quinta-feira, outubro 09, 2008

Avenidas Velhas (2)

Chamavam-lhe Fogg. Talvez julgassem que o não soubesse, mas ele tinha perfeito conhecimento da alcunha por que era conhecido na Faculdade de Letras. Certo dia, na sala dos professores, passando despercebido atrás de um jornal, tinha escutado um distinto colega referir-se a si como “aquele Fogg é tão hirto de ideias, como é de movimentos”. Discordou. Não que tivesse confrontado o colega com isso, que o seu temperamento era tudo menos conflituoso, tinha-se apenas limitado a discordar de si para si: ponderou a questão, analisou-a sobre vários pontos de vista, argumentou a favor e contra ela, concluindo, sem o menor vestígio de dúvida, que não era hirto de ideias; muito pelo contrário, uma vez que estava sempre disponível a escutar outras opiniões e a procurar sempre informar-se sobre todas as particularidades das questões em análise, não lhe causando qualquer transtorno, mudar de opinião.

Só recentemente, no entanto, ficou a saber que a sua alcunha não tinha a ver nevoeiro, como sempre pensara. Tendo-se doutorado e depois leccionado, durante vários anos, em Oxford, julgara que era daí que lhe adviera o petit nom: do típico nevoeiro britânico e do facto de ter regressado à faculdade em que se formara como o seu salvador, uma vez que, depois de vários anos de decadência na qualidade do ensino e da infra-estrutura, o Reitor tinha-o convencido a regressar, com o “desafio estimulante” de refundar a Faculdade, prometendo-lhe todo o apoio moral e financeiro. Tendo ouvido, nos primeiros tempos e por mais de uma ocasião, o nome de D. Sebastião associado ao seu, só podia ser essa a origem de tão bizarra alcunha.

Ingenuidade sua. Afinal, não estando completamente errado, não se tratava da imagem de um salvador saído da neblina, mas sim da comparação entre si e Phileas Fogg, o personagem central da “Volta Ao Mundo Em Oitenta Dias”, a obra de Julio Verne.


* * *


Vivia num prédio alto, no centro da cidade, de onde se viam muitas árvores, ao longe, e os aviões a endireitarem-se com a pista principal do aeroporto. Apesar da vista desafogada, desde que enviuvou, passava a maior parte do tempo na arrecadação/garagem que possuía nas traseiras e que dava para um pátio sem saída. Era um sítio sossegado, apesar de procurado para estacionamento, e a vista da janela nunca lhe tinha pertencido. Apesar da obscuridade da arrecadação, raramente acendia a lâmpada que caia do tecto, preferindo manter a porta aberta e aceitar a luz que cada dia lhe oferecia.

Não possuía carro, estando o espaço ocupado, a toda a volta e até ao tecto, por estantes de metal, repletas de caixas de todos os tamanhos e formatos. Encostado a uma das estantes, estava um pequeno escadote e uma cadeira desdobrável. No centro, havia uma mesa relativamente grande, cheia de objectos espalhados ao acaso: uma guilhotina para papel, dois pincéis, uma lata de cola, uma pistola para aplicar cola a quente, várias folhas de cartão, duas tesouras, dois pequenos tornos e um x-acto. Existia uma segunda mesa, colocada junto à porta. Era mais pequena e também estava desarrumada: de um lado, duas pilhas de papéis – uma de folhas em branco e outra, mais pequena, de folhas manuscritas – e do outro, um maço de tabaco e várias esferográficas. Uma cadeira almofadada, com pedaços de espuma a espreitar, completava o cenário soturno e frio, onde ele passava as mais das horas.

Sentou-se e colocou um cigarro ao canto da boca. Um pardal aproximou-se da porta e saltitou brevemente, até desaparecer. Puxou uma folha em branco e no topo, a preto, escreveu: “Pensando em Ti”. Por baixo, a azul, “Esta manhã… não, era ainda noite, lembrei-me de ti”. Era uma letra pequena e irregular, nervosa, o que contrastava com a aparência do homem sentado na penumbra da manhã.



(ou quando a sujidade da câmera, se torna indisfarçável)

Boomp3.com

10 comentários:

Maria Liberdade disse...

Muito bom. Encontram-se?

(quanto à Atlantida não há sujidade que afecte tamanha arte)

Azul disse...

Olá Rui. Estes conjunto "Avenidas velhas" está soberbo. Nada mais posso ou devo acrescentar. Que bom foi vir aqui de propósito para o ler agora, e encontrar estes pedaços de escrita magníficos, que tão bem retratam e revelam a realidade da solidão de alguém. Gostei tanto... Um abraço. Até breve. Azul.

Leonor disse...

e, para quem era hirto, o seu movimento da escrita (e do pensamento) foi recompensado?

lélé disse...

Mais uma história recheada de emoções...
A solidão na velhice é uma coisa que assusta toda a gente e, no entanto, tanta gente cai na armadilha!...

Quanto às fotos, não vi a sujidade. Estão óptimas!

Carla disse...

se o texto me encantou as fotos deliciaram-me
beijos e bom fim de semana

Alberto Oliveira disse...

... ná... isto olfacta-me a romance negro e o man deve ser primo (afastado geograficamente) do Hannibal que procura atrair à teia diabólica da sua mente perversa uma desprevenida Clarice.

Que ela não se cuide e sentirá na pele a utilidade de duas tesouras, dois tornos e um x-acto. Da pistola de cola nem é bom falar...

Eyes wide open disse...

Não há sujidade que roube a beleza à Atlântida, nem crise de inspiração que te roube o dom da escrita a ti, senhor Malefícios...


*

JPD disse...

Belíssimas fotografias, Rui.
Um abraço

Vanda disse...

Rui,


O homem sentado na penumbra da manhã é uma imagem forte, que fica.


Para onde vai ele?


As fotos, como sempre, são espectaculares!

APC disse...

Tenho a dizer-te que consigo visualizar a tua personagem. Não apenas os seus cabelos revoltos, fartos e grisalhos (ah, pois!), mas também algumas feições que, por enquanto, sou eu que lhe empresto.

Tenho a dizer-te, também, que fui, num pulinho, ao teu site das fotos e, não tendo visto todas, fiquei presa a uma igreja algures nos Açores. Diz-me que concorres com as fotos que tiras, s.f.f. Excel!

Por fim, se mo permites, achei dois regressos na mesma frase (mas eu sou uma viciada nestas coisas, está bom de ver). Desculpas? Aqui:

"(...) do facto de ter regressado à faculdade em que se formara como o seu salvador, uma vez que, depois de vários anos de decadência na qualidade do ensino e da infra-estrutura, o Reitor tinha-o convencido a regressar".

E agora vou buscar qualquer coisa para comer, que fiquei cheiínha de vontade de te ler até ao fim! :-)