segunda-feira, março 02, 2009

Mirita

(este texto começou por ser um comentário a um vídeo/texto no Papel de Fantasia. encontram-no aqui; é o post de dia 16 de Outubro)

Mirita não pode ver uma câmera – seja se filmar, seja de retratar – que logo se vai plantar na sua frente. Não é coisa de sempre, apenas da idade terceira: foi preciso não ter o que fazer, para descobrir tão estranha mania. Todos os dias – fora os de muito frio ou água extrema – sai de casa cedo, cidade abaixo, na direcção da Baixa. Vai à cata de turistas, que é quem mais aponta "essas máquinas do demo, que só existem para me desatinar o juízo", explicou ela, às vizinhas que, um dia, perdendo a vergonha, lhe questionaram "a pancada".

Assim que vê o incauto estrangeiro a enquadrar o que quer que seja, intromete-se na moldura, sem pudor, como quem não quer a coisa, ora a fingir dores nas juntas, ora a pentear a rala melena, ou até mesmo a falar sozinha, mas sempre em pose estudada, de diva – memórias das actrizes, que lhe ficaram das matinés do Paris, e do Odeon, e do Condes, onde Germano, o marido, a levava em passeio domingueiro a ver as fitas. Desde que ele se foi desta para melhor (e ela quer acreditar que ele está melhor “lá”, porque “cá” a Gota o fez sofrer horrores), passa muito do seu tempo a recordar esses passeios de Eléctrico pela cidade; as idas ao cinema e à Revista; o prego que comiam na Estrela Brilhante, no fim da festa, para aconchegar os ânimos. Agora, para além das memórias, sente que apenas lhe restam os "camones" e as telenovelas – que vê sem som, para poder imaginar os enredos.

Coloca-se na imagem para que exista uma recordação dela, tal como ela recorda as actrizes – não importa que não se saiba quem ela é, desde que olhem para ela, por um momento que seja.

No outro dia, desanimada e dorida na sua perseguição às Sonys, Panasonics, Canons e Nikons, decidiu ir para casa mais cedo. Tinha começado a descer os degraus do Metro na Praça da Figueira, devagar, com as artroses a ganirem-lhe de fininho, quando o viu, encostado à parede, ao fundo da escadaria. Empunhava esse objecto maldito, que a hipnotizava, na direcção do céu (ou do que quer que fosse, que ela não é de perder tempo a questionar essa gente estranha que vem de longe). Como está bem de ver, não resistiu. Fez da dor fortaleza e voltou para trás. "Só mais esta, para terminar o dia". Agarrou-se ao corrimão e puxou-se, a moinha a pesar-lhe cada vez mais, a cada degrau que subia. Enquanto se introduzia no enquadramento alheio, ia dizendo baixinho, "vou fazer uma pose dramática, uma expressão de sofrimento, como aquela actriz, daquele filme marroquino, quando o deixa no aeroporto, a caminho de Lisboa... ai, mulher, tu puxa pelas pernas e pela cabeça, como se chama o raio do filme"?


14 comentários:

A disse...

Uma espécie de emplastro no feminino, e de Lisboa. Os loucos de Lisboa...

Belo texto.

Eyes wide open disse...

Simplesmente brilhante...


*

Maria Liberdade disse...

O que a Mirita ia gostar mesmo era de um banho na Caldeira Velha, em S. Miguel. Ia fica baralhada com tanto turista e tanto flash. E ainda podia ser que as águas lhe fizessem bem às "cruzes".

Devaneante disse...

Adorei!...

Inevitavelmente fez-me lembrar o meu conto "O Coleccionador"... é tudo uma questão de que lado se está...

Um abraço

Fenix disse...

Casablanca!

Ahahaha!
Muito divertido!
Velhota gaiteira, hein?!?

lélé disse...

Não poderá dizer que vai desta para melhor sem deixar marca!...

Arábica disse...

Rui,

é engraçado saber onde e como te nascem os seres que habitam nas palavras.

