sábado, maio 24, 2008

O Jogo da Bola

Numa sucessão de movimentos rápidos e imprecisos, o jogador do Benfica tocou a bola para a linha lateral e depois para a frente. Com a progressão dificultada pelo jogador do Sporting, levantou a cabeça e chutou na direcção do jogador do Porto que, no centro do terreno de jogo, tinha estado a esbracejar por atenção. O público reagiu com a indiferença do costume, não se ouviu um ai de espanto, um assobio, uma interjeição rude e mal-educada. Entre a assistência, as conversas continuaram as de sempre – o tempo que ninguém entende, a crise, as dores do corpo e do espirito –, a sueca a ser jogada no muro e nos bancos, o casal de namorados a beijar-se como se não houvesse amanhã.
Mas a bola não chega ao jogador das listas verticais azuis e brancas, interceptada que foi pelo fã dos Iron Maiden que, numa finta atípica, deixou para trás o adversário da camisola do Che Guevara e correu desalmadamente, pelo relvado a fora.
Como acaba por acontecer a todos os que intentam acções, quando para elas vão desprovidos de alma, o metaleiro não obteve sucesso. Projectando-se num carrinho que lhe deixou os calções verdes ainda mais verdes, o jogador da selecção nacional tomou posse do esférico, fez uma tabela com o colega da t-shirt branca com mangas azul-bebé e isolou-se. Perante a iminência do golo, quem estava sentado não se levantou, tal como não se levantou um clamor de antecipação, no estádio.
O guarda-redes da camisola “Jesus Te Ama” deu dois passos à frente, afastou as pernas, fincou os pés na relva e baixou o centro de gravidade, ao mesmo tempo que abria os braços. O seu olhar revelava a ausência de medo que a determinação e a fé acarretam. O avançado, que estava agora muito próximo, tocou a bola para o lado e, no momento em que se ouviu em coro “chuuuuuta”, rematou em trivela e com quanta força tinha.
Nenhum jogador questionou tão duvidosa opção quando a bola ultrapassou a linha de fundo, longe da baliza – ouviu-se apenas um “fénix! sempre a mesma coisa!” Mas houve um protesto vindo de fora das quatro linhas imaginárias: uma senhora, que empurrava um carrinho de bebé, sugeriu – usando terminologia que aqui não é reproduzida – que fossem todos jogar para… outro estádio.
Não a ouviram, que um ataque rápido, na direcção da baliza contrária, estava já lançado – mais uma vez, acabando por ser inconsequente. Estava a bola a ser maltratada a meio campo, quando um peludo e preto cão, com tamanho suficiente para impor a todos respeito, invadiu o terreno de jogo, abocanhou o esférico e, não lhe conseguindo enfiar o dente, partiu atrás de um pombo que, inadvertidamente, tinha considerado aquela uma boa altura para ali pousar.
Tirando partido da confusão que se gerou, o jogador que envergava a camisola da Escola de Condução Lisbonense, chutou a bola para a baliza adversária, conseguindo fazê-la passar entre as mochilas que serviam de postes. “Goooolo” gritaram em uníssono os jogadores da sua equipa.
Foi o suficiente para se gerar uma tremenda confusão. Trocaram-se palavras amargas e desenharam-se no ar gestos contundentes. Depois, ofegantes e transpirados, com as energias a abandoná-los, foram todos beber água ao repuxo.
Quando pegaram nas mochilas e nos casacos, para se irem embora, iam a falar de miúdas e das férias que nunca mais chegavam.
Sozinho, sentado num banco de jardim, um velhote observava, divertido, a cena. Sentei-me perto dele e perguntei-lhe pelo resultado. Ajeitou a boina e sorriu-me antes de responder.
– Amizade, quinze a zero.

boomp3.com

17 comentários:

JPD disse...

Ola Rui

Estamos a chegar a um ponto em que as supremas alegrias e dilacerantes raivas dependem absolutamente do futebol.

E pena.

A importancia da jogatana deveria ter o seu reduto.

