilo)
ao teu gosto sofisticado, aos teus amigos… modernaços, todos eles tão.. bem, tão na moda, tão intelectuais. Porra Ana, logo foste gostar de um tipo que tem sempre a merda dos boxers a enfiarem-se-lhe pelo rego do cu acima. Aos teus amigos isso nunca acontece, aposto.
(procura mais um cigarro, mas o maço está vazio; sai do quarto)
- E pronto, aí vamos nós pela rua do disparate a fora…
(dirige-se a uma cadeira onde está a sua mala; procura algo)
- Não te apoquentes que não te vou pedir para admitires que sempre consideraste um fracasso o facto de nunca me teres conseguido fazer entrar no teu meio
(regressa com um copo meio cheio numa mão e uma garrafa quase vazia de Lemoncello na outra)
mas ainda te digo que não te levo a mal por isso, nunca levei, sempre achei legitima essa tua ambição.
- Mentira tua!

(masca furiosamente uma pastilha)
- Mentira, o quê?
- Mentira, sim. Se isso fosse verdade, tinhas feito um esforço, por pequeno que fosse, para te adaptares… e eu nem te pedia isso, que te adaptasses, apenas que tolerasses algumas coisas, que me acompanhasses de boa vontade nalgumas coisas, ainda que te custassem. Mas tu nunca foste sequer capaz de fingir, nunca fizeste a ponta de um corno… que coisa, eu só te pedia que fingisses de quando em vez.
- Terás razão, sim… não tentei lá grande coisa. Mas, verdade seja dita, nunca tive grande jeito para fingimentos…

(acentuou o mais possível o tom irónico da frase; olhou para o telemóvel como que querendo ver o efeito que aquela afirmação tinha produzido)
- Sim, sou melhor nisso que tu.
(senta-se, tentando controlar-se; está abatida)
- Que foi que fizeste mais, Ana?
- Tinha esperança que não quisesses saber… como há pouco tu não…
- Já estou por tudo, acho.
- Se não tivesses perguntado, não te teria dito.
- Arrependimento, tu?
- Sim, bastante.
- Foi assim tão mau!?

(silêncio demorado)
não me faças tentar adivinhar, por favor.
- Não, eu conto-te. É só que… não é fácil… não me diz… não diz respeito só a nós…
- Ana, que foste tu fazer...
- Eu…

(tapa a cara com a mão)
- Foi com quem? Eu conheço, não conheço?
(não obtém logo uma resposta)
- Com o teu primo.
(a frase saiu com uma aspereza não antecipada, o que a surpreendeu; seguiu-se um longo silêncio em que nenhum deles se mexeu)
calculo o que estejas a sentir…
- Não imaginas sequer.
- Sabes, a intenção era mesmo essa, provocar o máximo de dano possível, por isso o escolhi.
- Estás a ouvir-te, Ana?
- Sim, é terrível. Nem eu sabia de que era capaz de fazer o que fiz.
- Assustas-me.

(bebe pelo gargalo todo o conteúdo da garrafa; um esgar rasga-lhe a face)
- Deixa-me terminar.
- Não vale a pena, conseguiste…
- Lembras-te do início desta conversa, do pedido que me fizeste?

(perante a ausência de resposta, continua)
que te ouvisse!?
- Tenho dificuldade em raciocinar…
- Tens razão quando dizes que eu queria algo mais, superar-te na maldade que me fizeste. Quando descobri que me tinhas traído, fiquei cega de raiva. Cresceu dentro de mim algo que me estava a consumir. Só te imaginava com outras mulheres

(arrepia-se; volta a caminhar pela sala)
e depois aquelas tuas desculpas esfarrapadas, de que não tinhas conseguido resistir… como se fosses uma criança pequena, indefesa… que ódio João… só de pensar nisso…
- Mas é a verdade…
- Pára! Por favor, não me digas isso! Não inventes desculpas… assume os teus actos. Por uma vez.
- Como tu o estás a fazer.
- Como um homem.
- Um homem…

(vê-se ao espelho)
- Sabes o que pensei? Isto é horrível, eu não estava em mim, não podia estar… mas quis ver se eram todos como tu, se o teu primo era assim também, se perante os avanços de uma mulher, não conseguia resistir… para mais a mulher do seu melhor amigo.
- Chega Ana, chega…

(senta-se no chão)
- Não, ainda não chega.
- Peço-te, não serve de nada… eu… tu conseguiste… não sei, nem sei que te diga.
- Ele ainda resistiu, ao início… mas foi só enquanto ficou aparvalhado, sem saber se eu estava a sério ou apenas a brincar com ele. Que figura…
- A dele ou a tua?
- A nossa. Eu não quero… eu sei que errei, que fiz algo que jamais…

(engole em seco)
mas fi-lo… e… meu Deus, se pudesse voltar atrás…
- Não sei se alguma vez te conseguirei perdoar.
- Podes até perdoar-me, um dia, mas sei que nunca o irás esquecer, e isso é que é verdadeiramente terrível. Eu também não vou conseguir esquecer o que fizeste.
- Mas tu…

(de dedo indicador direito no ar, faz um esforço por não dizer o que queria; sente que vai chorar)
- Não tenho desculpa, eu sei. Nenhum de nós tem.



Encontram aqui mais algumas fotos

segunda-feira, dezembro 04, 2006

K331 - Alla Turca (quarto andamento)

- Tu nunca falaste assim comigo, de uma maneira tão aberta… dramática, mesmo. Não te reconheço.
- Nem eu me conheço, por vezes. Nestes últimos meses, desde que saíste de casa, tenho pensado muito.

(pausa)
não digo que tenha mudado muito, que não mudei, mas tem dado para perceber algumas coisas… tenho-me percebido, o que é bom, acho eu.
- Tu sempre foste… como dizer isto?... quando nos conhecemos não simpatizei nada contigo; havia algo no teu olhar, na tua expressão, que me fazia ficar em sentido. Achava-te… estranho.
- Não tinha ideia, nunca me tinhas dito isso.
- Não? Ia jurar que sim. De qualquer maneira, foi algo que se foi esbatendo à medida que me fui deixando conquistar pelo teu sentido de humor, pela tua maneira de me fazeres sentir especial.

(sorri num misto de ironia e tristeza)
a mesma que depois me fez sentir tão mal.
- Portei-me assim tão mal contigo?
- Portaste João, e o simples facto de teres de me fazer essa pergunta, só me dá razão.
- Mais um vez, desculpa…
- Agora…

(suspira)
ao longo do tempo, tornaste-te uma pessoa diferente, pelo menos para comigo, uma pessoa fria… mesmo ao toque.
- Ao toque?
- Sim, mais frio, literalmente. Eu tocava-te e estavas frio.

