quinta-feira, junho 04, 2009

Mini-Poderes

Apoiou-se com ambas as mãos no lavatório da casa de banho. A cabeça pendeu-lhe dos ombros, parecendo mais pesada que nunca. Sentiu a neblina deixada pelo banho da sua mulher envolvê-lo, como que enviada por Hipnos para o trazer de volta ao leito. Lutou como pôde contra o suave embalo dos deuses, mas as pálpebras continuavam sem obedecer à ordem para se erguerem e deixou-se ficar até que uma inoportuna erecção lhe veio lembrar as imperiosas necessidades que havia que satisfazer.

Saíra da cama há menos de dez minutos e sentia já a culpa das oportunidades desperdiçadas.

A custo, virou cento e oitenta graus e baixou os boxers até aos joelhos. Ficou a coçar o rabo enquanto não foi capaz de descolar as pestanas remelosas. Por fim, pelo canto do olho esquerdo, conseguiu fitar a sanita que, felizmente, foi deixada com a tampa levantada. Precisou de ambas as mãos para fazer pontaria e, no exacto momento em que permitiu a abertura da comporta, teve a certeza que aquele empreendimento ia correr mal: por causa da erecção, por estar ainda mais a dormir que acordado. Não se enganou. Quando a bexiga finalmente se escoou, o seu conteúdo tinha ido parar dentro da sanita, em cima da sanita, e à volta da sanita. Sacudiu-se de alto a baixo, num arrepio e depois, sentindo-os húmidos, abanou ambos os pés, passando, à vez, o peito de cada um pela barriga da perna contrária. Coçou novamente o rabo, conformado com a inevitabilidade das manhãs úteis.

Rodando nos calcanhares, o queixo ainda a não se conseguir desembaraçar do emaranhado de pêlos que espreitavam pela gola da t-shirt, voltou à posição original, no lavatório. Tentou descolar a cabeça do peito, abanando-se, mas todo o corpo se balançou, num gesto de negação.

Maquinalmente, a razão a desafiar a vontade mais profunda, tapou o ralo do lavatório, abriu a torneira, tacteou até à embalagem de espuma para a barba, agitou-a, destapou-a, abriu uma das gavetas, de onde retirou uma lâmina descartável, fechou a torneira e mergulhou as mãos na água fria. Uma onda de choque trespassou-o, soltando-lhe o queixo e quase fazendo os olhos abrirem-se. Dobrou-se então, atirando água à cara, enquanto maldizia a sua vida e tudo o que ela implicava. Repetiu a promessa – nunca cumprida – que fazia de segunda a sexta-feira, religiosamente, àquela hora: que nessa noite se deitaria mais cedo.

Quando se ergueu, lá estava ele, no espelho meio embaciado, mal-encarado como sempre, com ar de que todos lhe deviam e ninguém lhe pagava. Passou a mão pela pequena cicatriz feita na véspera e perguntou-se onde aconteceria a cicatriz de hoje. Uma outra pergunta ecoou-lhe na caixa craniana, propagando-se como um incêndio de Verão, até lhe queimar os lábios. “O que queres ser quando fores grande”?, murmurou. O homem no espelho mostrou-se surpreendido e até chegou a encolher os ombros, sem saber o que responder. Mas havia uma resposta, a mesma que dava quando era infante e que tantas vezes fez sorrir quem o interpelava. “Quero ser super-herói”!

Mergulhou novamente as mãos no líquido frio e, desta vez, não as trouxe à tona, levando antes o rosto a elas. Abriu os olhos debaixo de água e não viu nada, tudo era difuso e inconsistente. Assim como a sua existência, ocorreu-lhe. Ergueu-se em aflição, esquecido que esteve da impossibilidade de respirar. Uma dor funda massacrava-lhe as costas, junto aos rins. Despiu a t-shirt, toda molhada, e procurou nas gavetas uma tesoura, com que cortou os pêlos junto do pescoço, atirando-os para a sanita.

Interrogou-se sobre os motivos daquelas ideias lhe assaltarem o espírito, assim, sem propósito aparente. Talvez fossem apenas sonhos, e os sonhos não se sabe bem de onde vêm, nem porque têm tão estranhos argumentos. Afinal de contas, não estava ele ainda meio a dormir, na casa de banho? Encheu uma mão com espuma e espalhou-a na cara, quase até aos olhos. Manejando a lâmina com movimentos trôpegos, desbravou a face direita, depois a esquerda, o bigode e, quando chegou ao queixo, uma pontada aguda fê-lo perceber que se tinha cortado. Não tardou a que uma pequena mancha escura se propagasse por entre a espuma que restava. Baixou a tampa da sanita e sentou-se. Enquanto observava no espelho, com um misto de atenção e desalento, o ponto cada vez mais vermelho que alastrava lentamente no queixo de um homem que julgou não conhecer, não pôde deixar se considerar as manhãs, em geral, e as casas de banho, em particular, péssimas para reflexões sobre a condição humana. E que os super-heróis não têm barba.

