quinta-feira, outubro 23, 2008

Avenidas Velhas (4)

Ir beber um café à Mexicana era um hábito antigo. O cada vez pior serviço de mesa, algo a que jamais se habituaria. Procurou o empregado de mesa, novamente sem sucesso. Deixou as moedas na mesa, junto ao pires e abandonou a esplanada. Por receio que algum pedinte ou um dos miúdos que ali preenchem as tardes, em vez de estarem na escola ou a trabalhar, comunicando entre si através de grunhidos e palavras ofensivas; os mesmos que obrigam as senhoras e os cavalheiros de sempre a bater em retirada para o espaço interior – quando não, a ficar em casa – as levassem, nunca antes a tal se atrevera. Enchia-o de terror a ideia de ter um empregado, disparado rua a baixo, atrás de si, para lhe exigir o pagamento. Não se julgava capaz de resistir a tamanha vergonha. Mas não agora. Naquele momento, não queria saber disso.

Colocou-se muito direito, paralelo ao poste de iluminação, numa das extremidades da esplanada. Agitou ligeiramente as pernas e os dedos dos pés. Sentia-se um atleta de alta competição, momentos antes da partida para a prova mais importante da sua vida. Abotoou um botão do casaco e deixou-se ficar. O tiro de partida há muito havia soado, mas ele ficara nos blocos de partida, a contemplar o amarelo da tarde, que começava agora a desvanecer-se no cinzento com que os telhados da Guerra Junqueiro iam preenchendo as fachadas dos prédios. Agora que reparava, achou diferente aquele amarelo e aquela rua, que conhecia tão bem.

Sempre vivera na mesma casa, um quarto andar de divisões amplas e pé direito desafogado, ali ao lado, na Praça de Londres, com vista para a Igreja de S. João de Deus. Fora educado sob a sufocante protecção da mãe e da sua irmã, a tia Quitéria que, solteirona e muito beata, se mudara lá para casa após a súbita morte do pai, era ele adolescente, e que, até à noite da véspera do seu vigésimo primeiro aniversário, lhe leu salmos bíblicos, vinte versículos de cada vez, na cama, para ele adormecer “com os anjos”. Da juventude, a memória que mantinha mais viva era a de, quando tinha dez anos, num raro momento de rebeldia, se ter escapado de casa para ir ver as vacas que habitavam do outro lado da rua, em barracões toscos e precários, no terreno onde foi depois construída a igreja. Recorda-se perfeitamente do fedor lhe ter dado vómitos e de ter sido envolvido por nuvens de moscas; de ter ficado todo sujo de lama e palha e de como as vacas lhe haviam parecido animais desproporcionados e exóticos, como aqueles que havia no livro que estava a ler na altura, a “Viagem Ao Centro da Terra”, de Julio Verne…

Sentiu uma tontura e a boca subitamente seca. Desequilibrou-se ligeiramente e quase deu um encontrão num homem que passava, com uma mochila às costas e uma cadeira na mão. Quis pedir desculpa, mas teve de se apoiar no poste quando um arrumador de carros começou a berrar, ao seu lado, “pode meter aí, é à confiança, venha, venha…” Retirou a folha do bolso do casaco e desdobrou-a. Passou de relance os olhos pela tabela com os dias da semana e valores correspondentes, antes de a amachucar e atirar para o caixote do lixo. Em vez de descer a rua, como sempre fazia aos sábados, depois do café, voltou para trás.


* * *

Com um gesto rápido e seco, fez deslizar a lâmina da guilhotina uma última vez. Já as tinha cortado ao meio e depois retirado algum excesso das extremidades. Juntou todos os pedaços que sobraram e colocou-os num saco de plástico grosso e preto, que fechou, atando com uma fita amarela. Antes de vestir o avental e as luvas, colocou um Gauloise nos lábios. Sentiu dificuldade em ver e esfregou os olhos, com as costas da mão.