(arrepia-se)
o teu olhar, às vezes… ficava parado, gelado. E eu ficava a imaginar o teu coração, assim, também gelado, parado… um bloco de gelo.
- Agora és tu que estás a ser melodramática, Ana.
- Talvez esteja, mas havia alturas em que estar contigo me causava temor… medo, ou o que quer que fosse… só sei que era algo mau, algo que me fazia mal, que me levou a… que me fez…

(parecia não falar já para o telemóvel, antes, pensava alto, como se estivesse a falar sozinha)
coisas que eu não julgava…
- Que coisas, Ana?

(pega num cigarro que faz rodopiar entre os dedos)
- Nada de especial… coisas em que pensamos, que acabamos por fazer sem que tenham a ver connosco.
(cala-se subitamente, como se tivesse percebido algo importante)
- O que me estás a querer dizer?
(senta-se, antecipando a necessidade de um maior apoio do que aquele que o encosto à cómoda lhe proporciona)
- Eu…
(senta-se inclinada para a frente; apoia a cabeça na mão)
sabes… também não sou… não fui… também errei… eu não devia estar com isto.
- Tarde demais!
- Sim, tens razão, agora é tarde.

(tossica, tentando livrar a garganta de algo que não existe)
tu magoaste-me muito, mesmo muito, fizeste descobrir em mim algo que eu própria desconhecia possuir: um ódio enorme… rancor… um ciúme…
(pausa, aguardando uma reacção)
nunca antes tinha sentido ciúmes de ti mas, quando percebi que me traias… João, fiquei tão… danada e enfurecida… Andei assim umas semanas, na esperança que aquilo me passasse, sei lá, mas a verdade é que não passou, aliás, piorava a cada dia… e foi nessa altura que comecei a pensar numa maneira de me vingar de ti.
- Ana…

(ia acrescentar algo que não consegue vocalizar)
- E um dia, vinguei-me.
- Não quero saber!

(levanta-se)
- Agora tenho que te contar.
- Para quê, de que adianta?
- Acho que o mesmo que adiantou teres-me contado o que contaste…
- Não, desculpa, tu apenas me queres magoar. É a maneira de te vingares outra vez.
- Não, não é.
- Até o posso merecer, sei disso, mas tu não és assim… não eras… para quê isso agora?

(fala depressa)
- Porque eu…
- Ficas a saber que eu tenho sofrido o suficiente, que me sinto uma merda, que tenho tido todos os remorsos do mundo.
- Escuta-me. Não te quero fazer sentir pior, apenas quero ser sincera contigo da mesma maneira que foste comigo. Sinto que te devo isso.
- Sentes que me deves magoar? Tu não me deves nada, Ana.
- Sinto que, por uma vez, devemos dizer tudo.
- Não, não quero saber!
- Foi esse o nosso problema, pelo menos, grande parte dele: não falarmos… tu não falavas e eu não perguntava, tu não perguntavas e eu calava-me.

(inspira profundamente)
os nossos temas de conversa passaram a ser o restaurante onde íamos jantar, que filme ir ver ao cinema, a festa do próximo fim de semana… enfim, vacuidades.
- Pode ser que tenhas razão…
- Eu tenho razão! Foi deixarmo-nos ir por esse caminho que nos conduziu aqui, a esta situação. Chega! Se estamos agora a conversar como não o fazíamos há muito tempo, que digamos tudo.
- Foste para a cama com outro…
- Sim, fui.

(senta-se à beira do sofá)
- Pronto, já sei.
(di-lo sem conseguir esconder alguma irritação)
- Foi a maneira que encontrei para te magoar, na altura. Achei que merecias.
- Não te julgava capaz de tal.
- Nem eu. Senti-me tão mal depois. Senti-me tão… como se fosse uma dessas tuas amigas…
- Sim…

(ia acentuar a sua concordância com a observação dela, mas calou-se)
- Aconteceu uma única vez, se é que saberes disso adianta alguma coisa.
- Não adianta.

(após breves segundos de silêncio, percebe algo que o paralisa)
mas não foi só isso, pois não?
- Não, não foi.

segunda-feira, novembro 27, 2006

K331 - Alla Turca (terceiro andamento)


- Já estamos a discutir e não foi para isso que te liguei.
- Para que é que me ligaste, João, sabendo que eu não quero falar contigo?
- Por causa do maldito piano.
- Deita-o fora!

(senta-se. Parece cansada)
- Não consigo.
- Oh, por favor.
- Já estive várias vezes para o fazer, mas depois… não sei, vejo a tua mãe, vejo-te a ti, lembro-me dela a oferecer aquilo. Deitá-lo fora seria mais uma traição, mais uma falha contigo… e não sou capaz.
- Eu não o quero, deita-o fora.

(levanta-se e sai da sala)
- Deixa-me devolver-to, só te peço isso. Podíamos combinar ou tu passares por aqui…
- Por amor de Deus! Havia de ser bonito, eu ir aí e cruzar-me com uma das tuas amigas.

(regressa à sala, vem calçada. Ajusta as meias)
- Que amigas, do que é que estás a falar?
- Lá voltamos nós a mais um ataque de amnésia selectiva.
- Deixa-te de sarcasmos, Ana.

(dirige-se à cómoda e acende um cigarro. Fica a andar de um lado para o outro)
- Deixa-te tu de tretas, que eu não tenho pachorra para elas. Já não tenho que as aturar… e esta conversa está a chegar ao fim.
- Não, espera! Agora vais ter que me explicar essa das amigas.
- Quero lá saber disso, a vida é tua, já não me interessa.
- Ana, eu não…
- Tu não o quê?

(levanta a voz ao mesmo tempo que coloca o telemóvel mesmo à frente da boca)
não andas a meter umas tipas em casa?
- Como é que sabes?
- É isso que interessa?
- Foi a nossa queria vizinha Mariana, não foi? Essa amiga da onça…

(procura onde apagar o cigarro. Acaba por fazê-lo no vidro da moldura tombada na cómoda, retomando a caminhada)
- Esquece. Tenho de ir.
- Não, Ana!
- Acabou, João.
- Espera. Peço-te que me oiças.
- Pedes-me tanta coisa, já reparaste?
- Por favor.
- Tenho pressa.

(acomoda-se no sofá)
- Deixa-me falar…
(silêncio)
não são amigas… não são engates… quer dizer, são…
(pára junto à cómoda, apoiando uma mão nela)
são…

(a respiração torna-se mais ofegante enquanto procura as palavras)
meninas…
(aguarda a reacção dela)
- Prostitutas?
- Sim, eu pago-lhes.

