terça-feira, março 02, 2010

O Peixe Banana

Entrando na biblioteca, ela:

– O que é isto? Um homem empoleirado!? Mas que faz o senhor aí?

– Peço perdão, mas também não sei.

– Oh! É possível?!

– Não sei, palavra de honra.

– Simplício…

– Mafalda…

– Céus! Como te encontras aqui?

– Mas tu… és tu?

– Mais baixo, que podes comprometer-me. Mas diz, porque viste? Procuravas-me?

– Há 30 anos! Mas és tu a pantera… ou quer dizer, a marquesa?

– Sim, sou eu. Mas por onde tens andado para só agora me apareceres?

– Sei lá. Teus pais levaram-te para Espanha e eu emigrei para África e lá morri.

– Morreste?

– Morri para o mundo, para ressuscitar agora que te tornei a encontrar. E tu, casada?

– Não, viúva. Mas conservei-me sempre fiel ao meu primeiro amor, que foste tu.

– Também eu, Mafalda. Fiel como o cão de Guerra Junqueiro.


Consegue recitar de memória os principais diálogos dos filmes portugueses mais populares. Os antigos, claro, os bons filmes, aqueles que enaltecem os valores certos, que ele aprendeu a cultivar e a apreciar nos outros; nada como os filmes de agora – e “agora” significa mais de três décadas – onde apenas há violência, decadência, amoralidade, corpos despidos e almas nuas. Não que o saiba por experiência própria, que não entra numa sala de espectáculos desde o reviralho caryophyllus, como chama ao 25 de Abril, mas continua a ler nos jornais o que por cá se vai fazendo, e bastam-lhe os resumos dos enredos para saber que o cinema português está entregue a uma corja amalgamada de pseudo-iluminados que tudo quer expor, de preferência, em carne viva: corpos e espíritos. Que é feito de uma Maria Matos e de um António Silva? Os bons actores tinham desaparecido com os bons filmes.

Recorda o diálogo entre dois dos seus actores preferidos, d’ O Costa do Castelo, ao entrar no Jardim Guerra Junqueiro – mais conhecido como Jardim da Estrela.

Apesar de não ser propriamente um jardim de recantos, consegue encontrar lá, nalguns locais, durante certas horas de certos dias, o sossego interior que, às pessoas como ele, apenas vem quando estão ao ar livre: uma calma não inteiramente pacifica, em que o som da cidade faz falta como ruído de fundo, filtrado que chega pelas copas das árvores centenárias e pelo deambular errante das outras pessoas velhas que por ali esgotam algum do tempo que lhes sobra. Um sossego não tão profundo como aquele que se apodera de uma pessoa de uma certa idade que vive sozinha num pequeno apartamento ainda mais antigo que ela, rodeada de coisas que apontam para trás, para o que já foi. A isso, ele chama desespero. E, portanto, sempre que pode, vai para a rua.

Aquele pedaço do jardim é o seu predilecto. Tem um muro coberto de vegetação quase a toda a volta, um pequeno charco que o torna fresco nos dias de calor, muita sombra, a estátua de um escritor e poeta que faz boa companhia e não tem onde sentar – não havendo bancos, ninguém por ali se demora muito. Apesar da idade, o facto de as suas pernas não o deixarem ainda ficar mal, enche-o de orgulho – e é também para sentir essa satisfação que por lá se demora. Mas é uma satisfação que não partilha com ninguém: não porque não quer, apenas porque leva uma vida em que os afectos foram sempre uma coisa acessória e dispensável; algo a que nunca sentiu a falta. Uma sucessão de relacionamentos inevitavelmente rarefeitos, em que foi cumprindo intermitentemente, mais por obrigação que por convicção, aquilo que considerava serem os preceitos obrigatórios de uma relação entre duas pessoas, tinham-lhe sido suficientes para a condução de uma vida… suficiente. Nunca teve porque se queixar, até ao dia, já tarde na vida – e não imagina sequer a razão –, em que sentiu a falta de algo, para logo perceber que não era de algo, mas sim de alguém.


Não consegue deixar de sentir que, lá do alto, Antero de Quental o contempla com uma expressão de absolvição e isso chateia-o um pouco. Quem julga Antero que é, que sabe ele da sua existência, para proferir assim sentença?