Estava a trabalhar de pé, na mesa de trabalhos manuais – como lhe chamava –, virado para a porta. A luz da tarde continuava de um amarelo diferente e estava a ser espremida para fora, pelas sombras da arrecadação. Num primeiro momento, apressou-se. Cortou com o x-acto duas tiras rectangulares de cartão e espalhou cola sobre elas, bateu contra a mesa o conjunto que tinha acabado de cortar, para ficar ao mesmo nível e, em dois pedaços maiores de cartão, colou cada uma das tiras. Juntou tudo, examinando com cuidado o resultado. Estava longe de estar perfeito, o que lhe provocou um gesto de desalento. Talvez se conseguisse retirar a parte colada…

Dirigiu-se à porta, interrogando-se do porquê de tanta pressa. Olhou o céu, confinado pelos prédios altos que cercavam o pátio. Mordeu o cigarro, quando a tentação de o acender o mordeu a ele. Mais um dia, pensou. Ou será menos um dia?

Outrora, tinha sido um ser animado por grande força física e psicológica. E inúmeras vezes se valeu de ambas para superar agruras e vicissitudes várias – as normais de quem vive a vida –, sem perder tempo com reflexões pseudo-filosóficas – que considerava nada terem a ver com a sua maneira de ser –, sobre os seus actos e atitudes perante os acontecimentos e as pessoas. Passava à frente disso, imperturbável, e das observações sobre o peso da sua consciência que, segundo algumas pessoas – poucas, a mulher, basicamente – lhe deveria ser cada vez mais difícil de suportar. Não era, nunca havia sido! E quando pousava a cabeça na almofada, à noite, não lhe custava adormecer.

Naquele pátio, bem no coração da cidade, à soleira da porta, estava um homem magro e atarracado, que não se lembrava da última vez que se tinha penteado e feito a barba, a quem todas as articulações doíam e cuja carne, a cada dia que passava, regredia dolorosamente para os ossos, dando-lhe o aspecto de um grande boneco velho e rigidamente articulado. Sentia-se uma marioneta desengonçada, dotada de vontade própria, mas sem propósito. Nas muitas horas em que vigiava a madrugada através da janela do quarto, sem conseguir enfrentar a almofada, frequentemente lhe chegava o temor frio e agudo de, um dia, descortinar para si, finalmente, um objectivo e não ter, então, préstimo no corpo.

Surgiu no céu uma mão, de cujos dedos saiam longos fios brancos, que se estendiam em todas as direcções e se agitavam com o vento. Com o olhar, seguiu um desses fios, que vinha na direcção do pátio. Deixou de o ver quando percebeu que estava a ser observado por um rapaz. Teria uns cinco anos e estava formalmente vestido, como se aquele fosse o dia da primeira comunhão, ou do seu casamento. O cabelo era forte, denso e revolto, do mesmo amarelo-forte do céu. O olhar duro, como nenhuma criança de cinco anos tem. A expressão, vagamente conhecida, a lembrar-lhe alguém.

– Anda, não se deve ficar assim, a olhar para as pessoas – uma senhora puxou-o pela mão, para dentro de um carro que ali estava estacionado.

O rapaz colocou-se de joelhos, no banco de trás e fitou o homem, pelo vidro, à medida que o carro se afastava. Levantou o braço esquerdo, mostrando-lhe a palma da mão.

Atirou o cigarro fora. Retirou vários volumes de uma das inúmeras caixas, pegou na cadeira desdobrável, fechou a arrecadação à chave e foi para casa. Tomou banho, fez a barba usando sabonete azul e branco para fazer espuma, penteou-se o melhor que conseguiu e vestiu umas roupas antigas, que lhe ficavam largas. De seguida, limpou com um pano os volumes que trouxera e colocou-os numa mochila, que colocou às costas. Pegou na cadeira e desceu.

Ainda tinha algumas horas de luz, havia que a aproveitar. Atirou um cigarro para a boca e atravessou a Avenida de Roma para o passeio que faz de separador central.