(ela tenta falar, mas nada diz. Passa a mão pelo rosto)
não me perguntes porque o faço… eu sei que precisas de respostas, que para ti tudo tem que ter uma razão, um sentido, mas o meu mundo é mais complicado que isso e não te sei responder.
(pega noutro cigarro, procura o isqueiro)
talvez alivio… não sei se é esta a palavra correcta… é porque… sabes o que é mais triste? Nem sou capaz de olhar para elas. Se me cruzar com uma na rua, não a reconheço
(não encontra o isqueiro)
limito-me a… sexo… a ter relações
(por fim, o isqueiro)
elas… eu… só consigo… com elas de costas para mim… e aquilo não me diz nada, não sinto nada.
(o isqueiro não acende, atira com ele)
fico ali… fecho os olhos, tento pensar em…
(pousa o olhar na moldura com cinza e cala-se subitamente)
- Porque o fazes?
- Tenho pensado muito nisso, nas noites em que não durmo. Penso nisso… acho que é para não te trair.

(ela levanta-se e caminha pela sala. Parece ter dificuldade em gerir o que lhe é dito)
não sei explicar, Ana, mas na minha cabeça aquilo não é trair, se for a pagar não há traição… é estúpido, eu sei… Não entendo porque o faço… e tem vindo a piorar, das ultimas vezes…
(repara no seu reflexo na moldura vazia, por entre a cinza do cigarro)
- Seja o que for, diz-me.
(Inspira fundo no momento em que seu olhar se cruza com o de uma jovem que, da parede, a observa)
- Ultimamente, fico ali, com elas, imenso tempo… naquilo, e nada. Nada!
(morde o lábio inferior)
já nem me consigo vir… só sentir-me mal comigo, muito mal… e pensar no frustrado que sou.
(levanta os olhos e vê-se ao espelho)
- Porque me contas isto?
- Não se consegue fugir ao que se é, pois não?

(não obtém resposta)
da última vez já nem me despi
(ela baixa o telemóvel por momentos, considera desligar)
Ana…
- Sim…
- Às vezes, fecho os olhos e imagino que tu…
- João!
- Desculpa.

(vira-se para o leitor)
tenho querido chorar e já nem isso consigo, acreditas? Perdi a capacidade de tudo.

segunda-feira, novembro 20, 2006

K331 - Alla Turca (segundo andamento)

um telemóvel toca. As luzes acendem-se na sala e no quarto. Ela entra na sala. Veste agora uma saia preta, por cima do joelho e uma camisa branca. Está descalça. Penteia-se. Ao ver quem lhe está a ligar, faz uma careta e inspira, desalentada. Atende sem falar)


- Ana, eu sei, mas deixa-me falar.
- Depressa João, e pela última vez.
- Por muito estranho que isto possa parecer, eu preciso mesmo ver-me livre desta coisa.
- Nem sei que te diga, sinceramente.

(senta-se)
- Tu não percebes, mas isto liga-se sozinho, a toda a hora, sem que eu lhe mexa. Fica imenso tempo sem parar.
- Isso nunca aconteceu antes.
- Acontece agora, acredita. A meio da noite, desata a tocar, é insuportável. Está a deixar-me louco.

(entra no quarto procurando onde colocar a cinza de um cigarro; acaba por virar uma das molduras e apaga o cigarro no vidro)
não suporto mais isto, Ana. Há mais de duas semanas que é isto. Começou por ser de vez em quando, de longe a longe, mas tem vindo a piorar e agora é mais o tempo em que está a tocar do que o que está calado.
- Tens passado muito tempo em casa?
- Eu…

(começa a andar de um lado para o outro; hesita)
pedi licença sem vencimento, foi isso.
- João…
- Estou de baixa. Pedi e eles… o médico deu-me. Ando cansado, durmo pouco, tu sabes.
- Quem foi o médico que te dei baixa?
- er… um amigo do meu primo, é ali para os lados do Saldanha.
- O teu primo não conhece nenhum médico e a minha paciência esgotou-se…
- Espera, espera.

(faz sinal com a mão a alguém que não está presente; custa-lhe o que vai dizer)
eu despedi-me!... fui despedido…
(acrescenta, num sussurro; do outro lado, ela baixa o telemóvel e leva a mão à boca)
- Desde que me deixaste que não consigo atinar. É muita coisa para a minha cabeça.
- Estava a demorar.
- Não percebi.
- Pois não, nunca percebeste.
- Ana, por favor.
- Estás a culpar-me, João, mais uma vez. Agora foste despedido porque eu te deixei.

(o tom de voz é de desalento; fala baixo)
- Eu preciso de ti!
- Meu grande cabrão!

(levanta-se)
- É verdade.
(senta-se)
- Tarde demais.
- Preciso de ajuda.
- Ora aí está uma novidade.

(visivelmente surpreendida)
nunca antes te ouvi semelhante coisa. Reconheceres isso já é alguma coisa.
- Eu sei que errei.
- Não fizeste o mínimo esforço.
- Eu gosto de ti.
- E eu sempre te amei, é essa a diferença. Pena só a ter percebido muito tarde, quando já muito me tinha entregue, quando já tinha dado muito de mim. Tudo… e de ti só recebi pouco mais que nada. Nunca fizeste um esforço, nunca quiseste saber.
- Não é verdade.
- É verdade, sim!
- Casei contigo, não casei? Aliás, quem quis casar fui eu.
- E eu cedi, infelizmente, que não estavas preparado para casar. Lá achei que tu mudavas, que eu te mudava, não sei.
- Não, nada disso, eu casei porque gostava… porque te amava e queria muito estar contigo.
- Achaste que o casamento era a maneira de me ter, de obteres o teu merecido descanso, que a partir dali já estava o problema resolvido. Mas ser feliz não é fácil e o casamento não é o fim de nada, é só o princípio de outra coisa.

(aquelas palavras estavam a custar-lhe mais do que poderia supor; dava-se agora conta de que as não tinha dito no dia em que tudo acabou)

segunda-feira, novembro 13, 2006

K331 - Alla Turca (primeiro andamento)

Este texto é para ser lido com os olhos fechados

Um palco. Está dividido em três partes: à esquerda, um quarto. A cama está por fazer; uma almofada caída no chão. Numa cómoda, em frente à cama, vários objectos pessoais; por cima, um espelho. O roupeiro tem uma porta aberta, permitindo ver algumas camisas penduradas e vários cabides vazios; há ainda diversa roupa ao monte, a um canto;
à direita, uma sala de estar. O pouco mobiliário é de design moderno, dominando o preto e o branco. Arrumação impecável. Nas paredes, quadros de Lynne Taetzsch, Trevor Bell, Merello e um enorme retrato a preto e branco de uma jovem;
a zona central do palco está completamente às escuras.

