quarta-feira, março 10, 2010

Papel de Embrulho

sei de um alfarrabista – homem da idade dos livros que vende – que embrulha as obras em folhas de lista telefónica. coisa estranha para mim, mas nunca juntei a coragem suficiente para lhe perguntar porquê. certa vez, ao lá regressar depois de um espaço de tempo maior que o habitual, tive que me deter antes de atravessar a rua. à porta dos livros, ou eu estava muito enganado, ou era o vulto do alfarrabista que se debatia com a nuvem que se soltava de um assador de castanhas – daqueles que têm motocicletas atreladas. o estranho não era ele estar ali, era apenas ele estar ali. atravessei e fui logo perguntando, não me diga que agora vende castanhas. está bem, não digo, respondeu ele com uma malandrice que lhe não adivinhava. e sem perder balanço ou pedir licença, continuou com as palavras. entre o espanto e a surpresa, escutei. sabe, os livros têm esta coisa de me por a pensar. não me põem a comer, mas a pensar, é fácil; e a pensar em tudo. no outro dia foi nas listas telefónicas. tristemente, acumulei demasiadas. o que fazer com tantas, dei por mim a cogitar. reciclar. não, isso era sinónimo de derrota, só me lembrava braços caídos; daí a lembrar-me das castanhas foi um pulo epistemológico, e cá estou. arrendo este assador até aos Reis, continuo com os livros e compõe-se o orçamento. o melhor de dois mundos. ele com aquela conversa e eu só a pensar nos livros embrulhados em números de telefone e moradas. era agora ou nunca que lhe perguntava como lhe baixara tamanha ideia. ouça cá... cortou-me a frase um tipo com umas bochechas gordas, a segurar uns papéis enxovalhados e que parecia ter acabado de correr uma grande corrida. soluçou ele, boa tarde. e depois ficou a ofegar e a raspar com as costas da mão o suor da testa. na traseira do colete que ele envergava topei-lhe uma sigla. ele, de novo, ainda às voltas com o pouco oxigénio e com o fumo, o senhor... não sabe... que não pode... estar a fazer isso. custou-lhe tanto a frase que nem lhe colocou interrogação. eram quatro letras brancas em fundo negro, grandes e que, à primeira, me tinham parecido soletrar AZAR. deixei os homens a cuspir já frases pouco pensadas e entrei no estabelecimento dos livros. em cima do balcão, seis listas telefónicas aguardavam a vez de serem esventradas. pouca sorte a delas.

15 comentários:

R. disse...

Ou muita sorte, talvez. Depende do destino. Se servirem para embrulhar preciosidades literárias, terão "dado a vida" por uma nobre causa...

Alberto Oliveira disse...

... já não bastavam as dificuldades com o computador (nem consegui ter acesso ao link dois posts abaixo que me sugeriste), um bacano ter de se desviar dos carros que tens por agora no topo dos textos até alcançar os ditos e ainda por cima, um título que me deixa a cogitar negativamente - e em dia de apanhar espanhóis pela frente, sem o rapaz da Meia-Laranja para resolver alguns "problemas técnicos - convenhamos que é demasiada fruta para o meu gosto, não contando com a banana do peixe(?!) do post anterior.
Se conseguir editar este comment já me darei por satisfeito, é o que te afianço com o coração nas mãos e o fígado aos pés.

Maria Liberdade disse...

E agora só me apetece umas castanhas!!!

S disse...

E eu que andava a matutar em como 'ajeitar' o meu orçamento! Talvez seja esta a minha solução, vender castanhas e ainda posso tirar fotos a quem passa... não tenho é listas telefónicas.

Rui disse...

R.,,

o movimento naquela loja dá-me ideia que não se movimenta. ou seja, listas telefónicas a amarelecer entre paredes.


legível,

esse teu computador parece um lagarto antes de comer um toffee. não clicas nos links, ficas a perder. e olha, boa sorte para a chicuelina - e a ver se não me cantam a marselhesa aos ouvidos.


Maria Liberdade,

liberdade, igualdade e fraternidade? mau maria...
o que tu queres, sei eu.


ss,

mas olha que o tempo da castanha já lá vai de braço dado com a gripe a. se queres ajeitar a coluna dos créditos, tens que pensar em produtos da época que chega. flores, por exemplo. embrulhadas em fotografias tuas.

S disse...

E depois vou dizendo vezes sem conta, à medida que vendo as flores, "The rain in Spain stays mainly in the plain"!
;)

R. disse...

É pena... Talvez as castanhas promovam algum dinamismo :)

Alberto Oliveira disse...

... pois lá teremos de fazer esse enorme? sacrifício de dar trabalho aos dentes e ao palato. Assim que o sol abra um pedaço mais os raios, claro.

(eu já estava a adivinhar que aquele rapaz que joga com mais facilidade as pernas dos adversários que a bola, ia para a rua. Provavelmente comer castanhas... )

via disse...

confesso que quando gosto de um livro isso dá-me imensa fome. deve ser uma exaltação de prazeres, maybe! aos alfarrabistas!

Rui disse...

legível,

lá estalou a castanha na boca



via,

a eles!

Nobody disse...

deste-lhe o teu numero de telefone?

Anónimo disse...

Mas que raio de palavras que sabem tão bem! :) Melhor que castanhas!

lélé disse...

Pois... A vender castanhas assadas a esse ritmo, se não fossem os livros, como é que o alfarrabista havia de dar vazão às listas telefónicas?

E o tipo do colete e bochechas gordas devia ter mais azar do que as listas telefónicas... Afinal, ninguém estava a comprar castanhas assadas!...

Rui disse...

Nobody,

ele que vá pelos seus dedos


Morgaine,

com a vantagem de sair mais em conta. obrigado


lélé,

ninguém toca nos assados nem nas letras

Unknown disse...

Uma narrativa bem urdida, Rui.

O que interessa nunca é o embrulho.
Mas se ele contiver castanhas doces, quentinhas, é bom; se também tiver livros com narrativas perfeitas, então acrescente-se-lhe uma boa e doce meia-dúzia de castanhas e tudo será ganho.

Um abraço

(Em A Voz das Palavras há uma equipa de 4 elementos que aguarda a tua visita e o teu excelente espírito crítico.
Aparece.
Saudações do Sam, da Eva do Miguel e do JPD)