19 comentários:

Anónimo disse...

xixi sentado

:)

lélé disse...

Conheci e conheço muitos homens que só cresceram por fora. Após a leitura do teu conto, vou dar-lhes desconto... Afinal, ser homem não é tarefa fácil!...

Cassandra disse...

Muito bem escrito. Parabéns. A parte da pontaria sanitária é mesmo tramada. Não há dúvida.

Arábica disse...

...mas óptimas como inspiração :)

-Eu gosto especialmente dos diálogos com o espelho :)

Beijos, bom fim de semana!

ze disse...

... já os hiper-(heróis) têm-na rija, e não se amaricam ao espelho!

(nem falham alvos mais difíceis que sanitas)

Leonor disse...

Que começo de dia, que angústia existencial quando ainda nem se acordou!!!

ze disse...

não seja assim Leonor!!!

Azul disse...

Divino, de alto a baixo! Adorei este seu texto Rui. Que descrição absoluta do amadurecimento de um homem à procura de si mesmo, em cada instante das manhãs sempre iguais da vida inteira. Do tempo perdido, da inutilidade de si...

Abraço. Até breve. Azul.

p.s. Como bloguista sem sonhos de qualquer espécie (lol) abri um novo blog. Conto consigo na estréia. lol

www.opinioesdamanjerica.blogspot.com

Anjo De Cor disse...

Conheço um homem de barba rija, que pensava que era um super-heroí qd era mais novo, desperdiçou muitas oportunidades, talvez por pensar que o tempo não andava e nada mudaria, agora muitos anos depois não te sei dizer o que sente, talvez uma enorme sensação faria tudo um pouco diferente... ou será que não? só ele é que sabe...
bjs*

via disse...

cá para mim, isto de deitar tarde neste mundo dá em amanhecer noutro, e até que a estranheza não é má de todo não senhora.

~pi disse...

pensei que o meu acordar de mortes várias

era o pior

mas não,

li agora mesmo que não,,,

embora o diálogo com o espelho
por vezes se assemelhe, fui poupada

ao episódio sanita e à barba,

) serei super-herói sem saber!!?




~

Carla disse...

pr isso o melhor é uma passagem bem rápida pelo quarto de banho logo pela manhã, sem darmos hipóteses ao nosso eu desconhecido de nos interrogar no outro lado do espelhos
dizer-te também do meu livro...In-finitos sentires que vão ser desenhados em papel. O lançamento é no próximo dia 27 de Junho, às 16 horas na Biblioteca de Valongo (Porto)...aparece se puderes
beijo

Eyes wide open disse...

Someday, sr. Malefícios... hei-de eu estar sentada numa das primeiras filas de uma plateia repleta, que te ouvirá dizer... habemus librum! ;)


*

(boa semana!)

Maria Liberdade disse...

Sentarmo-nos tem as suas vantagens... E ajuda à refelexão. Não se voa é rapidamente dali...

mixtu disse...

o de amnhã...
o acordar...a
aí se vê se casámos com mulher bonita...
eu o que faço para não acontecer como o descrito?
a agua quente... o vapor... não me deixa ver totalmente a cara...
a barba já se faz sem se ver...um dia me mafra não havia água... fiquei a saber que não é preciso agua para desfazer a barba...
yayyaya
o xixixi... sentado.. e nada ed deixar a tampa de pé... as gajas detestam...
abrazo e deita-te mais cedo...
erecção... é mais a meio da noite...
cousas de pastor...
excelente escrito... como sempre, qualidade do escolhedor de cromos, yayaya

Angelo Sá disse...

Sem duvida !
www.captiveofmynegativity.blogspot.com

segurademim disse...

... o ritual matinal masculino é algo muito muito estranho

hum...

;)

A disse...

Esse teu super-herói é um bocado fajuto... e sim, os super-heróis têm barba!

:)

Vera disse...

Cheguei vinda de outro lado e gostei do que li. Optei por me tornar seguidora e por aqui hei-de andar a navegar.