O mais lamentável é a ausencia de jogo leal.

Um abraço

Claudia Sousa Dias disse...

um autÊntico desfile de moda, este jogo!

;-)


CSD

Anónimo disse...

Delicioso....
Apesar do que se pode ler nas entrelinhas, este teu texto (como todos os outros) é simplesmente delicioso!
É tão regressar a esta blogesfera e ler e rever cantinhos tão interessantes como o teu.
Espero que esteja tudo bem ctg!

bjs

Paty

Alberto Oliveira disse...

... por acaso não vi esse jogo, mas pela crónica deixou algo a desejar. Pois se os derrotados não invocaram a arbitragem mas logo ali garantiram aos adeptos que na próxima época não seriam campeões, os vencedores abraçaram-se aos adversários chorando e pedindo desculpa pela vitória e os empatados... bom, os empatados não tinham que argumentar fosse o que fosse, pois lutaram valorosamente... para o empate. E pelos vistos, o árbitro não se deu por ele e os auxiliares estavam na altura a ajudar uma velhota a atravessar a Avenida da Liberdade fora de qualquer passadeira. Não fosse aquela senhora do carrinho de bebé... que jogo sem condimentos!
Na altura estava a assistir a uma partida da Liga de Honra que acabou com oito jogadores de cada lado. As expulsões tiveram origem num lance em que o guarda-redes da equipa visitada, espetou a cabeça no ponta-de-lança adversário depois deste o ter fuzilado à queima-roupa. estes acontecimentos mataram o jogo que vai a enterrar na próxima quarta-feira. Saí de lá de papinho cheio! Já não se fazem muitas partidas assim... a não ser aquela que preguei ao Zebedeu...

Devaneante disse...

A descrição do local, dos jogadores, dos espectadores, do cão, do pombo, ... tudo me é bastante familiar...

Maria Liberdade disse...

Amizade, é mesmo assim.

dona tela disse...

Olá, senhor Rui. Que Nosso Senhor lhe dê muita inspiração para continuar a escrever coisas tão interessantes.
Olhe, eu é que não passo da cepa torta...

É a vida!

Muitos cumprimentos.

Graça Brites disse...

Grande Jogo! Assim até consigo gostar de futebol.

lélé disse...

Costuma ser assim! No calor da luta, os jogadores insultam-se e mordem-se. Quando acaba, "foi um bom jogo". Mas, os jogadores de cadeira, que não aquecem durante o jogo, mas já entram "aquecidos", saem a ferver e é a desgraça do futebol...
Nessa confusão de camisolas, aposto que nem os jogadores sabiam de quem era a baliza onde entrou o golo!... Foi o final ideal!...

Olinda disse...

deste relato até eu gostei, carago!:-)

Eyes wide open disse...

:) fizeste-me lembrar os intervalos do meu liceu... os jogos de cirumba (também jogavam a isso lá para os teus lados?)...

*

segurademim disse...

... é talqualmente assim aqui no parque da paz

só traumas de primeira infância, de um pai árbrito

;) tu escreves é muito bem

Alberto Oliveira disse...

... é por essas e por outras que a arbitragem portuguesa anda pelas ruas da amargura: pai árbrito e filha carbrita...

Anjo De Cor disse...

Apesar de não gostar de futebol, gostei do que li ;)
O futebol já não é o que era, apesar de ainda continuar a ser uma das únicas alegrias, ilusão e entusiasmo dos pobres ...
Bjs**
Sonia

ROSASIVENTOS disse...

da forte vontade súbita de ajoelhar em qualquer lugar abrindo os braços
e rezar

:(

Teresa Durães disse...

o meu gosto pelo futebol é muito...ah... limitado

mas fica a amizade

Leonor disse...

já estava a ficar baralhada com tantas equipas em jogo até ter lido a última frase, altura em que se me fez luz...

ficaram de fora os jogadores de bancada...

se me pudesses enviar estes sons, muito agradecia. gostei bastante mas nem desconfio o que seja.