(um homem entra no quarto. Tem a barba por fazer e o cabelo em desalinho. Tosse. Veste uma t-shirt com a imagem de uma folha de cannabis estampada e uns boxers vermelhos com limões. Está descalço. Senta-se na cama, de costas para o leitor. Baixa a cabeça e assim permanece algum tempo até se levantar e sair. Regressa com um telemóvel. Revolve uma gaveta da cómoda até encontrar o carregador, que liga à corrente. Hesita. Afasta-se. Passa a mão pela barba. Volta. Marca um número. Desiste. Volta a marcar.
na sala, toca um telefone.
uma mulher, em roupão, aparece. Pega no telemóvel e, após ver o número, desliga.
com ar desalentado, ele senta-se na cama. Pouco depois, liga de novo. Ninguém atende. Na sala, apenas o som de água corrente. Ele insiste uma, duas vezes.
na sala, ainda em roupão mas agora com uma toalha enrolada na cabeça, a mulher regressa e atende)


- O que queres, João?
- Ana, escuta-me…

(ela nada diz)
- Tens que vir buscar o piano.
- O piano?
- Eu posso levar-to, é uma questão de combinar...
- João, eu…

(senta-se e coloca uma mão na testa)
- É só entregar-te isto, sem dramas.
- Eu não tenho tempo, nem paciência para as tuas coisas. Pensava que pelo menos isso, tu tinhas percebido.
- Eu sei, eu sei, mas preciso ver-me livre disto.

(apoia uma mão na parede, como para evitar que a parede se movesse)
- Estás a falar do quê?
- Deste maldito piano que a tua mãe trouxe cá para casa.

(ela tenta recordar-se)
- Aquela caixa de música em forma de piano, deixaste cá isto.
- As coisas que tu inventas…

(abanando a cabeça)
- Isto está a deixar-me a cabeça feita em papa.
- João…

(suspira fundo)
- A sério!
- Não o ligues, é tão simples como isso.
- Não é Ana, acredita.

(ela, sem o ouvir, prossegue)
- Tens esta capacidade de me perturbar que me assusta imenso. Para que é que me estás a ligar com este disparate, explicas-me?
- Eu não te quero assustar, nada disso. É só que isto me está a fazer mal.
- Tira-lhe a pilha!
- Já tentei, mas aquela porra tem os parafusos metidos para dentro e a única chave que tenho é grande demais, não cabe.
- Poupa-me…

(levanta-se e começa a andar pela sala)
- Verdade, juro!
(ela pára)
- As tuas juras, João… por favor.
(revelando irritação)
- Esse assunto, outra vez…
- Esse assunto sempre! Eu não consigo falar contigo… aliás, eu não consigo sequer pensar em ti sem que me lembre, sabes?
- Agora já não adianta.
- Tens razão, não adianta mesmo. Nem sei porque fico assim. Para mim é assunto encerrado, já segui em frente.

(recuperando a calma)
- Fizeste bem. Eu fiz o mesmo…
- Ainda bem. Agora tenho de ir.
- Não Ana, espera. Eu preciso mesmo dar-te isto…

(ela já tinha desligado)

terça-feira, outubro 31, 2006

A Luz (parte 6)

O sol, já baixo e filtrado pela densa copa das árvores, pouco penetrava no jardim, dando à parte central do Largo da Luz um aspecto algo lúgubre.
O ruído da feira era, ali, abafado, como se viesse de um local distante. Dominavam os gritos das crianças, que por ali brincavam.
Um casal de namorados desocupou um banco de jardim, ao vê-los aproximar.

- Foram simpáticos. – Disse o velhote, a quem já começavam a doer as pernas e as costas. – Estou mesmo a precisar de me sentar.

Estavam mesmo atrás de um dos restaurantes amovíveis que alimentam os visitantes da feira. Sentados à roda duma mesa de plástico, os empregados de mesa faziam tempo até à hora do jantar jogando às cartas.
Um deles, rapaz para não mais de 18 anos, levantou-se ao ver passar duas raparigas – mais novas que ele.

- Cátia, dá-me lá o teu número. – Diz ele, aproximando-se.
- Outra vez, pá? Não dou!
- Vá lá…
- Não sejas chato. – Respondeu a Cátia, com um desdém mal disfarçado, afastando-se, de braço dado, com a amiga. Riam baixinho e falavam uma com a outra substituindo as palavras por olhares cúmplices, forjados em muitas conversas sobre rapazes.

- Ganda caramelo! – Gritou um dos colegas. Todos riram. – És um engatatão, és és.

O rapaz riu também.

Estranhamente, era ali, atrás da feira, que existiam algumas filas. No recinto da feira havia imensas pessoas, mas comprar o que quer que fosse não era tarefa demorada, enquanto que no jardim, com menos gente, beber água no repuxo ou utilizar as casas de banho, era algo bem mais complicado de se conseguir.
Estendendo-se a partir de uma espécie de pré-fabricado, ali colocado com o propósito de servir de casa de banho, uma fila de mulheres aguardava a vez. Eram várias as que protestavam pela demora.

- Não tarda nada, vou à dos homens… mas é que não tarda nada! – Exclamou uma.
- E o cheiro, já viram o cheiro?
- E ainda nem entrámos. – Respondeu outra.

Cátia e a amiga surgiram de novo, pelo mesmo caminho de há pouco. Nenhum dos jogadores de sueca as viu, entretidos que estavam com o jogo. Um contratempo para as raparigas, que foram obrigadas a se demorar por ali, até que alguém reparasse nelas.

- Cátia! - O rapaz apressou-se para perto das raparigas.
- Se quiseres, eu dou-te o meu número…

No banco de jardim, ambos sorriram.

- Estes miúdos são levados da breca, está a ver aquilo? – O velhote apontava com o cajado, interrompendo o silêncio com que tinham observado o movimento no jardim.

Um grupo de jovens, todos ciganos, escondia-se nuns arbustos, perto de um banco de jardim desocupado. Assim que um casal de idosos se sentou para comer cada um o seu gelado em sossego, logo eles vieram também sentar-se no banco. Dispararam mil perguntas ao casal: como se chamavam, como se tinham conhecido, se eram casados, de que sabor era o gelado, se moravam perto. As respostas não lhes interessavam, nem esperavam por elas, só lhes interessava a paródia, a aflição das suas vitimas.
O casal depressa se foi embora, para regojizo do grupo, que rebentou numa grande galhofa, para logo se esconderem de novo no arbusto, à espera de novas presas.

- Vir aqui fez-me recordar a minha mulher e o meu filho. – Disse ele pausadamente, olhando para a ponta do cajado. – A minha mulher deixou de viver quando o nosso filho morreu em Angola. Acho que nunca lhe perdoei isso… depois ela ficou doente e morreu uma morte desgraçada, sem forças até para se queixar. Eu fiz o mesmo, sabe? Morri com ela também, acompanhei-a, deixei de viver… passei a sobreviver… e só percebi isso hoje, à conta de uma gulodice de que até já me tinha esquecido que tinha. Foi uma rasteira, não esperava nada disto, mas a vida é assim, não é?