Mas já olha em redor, certificando-se que está sozinho. Leva a mão a um dos bolsos da gabardine e tira um saco de plástico transparente, que eleva à altura dos olhos. Fixa a mancha vermelha que se agita no ambiente líquido e toca ao de leve no saco, como forma de encorajamento. Acaba por achar melhor verbalizar o que lhe vai na mente, não fosse a mensagem não chegar ao destinatário. Murmura brevemente sobre as agruras da vida, os obstáculos que é preciso superar, os inevitáveis sacrifícios que há que fazer e as escolhas difíceis com que somos confrontados, quando se quer ser alguém. Olha novamente por cima dos ombros, antes de se colocar ao lado da estátua, na relva húmida, não se importando em sujar os sapatos de lama. Agacha-se junto do charco, desata o nó do saco e despeja o conteúdo com cuidado. O peixe dá uma volta sobre si, vai ao fundo, volta à superfície e, durante algum tempo, ali fica, imóvel.


Àquele homem já de idade, que na tarde cinzenta de Inverno, no Jardim da Estrela, em Lisboa, está agachado junto à água, parece que o peixe lhe devolve com o olhar o sentido das palavras que lhe acaba de dirigir. Quem sabe não vou encontrar em ti o meu primeiro amigo.


paralelo às cores

13 comentários:

Arábica disse...

Também muito Santo António falou com os peixes...não consta é que algum deles o tivesse olhado dessa forma. :))

Gostei muito Rui, o Jardim da Estrela faz parte da infância das minhas filhas e tenho boas recordações dos fins de tarde lá passados na brincadeira.

Beijos

S disse...

Tão pertinho de minha casa... agora deste-me vontade de sair do trabalho e 'encurtar' caminho por lá.
:)

Rui disse...

ss,

se puderes, repara se o Antero tem companhia :)

Maria Liberdade disse...

Muito bem observado. Como sempre.

Nobody disse...

fui passear a minha cadelinha hoje ao jardim da estrela que ao fim da tarde nos meus olhos já não chovia e sol lá fora brilhava, timido...mas tão meu :D
beijinho*

lélé disse...

Talvez hoje o meu raciocínio, o tal que é lento, muito lento, parado, tenha entendido alguma coisa, vamos lá a ver...
Um homem passou a vida a fazer o que lhe disseram para fazer, relegou os afectos para segundo plano (quinto ou sexto, quiçá!) e agora chega à conclusão que fez tudo errado e pretende ensinar o peixe a fazer tudo certo e o peixe... nada... Mas quem é que é banana?

Rui disse...

Lélé,

O entendimento que se tem deste tipo de textos está sempre certo - mesmo quando quem escreve está a pensar em preto e a quem lê lhe parece branco.


O Peixe-Banana é um que, quando se enfia num buraco, acha-se tão confortável que só come. De tal maneira que depois não consegue sair e lá acaba por morrer (de febre-banana). Remete para um conto do Salinger.
Banana podemos ser todos.

via disse...

lembra-me bem deste diálogo, é delicioso. Uma das perguntas é porque "viéste" e não "viste", não?
assim agora a complexidade da profundidade acaba por ser apenas enfadonha, estes filmes eram soberbos!

Rui disse...

via,

e O Costa do Castelo é dos filmes que tem mais frases emblemáticas, vou-lhes chamar assim. toda a cena de ligar o rádio ("uma torneira a deitar música"), é de antologia.

verdade, mas sem partilhar do extremismo ali do personagem em relação ao cinema português.

lélé disse...

Rui, obrigada pelo esclarecimento. Não conheço Salinger.
A história do peixe-banana, que também não conhecia, permite-me ver o texto com uma outra amplitude, mas... (e isso é que me dói!...) revi-me no diabo do peixe! Sou uma lélé-banana...

Azul disse...

Adoro alguns destes filmes antigos, a que se refere, Rui! E também eu, sei de cor (como você, ao que parece) alguns diálogos. Decorámo-los de tanto os ver e ouvir! Tornaram-se nossos! Meus gostaria que fossem também alguns pedaços de textos seus, tão bem escritos que são! mereciam que os lesse até os decorar!

Gostei muito. Um abraço.

Passe por minhas casas, azul e carmim! Tenhos novos biscoitos!!

Unknown disse...

Gostei deste texto por ser um apelo muito sincero à memória de u tempo onde não preponderava

- a velocidade que foi "insuflada" no nosso quotidiano;
- não havia "efeitos especiais" e outros artifícios nas artes, tanto na cinefilia quanto nas restantes;
- os valores culturais estavam consagrados em obras dos clássicos portugueses mencionados a propósito do Jardim da Estrela
- nostalgia da dimensão desse jardim e uma certa pena de não haver mais assim e até maiores.

Um abraço

(As fotografias do slide-show estão uma maravilha.
Quero acreditar que o gosto já te levou a organizar outras séries tematicas.
Se se confirmar este meu palpite aguardo a sua exposição.)

Rui disse...

José,

O gosto existe e tem-me levado por caminhos que de outra maneira eu não teria percorrido.

O que tenho exposto, encontras aqui:


http://rui179.fotopic.net/

http://olhares.aeiou.pt/Fading


Abraço.