Parou subitamente. Estava-se a ver na casa de banho, ainda agora, a fazer a barba, a cara cheia de sabão. A expressão no espelho…




Boomp3.com

10 comentários:

Devaneante disse...

Onde irá ele, de cadeira na mão e mochila às costas, da Avenida de Roma até à Guerra Junqueiro?...

Aqui ficamos em suspenso, esperando por mais avenidas...

Vanda disse...

Rui,

e lá nos levas tu de espanto a tiracolo, por essas ruas fora...

onde iremos nós com ele?


Beijos e um bom fim de semana!

Alberto Oliveira disse...

... para a Luz não vai de certeza que não precisa da cadeira para nada... a menos que tenha um lugar cativo rente ao relvado...

Também não me parece que o autor, o seja capaz de fazer desaparecer da história por via de uma panada dada por um autocarro da Carris, quando se apresta a atravessar a Avenida de Roma.

É bem capaz de ir apanhar o metro para os Restauradores e ficar de cadeirinha a ver o fórmula 1 a descer e a subir a Avenida da Liberdade.

Também pode ser um "pintor de domingo" e vai até ao Terreiro do Paço "fazer" uma vista do rio com gaivotas e tudo. Mas onde é que ele tem o cavalete portátil, e a caixinha dos óleos e dos pincéis?

A menos que... A menos que eu esteja calado e deixe o homem respirar à vontade dentro da história.

lélé disse...

Lembrou-se de repente que a expressão que tinha visto na sua cara ao espelho da casa de banho não lhe era conhecida?...

Kruzes Kanhoto disse...

Boa prosa!

Eyes wide open disse...

Um está na Avenida de Roma... o outro sobe a Guerra Junqueiro... cá para mim, vão encontrar-se no Magnólia do Londres para degustar um parfait de chocolate ;)


(Ai a Mexicana, a Mexicana... havia tanto a dizer sobre os deliciosos suspiros da Mexicana... sobre os tempos em que tinha uma vista simpática da janela do meu gabinete para esta esplanada e para a GJ. Sem dúvida, um dos locais da cidade onde mais gostei de trabalhar.)



*

ROSASIVENTOS disse...

adocei este poema existencial

comecei por engolir as fotos, comecei pelos caminhos a preto e branco, continuei, acabei na cruz, e depois,, depois

a música,,

[ sou agora uma serpente

alongada, digestada,,,

até

até quando não sei,

~pi disse...

e viu-se O outro

[ ali assim sem contar,

frighteninnnnnig!!



~

Azul disse...

Olá Rui. Passe por minha casa Azul. Preciso do seu calor por lá. Obrigada. Até breve. Azul.

APC disse...

Ah, decidiste situá-lo no espaço. Com que então, ele é Tuga!...

Curioso... Ainda hoje me lembrei da Guerra Junqueiro, ao ver, na TV, a notícia dos despedimentos feitos pela Marks & Spencer (lol).

Será que havia mesmo vacas, ali onde é a Igreja da Praça de Londres?... É, deves sabê-lo, sim.

Adorei a descrição do velho; e a da criança. Inspirado e inspirador!

"Mais um dia, pensou. Ou será menos um dia?" - tenho uma dúvida muito próxima dessa, lá para as minhas bandas, também. Indeed, a vida é mesmo, só, o que sentimos.

E o que será essa tal tabela semanal? Se forem os níveis de colesterol, isso faz do tipo um ET!

:-)

Estranho, ele, não? Um tanto obsessivo; ou apenas moído pela vida e parando, pela primeira vez, para se sentir? E o que faria ele que pudesse levar outrém a crer que lhe pesasse na consciência?

... Será um destruidor de livros? Um censor dos tempos modernos?...

Das fotos, já não digo de quais gostei mais, porque já são muitas!

Acaso já te desejei um belo 2009?