Não viu que a mulher comprimiu os lábios com força fazendo a boca rasgar-lhe a face num esgar.

- Gostava de lhe poder trazer o dia em que não se arrependesse de nada, o dia da tranquilidade da sua consciência. Gostava de ser eu a dar-lhe a certeza de que não há nada por que estar amargurado…. muitos de nós carregamos um peso cá dentro. – Apontou para o peito. - Algo que muitas vezes nem sabemos de onde veio, que não deixámos entrar, algo que, um dia, descobrimos instalado e que nos surpreende… eu sei o que é isso. - Pausa. - Não lhe consigo explicar isto mas, não o conhecendo há mais do que uns minutos, sinto que é um homem bom, que sempre o foi, e isso é que importa.

Estavam os dois calados, quando uma súbita rajada de vento levantou do chão as folhas secas e amarelecidas das árvores - as primeiras vitimas de um Outono há pouco chegado - e com elas as cartas do jogo da sueca, que rodopiaram no ar. Os empregados de mesa levantaram-se de um pulo e correram em todas as direcções, tentando apanhá-las.
O valete de paus veio cair no colo do homem.

- Sir Lancelot. – Disse-lhe ela.
- Como disse?
- Essa carta representa Sir Lancelot.
- Não sei quem é.
- O baralho de cartas foi inventado em França - não assim, como o conhecemos agora, um primeiro, do qual este deriva - e os quatro naipes pretendiam representar as divisões sociais da altura: copas para representar o clero, ouro para a burguesia, espadas para os militares e paus para os camponeses. Mais tarde, atribuiu-se significados específicos às cartas com figuras e o valete de paus era Lancelot. – Perante o ar algo confuso do seu interlocutor, sentiu necessidade de acrescentar: - Eu sou de História, interesso-me pela simbologia.
- E quem era esse tal do laçarote?

A mulher riu-se. Colocou a sua mão em cima da dele e disse-lhe: - Conto-lhe tudo, mas antes vou comprar uma fartura para cada um.
Após um segundo de hesitação, ele respondeu: - Aceito, obrigado.

* * *

Abriu o postigo. A noite começava a instalar-se e com ela chegavam os primeiros clientes do restaurante vizinho. Instalou-se no seu ponto de observação.
Uma ideia assaltou-lhe o espírito: durante muito tempo, tinha-se esquecido de olhar para dentro de si.


FIM


Encontram algumas fotos da feira, aqui.

quarta-feira, outubro 25, 2006

A Luz (parte 5)

- Posso oferecer-lhe uma fartura?

A música já tinha terminado há algum tempo, mas os versos continuavam a ecoar-lhe na cabeça. A pergunta fê-lo recuperar o tempo presente.

Em frente a si, uma mulher cujo rosto denunciava já ter passado a meia-idade, sorria-lhe. Os olhos dela, dois grandes círculos azuis-escuros, lembraram-lhe alguém.

- Desculpe, mas não a percebi.
- Perguntei se lhe podia oferecer uma fartura. - Não obteve resposta. O homem continuava preso nos olhos dela. – Ai, desculpe-me, já disse o que não devia… ofendi-o… - A mulher estava agora visivelmente atrapalhada. – Não me leve a mal, por favor… mas vi-o aí, encostado, tão triste, com esse olhar, e pensei que…

O homem olhou em redor. Estava quase encostado a uma roulotte de farturas, em frente ao palco.

- Não levo a mal. – Disse, sorrindo. – Imagino a figura que eu estava a fazer, para a ter levado a oferecer-me uma fartura.
- Pareceu-me muito triste, confesso… e depois, eu sou muito impulsiva, vi-o aí e… - procurou as palavras.
- Teve pena do velhote.
- Não me leve a mal, eu não queria… é que faço as coisas sem pensar… achei-o… abandonado, acho que foi isso, e com vontade de comer uma fartura, sem o poder fazer. Estão tão caras, acho isto uma vergonha, num país destes, um euro, onde é que isto irá parar… - Calou-se subitamente.

O velhote continuava a sorrir-lhe e ela corou, colocando os olhos no chão. Depois acrescentou: - É outro defeito meu, falo demais.

- Não se preocupe.
- Só me tem trazido dissabores, sou uma desastrada.
- Só estava a ser simpática. Sabe, na verdade eu estava era a ouvir uma música do Tony de Matos e distrai-me. Já não o ouvia há muito tempo. – Fez uma pausa. – Hoje não é fácil ouvir estas músicas de antigamente… quem é que quer saber disso?! As pessoas esquecem.
- Às vezes, somos nós que deixamos que se esqueçam de nós.

A mulher ia pedir mais uma vez desculpa e despedir-se, mas o velhote interrompeu-a com uma pergunta.

- Porque é que veio hoje à feira?
- Vivo aqui perto, é domingo, não tenho planos. – Respondeu ela, após uns breves segundos de hesitação. – Ainda telefonei à minha filha, desafiei-a a vestir o fato de treino que tem igual ao meu e a virmos as duas ao Centro Comercial Pimba, que é como ela chama a isto. – Acompanhou as palavras Centro Comercial com um gesto simultâneo dos dedos indicador e médio de cada mão. – Gosto de vir aqui ver as pessoas, ver o que elas compram, de observar o que aqui se passa. Sim, acho que venho cá pelas pessoas… mas ela queria dormir, sabe como é. – Concluiu com um encolher de ombros resignado.
- Eu vim cá de propósito para comer uma fartura. – Respondeu o homem, como se tivesse feito a pergunta anterior para que fosse ele a dar a resposta. – Estava em casa, com muita pena de mim… ao domingo é sempre pior, vá lá perceber-se isto… e vim cá comer a fartura para me animar. – Depois, como que adivinhando o que ela estaria a pensar, acrescentou: - Você tinha a sua razão…
- E chegou a comê-la?
- Não, não consegui… o preço… só serviu para ficar ainda com mais pena de mim.
- A felicidade numa fartura… - Deixou ela escapar num murmúrio.
- Não, não se trata disso.
- Eu não queria…
- Sabe de onde se vê bem a feira?
- Não faço ideia.
- É das traseiras.
- Das traseiras?
- Confia em mim, tem tempo para me acompanhar?
- Estou como o outro: tenho todo o tempo do mundo.

quinta-feira, outubro 19, 2006

A Luz (parte 4)

Uma miúda pequena, com o cabelo loiro apanhado em dois grandes totós, deu uma dentada numa grande nuvem de algodão doce, ficando com as bochechas cheias de açúcar. Riu-se, denunciando a falta de dois dentes.
Uma senhora de idade olhava com uma expressão interrogativa para um telemóvel, enquanto coçava a cabeça. Ajeitou os óculos no nariz, como se o problema fosse não estar a ver bem.
Um bebé começou a chorar quando o balão que segurava se soltou, partindo na direcção das nuvens, que corriam céleres.
Uma cigana ofereceu uma blusa cheia de palmeiras a uma senhora que não a queria comprar.
Dois rapazes de bicicleta, faziam uma gincana, tentando furar por entre a multidão.
Carregadas com imensos sacos, muitas eram as pessoas que pareciam caminhar sem sentido, como se estivessem perdidas num local que desconheciam.