Nascer à boca do metro não é nada mau!! :)

As fotos de Praga, ambas as edições, estão muito boas.

Dei comigo a procurar a Mirita.
Depois lembrei-me que estava fora do seu raio de acção :)

Beijos para vocês

~pi disse...

completamente a sério,

como os espelhos,

(ser como não ser

ser como também ser,

ou dedicar-se à escuta das paredes brancas (repito,

musicais



belas, belas pragas-fotos :)



beijo




~

Azul disse...

Olá Rui. Os loucos de lisboa....

Deixo um novo espaço para visitar, comentar, participar...

Obrigada. um abraço. Azul.

www.arroz-de-grelos.blogspot.com

JPD disse...

Olá Rui

Lembro-me da edição do Alberto, sim senhor, e acho este teu texto muito bom.

Estas crónicas sobre Lisboa estão cuidadas e são fidedignas.

Isso é excelente.

Agora, encontram-se à venda por aí, uns passadores de slides que parecendo molduras, têm uma capacidade quase inesgotável de exibir fotografias.

Para mim têm algum interesse mas também não deixo de reparar que com a digitalização, se introduziu uma certa velocidade no fascínio do saudosos daguerriotipo (Espero não estar a errar)

Desde o «Olha o passarinho» até obter a revelaçã passavam dias de angústia até podermos ver resultado de poses estudadas e ansiedade assumidas.

Com as polaroides passou a ver-se que se fotografara e poder repetir certos enquadramentos.

Agora com a digitalização, é o que se sabe.

O fascínio da fotografia mantêm-se
Mas há algo que o transformou de certa maneira...

Claro que gostei da fotos que tu editaste sobre Praga.

Um abraço

Rui disse...

Caro JPD,

Sou daqueles que sente alguma nostalgia por essa espera ansiosa sobre que verdade estaria emulsionada na película fotográfica, que surpresas, boas ou nem por isso, nos seriam reveladas e nos fariam sorrir ou desesperar. Lembro-me de, chavalito novo, achar um atraso de vida o estúdio fotográfico lá da zona demorar dias a revelar as fotos, da impaciência pesada que era a posse da prova de compra - que eu fazia caso de proteger de uma forma devota.
Já com as digitais em força no mercado, fiz uma coisa que me faz lembrar aquele senhor de La Mancha: gastei para cima de muito dinheiro numa câmera das antigas, Reflex. Mas apenas para sucumbir ao progresso, pouco tempo depois - a falta de jeito não se atenua tão facilmente, no filme e a boa vontade, apenas, não chega.
Sinal dos tempos, também a Polaroid foi vitima do progresso: anunciou que vai deixar de produzir o filme que a tornou célebre. Mais uma porta que se fecha e uma memória que começa.

Alberto Oliveira disse...

Era fatal como o destino que mais tarde ou mais cedo, alguém acabaria por me meter na pele de um personagem de uma sua história, dispensando o crivo do casting. Não é menos verdade que apenas apareço no final do texto mas é uma figura cheia de vitalidade, vinda quem sabe de um país nórdico e com uma câmera de filmar o íntimo de qualquer português que se ponha a jeito.
Mas felizmente que foste tu, que me fizeste estrear nestas andanças, pois sabias o que eu poderia dar e até onde poderia ir. O que não é difícil, visto que os meus vídeos são famosos na casa onde resido e a rede do Metro de Lisboa não é assim tão grande como isso.
Obrigado Rui! e já sabes: sempre que precisares, nas tuas histórias até não me importo de fazer figuração...

abraço.

Jaqueline Sales disse...

Como bem disse Erasmo de Rotterdam, "Os loucos abrem as portas; os sábios, adentram por elas". Um pouco de aparente loucura tem uma grande dose de aparente sabedoria.

BeijUivoooooooooooosssssssss da Loba

Desconhecida disse...

excelente e divertido texto.

Gosto de te ler ;)

beijinho