À sua volta tudo parecia continuar como se nada de estranho se estivesse a passar. Cada qual indiferente à pessoa do lado, aos acontecimentos
Até que, a pouco e pouco, o ruído deu lugar a rumor, depois a um sussurro.
As pessoas deixaram de ter pressa e pararam.
As nuvens perderam velocidade.
Os pássaros pousaram.
As ciganas sentaram-se.
O óleo que fritava farturas deixou de borbulhar.
Os pregões, até então berrados em alta voz, cessaram.

Uma mulher, com um boné velho e gasto, onde ainda se podia ler “queremos mentiras novas”, retirou um lenço branco da mala que trazia ao ombro e começou a acenar com ele.
A atenção de todos concentrou-se no mesmo local.
A Santa entrou no Largo da Luz pela Rua da Fonte, lentamente, mas sem conseguir evitar alguns solavancos. A certa altura, pareceu que ia cair.
Com imensas pessoas à sua frente, o velhote não conseguia ver bem. Pareceu-lhe uma coroa, aquilo que ela trazia na cabeça. Segurava no braço esquerdo uma criança pequena. O Menino Jesus, por certo. Tinha uma expressão serena.
A mulher à sua frente continuava a acenar o lenço mas já não olhava a Santa, tinha até os olhos fechados. Com o corpo curvado e a cabeça baixa, parecia rezar. Naquela posição, parecia que era ela que suportava o peso da imagem que passava.
O velhote conseguiu então ver o cortejo que participava na procissão da Nossa Senhora da Luz.

A última vez que ali tinha estado tinha sido precisamente no dia da procissão. Tentou recordar-se há quantos anos isso tinha sido. Muitos.
Tinha ido acompanhar a mulher, devota da Senhora da Luz, que já estava muito doente nessa altura. Sabiam ambos que já pouco tempo tinha de vida, apesar de nunca terem falado sobre isso.
Ainda hoje achava que todo o esforço que ela fez para estar na procissão, foi para poder encomendar a sua alma, para pedir à Santa que intercedesse por ela junto de Deus.
Depois da morte do único filho no Ultramar, ela nunca mais tinha sido a mesma pessoa. Juntamente com o filho, tinha morrido a sua vontade de viver, a luz que lhe iluminava o rosto a toda a hora, em qualquer situação.
Ele tinha conseguido sentir raiva pela morte do filho, tinha gritado, chorado, dado murros na parede, mas ela não, nunca chorou, nunca desesperou; apenas se deixou ficar, enquanto a vida se escapava de dentro de si.
Nos anos após a morte dela, culpou-se por nunca ter falado com ela, por se ter limitado a assistir, por ter fingido que era assim que as coisas eram…

Foi então que percebeu algo. Sentiu um grande aperto no peito. Quis sair dali imediatamente mas não conseguiu, eram muitas as pessoas à sua volta e ninguém estava interessado nele.

- Por favor, por favor… - ia ele dizendo, tentando que o deixassem passar.

Por fim, a Santa recolheu à igreja e a multidão dispersou rapidamente, voltando à azáfama de há poucos minutos atrás. Dir-se-ia que aquela pausa nunca tinha acontecido, tal era o afã com que compradores e vendedores regressaram às suas tarefas.
O velhote deambulava pelo largo. Parecia perdido, sem atinar com o caminho de volta.
De um pequeno palco improvisado, onde apenas estava um microfone e uma grande coluna, saiu um ronco grave, seguido de um guincho ensurdecedor. Depois estática e, quando o velhote já se afastava, uma música que o fez parar. As palavras eram-lhe familiares.

O destino marca a hora
Pela vida fora
Que havemos de fazer
O que rege a sorte agora
Foi escrito outrora
Logo ao nascer

O relógio marca o tempo de viver
Todos nós somos iguais
Se o destino nos condena
Não vale a pena
Lutarmos mais

E depois conseguiu cantar o resto da letra, para dentro, para si.

O passado nunca volta,
podes crer
O futuro não tem dono
Toda a flor por mais
bonita há-de morrer
Quando chega o seu Outono
Temos hoje p’ra viver toda uma vida
O amanhã, que longe vem!
A saudade está escondida
Num destino por medida
P’ra nós dois e mais ninguém

O relógio marca o tempo de viver...

quinta-feira, outubro 12, 2006

A Luz (parte 3)

Era o último domingo de Setembro e estava muita gente no Largo da Luz. Os feirantes, conscientes de que era o derradeiro dia forte de vendas, apelavam a toda a sua experiência e sabedoria para escoar a mercadoria.

- Oh dona, escolha! Olhe’ma cólidade do material. Isto é tal qual o da loja.
- Aproveitem agora, qu’é tudo a 5 éros!
- Vá lá minha gente, qu’eu na quero levar a mercadoria pra trás…

A Policia Municipal observava com candura a venda de material contrafeito, que a missão deles ali era apenas a de zelar pelos comportamentos.
O velhote olhava para uns balões de várias formas e feitios que, de tantos serem, pareciam a copa de uma árvore multicolorida. Agitavam-se indolentemente, empurrados pela brisa ligeira. Esperavam a criança que não aparecia. Os fios que os prendiam a uma grande botija de hélio eram os ramos e a botija o tronco.
O homem olhava mas nada via. Antes, pensava nos duzentos escudos que custava a fartura. Era essa a medida da sua desadequação ao mundo em que vivia. Tinha pensado em comprar meia dúzia delas e afinal… Há quanto tempo não saía do seu bairro? Há quanto tempo não comprava algo pura e simplesmente para o seu prazer?
Não raras vezes, esse dinheiro dava-lhe para comer durante mais de um dia; comia uma sopa e um bocado de pão com o que calhasse. Não que tivesse forçosamente de ser assim, não vivia em tão grande aperto, apenas aconteceu que à medida que foi envelhecendo, foi sentindo cada vez menos necessidade de comer, o que, juntando à escassa reforma, o tinha habituado a um regime muito frugal. Decididamente, não seria capaz de gastar duzentos escudos numa fartura.
Há quanto tempo não era feliz?

Os balões tinham-se transformado num frondoso Plátano e ele estava agora em plena Avenida da Liberdade, era jovem e sentia-se nervoso. Suavam-lhe as palmas das mãos.
Tinha vestido a sua melhor roupa, comprada de propósito para a ocasião: umas calças de fazenda cinzenta e um casaco também de fazenda mas num tom ligeiramente mais escuro - tinha a comprado a amigo seu que, por sua vez, a tinha herdado de um primo que morrera tísico -, a camisa, branca, tinha-a comprado nova, nos Armazéns Pinheiros, local de prestigio na Rua Augusta, dois dias antes.
Tinha empatado no traje boa parte do pé-de-meia que possuía, mas não fazia essas contas, a razão porque o tinha feito era a melhor: uma rapariga.
A moça trabalhava numa retrosaria, no número 120 da Rua Tomás Ribeiro, a pouco mais de 50 metros da Garagem Militar, onde ele cumpria o serviço militar. Desde a primeira vez que a viu que soube que tinha de a convidar para sair – coisa que alguma confusão lhe fazia, visto não ser capaz de explicar isso a ninguém, nem mesmo a ele próprio; tal coisa nunca antes lhe tinha acontecido.
E agora ali estava, junto ao Parque Mayer, à espera dela. Nervoso. Mais ainda do que quando, finalmente, ganhou coragem para a abordar, e logo com um convite para ir à Revista. Se a menina me fizesse o favor…, tinha-lhe ele pedido desajeitadamente.
Instruído pelo seu camarada Abílio, moço mais expedito no que a raparigas dizia respeito, aguardava-a com um ramo de malmequeres e com um convite para cear: conhecia uma cervejaria onde se comia um bom prego.
Ei-la que chega, mais linda do que nunca aos seus olhos. Diz adorar os malmequeres. Olha-lhe nos olhos, deixando-o sem saber o que fazer ou dizer.

- Então o que vamos ver?
- A Revista chama-se “Saias Curtas”, entra o Tony de Matos.
- Adoro ouvi-lo cantar. Sempre que posso, ligo a Emissora Nacional.
- Achei que sim… - respondeu ele, sentindo-se descontrair.

SLB… SLB… SLB… GLORIOSO SLB… GLORIOSO SLB…

Berrada a muitas vozes, aquela frase fê-lo estremecer. Estava de volta.
Percebeu que tinha caminhado até à Estrada da Luz, junto à Igreja. À sua frente, um muro de pessoas impedia a passagem. Toda aquela gente parecia aguardar algo ou alguém.
O grupo de rapazes aproximava-se, continuando numa gritaria infernal. Vestiam todos de igual: uma camisola vermelha, cachecol e boné. Um deles desfraldava uma grande bandeira. Riam muito, divertidos consigo próprios.

- Oh minha senhora, qu’é isto aqui? – perguntou um deles, apontando.
- Ora, é a Igreja da Luz.
- Igreja?? Pffffffffff… venha antes ca malta à Catedral que daqui a pouco há jogo. – o grupo soltou uma gargalhada.
- Esta gente… - disse a mulher, afastando-se.
- Como é qué malta? – incitou um outro. – Quem nós somos, todos querem saber…

Todos gritavam agora, enquanto furavam o corredor humano que ladeava a Estrada da Luz.


QUEM NÓS SOMOS
TODOS QUEREM SABER
QUEM NÓS SOMOS
NO NAME… NO NAME


SL BENFICA VAIS VENCER
ESTAMOS CONTIGO ATÉ MORRER
SOMOS RAPAZES SEM NOME
NOSSA VOZ É O TEU PODER

Todos estavam distraídos com o grupo. Uns riam, outros desaprovavam abanado a cabeça. O velhote parecia ser o único que olhava na direcção oposta. Queria dizer algo mas não era capaz. Seria ele o único a ver? Estaria a ver bem?
Ao fundo, por cima da multidão e iluminada pela luz de início de Outono, a imagem de uma santa apareceu.

quarta-feira, outubro 04, 2006

A Luz (parte 2)

Tinha conseguido tornar-se auto-suficiente na “sua aldeia” e já pouco saía da zona histórica. A osteoporose dificultava-lhe os movimentos, tornando os seus passeios pelas redondezas cada vez mais raros. Não lamentava isso, fora dali tudo era confusão, ruído, tudo coisas que lhe faziam mal. E mesmo assim, já ali não tinha a calma de outros tempos, longe disso. Mas naquela tarde, dissolvido na brisa, o doce aroma de farturas tinha vindo buscá-lo.
No quarto, que com a sala e uma pequena casa de banho constituía a sua habitação, sentado na cama, desenrolou um par de meias. Era lá dentro que guardava algum do dinheiro que tinha em casa – guardava-o em três locais distintos: dentro de um plástico enfiado num pacote de arroz e dentro de um dos cinco livros que tinha na sala; nas meias guardava as moedas. Pegou numa moeda de 50 cêntimos; hesitou. Após alguns segundos, acabou por retirar uma segunda moeda. Merecia uma pequena loucura, afinal, há já bastante tempo que não se permitia uma extravagância. Iria comprar meia dúzia de farturas. Certamente aguentariam até ao dia seguinte e ele gostava delas mesmo frias.
Segurou o cajado com um aperto bem forte, aquilo a que se propunha era uma verdadeira aventura.

Percorreu lentamente a Travessa do Pregoeiro e a apertada Azinhaga das Carmelitas. Sabia para onde se dirigir, tinha-se recordado de que Setembro era o mês da Feira da Luz.
Longas filas de carros ocupavam os passeios, obrigando-o a caminhar na estrada. Por mais de uma vez pensou em desistir, tal era a proximidade com que os carros passavam por si. Procuravam um lugar para estacionar que não existia.
A Azinhaga era o limite norte da zona antiga, fazendo fronteira com alguns prédios antigos e com o que restava de uma antiga quinta. Futuro local de construção, pensou.
A custo, chegou ao Largo da Luz. Todos os ossos lhe pareciam doer, cobrando-lhe um elevado preço pela audácia. Parou para recuperar a respiração.
O cheiro a farturas era agora intenso. Estava próximo de concretizar o seu objectivo, mas antes seria preciso vencer aquela multidão irrequieta que se acotovelava à sua frente, criando uma barreira que lhe parecia intransponível. Perto de si, uma cigana gritou a plenos pulmões, assustando-o: - Olhó cd da Floribeeeella!
Firme do seu apoio, atravessou a estrada. Ali estavam elas, farturas! Numa roulotte cuja decoração eram dezenas de pacotes de farinha Branca de Neve e garrafas de óleo Frigi, um individuo anafado, possuidor de uma farfalhudo bigode que lhe escondia a boca, virava uma espiral de massa frita dentro do que lhe pareceu um grande alguidar metálico. Guardou alguma distância, encostado a um poste de electricidade, onde se sentiu mais seguro. Ficou a observar, a admirar cada gesto do homem que, manejando dois longos espetos com movimentos rápidos, passou a massa já frita a uma rapariga. Por sua vez, esta, demonstrando longa prática no uso da tesoura, cortou a massa em pedaços de igual tamanho e rebolou-os numa mistura de açúcar e canela.
As farturas pareciam-lhe iguais às de sempre, mas tudo o resto o fez sentir deslocado. No seu tempo não havia roulottes daquelas, com luzes em forma de letras que acendiam e apagavam mesmo de dia, não eram raparigas que vendiam farturas, não havia farturas recheadas. Que diabo, parecia-lhe até que no seu tempo as farturas não levavam canela, apenas açúcar.
Tentava decidir se gostaria mais delas com ou sem canela quando uma voz rouca o fez regressar à feira.

- Oh avozinho, não tenha medo que aqui ninguém lhe faz mal. Compre destas que estão quentes. – Disse-lhe o homem das farturas, sem que se visse qualquer movimento da sua boca. Parecia usar os olhos para falar.

Aproximou-se, retirando as duas moedas do bolso.

- Quantas são? – Perguntou-lhe a rapariga, apressada.
- Quantas compro com isto?
- 1 Euro? Ora, compra uma.

Sentiu um grande calor vindo do alguidar onde mais farturas fritavam. O cheiro delas, que antes lhe tinha chegado doce e suave, parecia-lhe agora estar queimado, saturando-lhe as vias respiratórias. O barulho que o envolvia aumentou subitamente dentro da sua cabeça. Um rapaz muito alto, com o cabelo cortado à escovinha e com uns óculos de lentes grossíssimas, deu-lhe um encontrão, quase fazendo com que deixasse cair as moedas. Alguém gritou por um megafone que era tudo a 5 Euros.

- Como é que é, quer a fartura ou não? – Não havia clientes para atender, mas a rapariga continuava com pressa.
- Não… afinal não quero. – Respondeu num murmúrio o velhote.

segunda-feira, setembro 25, 2006

A Luz (parte 1)

Abriu o postigo. Precisava deixar entrar alguma da luz daquela tarde e um pouco de ar fresco.
Sentiu uma ligeira brisa passar-lhe pelo rosto, agitando-lhe os ralos e escassos cabelos brancos. Fechou os olhos e inspirou mais prolongadamente que o habitual. Há já algum tempo que não se lembrava de que ainda estava vivo.
Regressou ao velho e coçado sofá, apoiado no cajado. Sim, estava melhor assim, pensou. Era desta maneira que passava grande parte dos dias, sentado, a bater com a ponta do cajado nos gastos sapatos de camurça, os únicos que possuía, a olhar as coisas que havia na sua sala de estar.

Perdeu a noção do tempo, talvez tivesse dormitado. Ultimamente, acontecia-lhe isto com frequência. Subitamente, como que acordava, sem consciência do que estava a fazer e há quanto tempo estava ali – curiosamente, sabia sempre onde estava, apenas perdendo a noção do tempo.
Sabia que estava em casa, uma velha habitação de piso térreo na zona antiga de Carnide. Uma resistente do antigamente, de um tempo em que Carnide era campo, longe da cidade propriamente dita. Nos últimos quarenta anos, tudo tinha mudado, primeiro aos poucos, mais recentemente com grande rapidez e hoje, aquele amontoado de casas velhas, era quase uma aberração aos olhos de muita gente. Uma aldeia antiga dentro da cidade.

Por vezes, no ameno dos finais das tardes de verão, sentado no degrau da porta, pensava no quão estranho era aquele sítio se ter enchido de restaurantes e de pessoas que os procuravam. Fazia-o observando o vai e vem dessas mesmas pessoas, que lhe pareciam sempre mais preocupadas em encher depressa a barriga do que em apreciar a refeição. Ainda na noite passada, ao ver o grupo de pessoas que se juntou à porta do restaurante que ficava perto de sua casa, tinha estado a pensar em como a vida era cheia dessas coisas que não se percebem lá muito bem.
Entretinha-se a ver as pessoas, a adivinhar-lhes a vida pelas roupas, pelos gestos e pela maneira como falavam. Com a sua idade, achava que conseguia perceber a sinceridade das pessoas à distância, mesmo sem perceber o que diziam umas às outras. Espantava-se com a quantidade de vezes que lhe parecia que alguém dizia uma coisa em que não acreditava.
Ao grupo da noite passada achou piada, pareceu-lhe diferente. Não detectou neles nada dessas coisas que seriam, também, coisas destes tempos de agora, como costumava dizer para com os seus botões. Pareceram-lhe todos um pouco atrapalhados, como se não conhecessem uns aos outros – coisa que, no entanto, não os impedia de estar bastante bem dispostos. Apresentações feitas, cumprimentos trocados, lá foram eles, à procura do tacho. Quando saíram, quase três horas mais tarde, ainda ele lá estava, empurrando uma pequena pedra com o cajado, esperando o sono.
Achou que se tinha enganado, o grupo vinha em tal euforia que, afinal, só se podiam conhecer há muito tempo. Havia ali uma relação forjada num outro tempo, de uma outra maneira, não podiam ter-se conhecido ali, à porta do restaurante. Deixaram-lhe saudades quando se afastaram.

Um súbito arrepio nas costas arrancou-o à memória da noite passada - talvez tivesse estado a sonhar. Levantou-se a custo para ir fechar o postigo, não se podia dar ao luxo de se constipar. Ainda na véspera a senhora da padaria o tinha lembrado de que podia ser vacinado contra a gripe mas, com a reforma que tinha, como é que iria comprar a vacina? O dinheiro estava todo contado e não havia margem para essas coisas.
Lançou um último olhar pelas coisas da sua pequena sala. Aquela luz, ainda que filtrada por uma ténue nuvem, dava vida a todos os objectos que lá estavam, algo que a luz artificial não conseguia fazer. Estava a saber-lhe bem estar ali, a olhar para a decoração que um dia a sua mulher tinha escolhido para trazer alguma vida aquele espaço. Permitia-lhe recordá-la. Mas agora tinha mesmo é que fechar o postigo, eram um perigo as correntes de ar.
Ao aproximar-se da porta, deteve-se. Trazido pela brisa, um cheiro doce invadiu-o. Que era aquilo? Lembrava-lhe algo. Se ao menos pudesse confiar na sua cabeça… Dos restaurantes não podia vir, aquela hora estavam todos fechados.

Saiu. No meio da rua, concentrou-se e esperou. Sim, era isso: farturas!


sábado, setembro 02, 2006

Ausência

Eu sei que ainda há pouco tempo regressei de férias, mas já estou de partida para novo período de ausência. Não é por querer, é porque tem que ser assim.
Desta vez os banhos são de mar e a sul. São só duas semanas, passam depressa.

Mas não vou sem deixar uma história, apenas desta vez não é contada em letras seguidas, desta vez é em imagens.

Encontram-na aqui

Até já.