A língua parecia-lhe um trapo velho e ressequido pelo sol. Foi com esforço que a conseguiu passar pelos lábios gretados e muito inchados. O gosto a sal aumentou-lhe, na boca. Caso conseguisse, teria sorrido com a ironia da sua situação: estava prestes a morrer à sede, rodeado de água.
Arrastou-se na jangada e levou a boca ao oceano. No último instante, deteve-se. “Não, mais água do mar, não”. Deitou-se de costas nas madeiras molhadas do seu caixão flutuante e, prostrado e sem forças, amarrou o olhar na única nuvem que a vista alcançava. Disse uma oração e, com a última palavra, os olhos fecharam-se.
Ainda assim, não tem pressa em voltar a morrer.
Depois da nuvem, a primeira coisa de que se recorda, é algo parecido com uma chapada na cara e de ter muito frio. A custo, entreabriu os olhos. O azul do céu tinha dado lugar a um cinzento-escuro de mau augúrio e o mar, até então sereno, era agora uma sucessão de vagas alterosas que ameaçavam a todo o instante a sua ridícula embarcação. Furioso, parecia que o oceano se tinha revoltado contra o vento e que ambos lutavam. Começou a chover copiosamente.
A água tinha arrefecido consideravelmente e atingia-o com uma violência inusitada, como se fosse um castigo por ele se estar a intrometer numa contenda que não lhe dizia respeito. Quase o empurrando borda fora, também o vento o ofendia de toda a maneira e feitio. Agarrou-se às madeiras que o iam mantendo à tona e surpreendeu-se com uma força que julgava já não ter.
Ocorreu-lhe então que o mar e o vento não lutavam entre si, antes, lutavam contra ele. Tinham-se unido para, com verdadeiros requintes de malvadez, lhe tornar os últimos instantes, verdadeiramente insuportáveis. Quis gritar para pararem, que se rendia, mas da garganta nada lhe saiu. Era um joguete às mãos dos elementos, que se divertiam com a sua miséria.
Uma enorme e escura vaga surgiu do nada e elevou-o muitos metros. Durante um breve momento, conseguiu ver muito longe e tudo era escuridão. Depois, deixou de sentir a jangada debaixo de si e fechou os olhos. No instante seguinte, tudo tinha passado.
Sentiu a língua mexer-se. Levou-a aos lábios. Já não estavam inchados, mas continuavam secos e, agora, cheios de areia. Tinha a boca aberta e percebeu que um fio de saliva lhe escapava pelo canto da boca. De novo o seu nome, ao longe. Seria possível? E novamente aquela sensação estranha na mão. Desta vez, não passou. Aos poucos, começou a distinguir partes do corpo, por entre a imensa dor que o afligia. As costas doíam-lhe particularmente. A cabeça também. Um grande calor invadiu-o.
Afastou um pouco a pálpebra direita e viu uma pequena forma, indistinta, à sua frente. Subitamente, moveu-se e com ela, a sensação estranha na mão. Abriu o olho e viu um pequeno caranguejo a afastar-se. “Vitalino”. Agora tinha a certeza, alguém chamava por si. “Tempestade…”, tentou articular a palavra, mas percebeu que nada tinha saído. Tentou de novo. “A tempestade… estou aqui…”. Conseguiu erguer um pouco o braço para acenar a quem o procurava, mas algo o atingiu na cabeça, interrompendo-lhe o pedido de auxílio. O impacto não o tinha propriamente magoado, apenas aturdido um pouco, aumentando a sua confusão e desespero.
Quando voltou a abrir o olho, viu um macaco mesmo à sua frente. Assustado, procurou encolher-se, como fazem os forcados que são atirados da cara do touro. Depois, achou que algo não estava bem. Voltou a abrir o olho. O macaco lá estava, a rir-se, com um penacho de pêlo pendurado do queixo. Por cima da cabeça, em letras gordas, a palavra GORILA, em amarelo. “Desculpe, foi sem querer”, e o macaco foi levado, debaixo do braço, por uma criança que depois chutou a bola insuflável. “Acorda Vitalino, já é tarde. Está quase a começar”.
A voz estridente e tão familiar da mulher teve o condão de o despertar. Estava em Carcavelos, na praia. “Levanta-te, olha a minha série”. Tinha adormecido. As costas ferviam-lhe. “A emissão da RTP Memória não espera e eu não me quero atrasar”. Ele suspirou profundamente. “Vitalino…” Acabou por levantar a cabeça. Abriu a boca para explicar à mulher que tinha tido um pesadelo em que quase morria, que depois de uma tão grande tempestade…
Ela interrompeu-o com um gesto. De sacola ao ombro, uma cadeira de praia numa mão e a geleira na outra, a mulher estava com cara de poucos amigos. A voz, carregada de impaciência. “Vai dar o Bonanza”.
24 comentários:
o Vitalino fartou-se de levar chapadas e não acordava? Estava mesmo preso ao sono... ou ao sonho?... Se calhar...!...
... ainda por cima, para ver o Bonanza!...
O bonanza...
... aparcaram os cavalos próximo da marginal e desceram à praia. Hoss, contrariado, resmungou entre dentes "Sempre quero ver onde vou arranjar espaço para me espojar. E nem um McDonalds à vista... "
Ben aconselhou calma e "... vamos distrair-nos o mais possível. Viemos para esquecer o rancho por uns dias."
Adam não conteve um sorriso "Pois. Decerto que não viram anunciado no restaurante antes da praia, o prato do dia: rancho... "
Enquanto isso, Little Joe já sem esporas mas de chapéu, ensinuava-se perante a mulher de Vitalino que não conteve o espanto "Duas?! pistolas?!"
Delirante o final na praia de Carcavelos!
Fico à espera de mais!
Abraço
gostei desta tragico-comédia ;)
Olha, o Bonanza dá na RTP Memória. Era giro, era.
Então o seu fim de semana foi bom? O meu foi como se pode ver no meu blog. Vai até lá, Senhor Rui?
Obrigada.
Tela
Que texto fantástico, mas de desfecho inesperado! Levei-o a sério, atà à triste revelação do nome Vitalino! Que mau feitio o seu, Rui! Brilhante na prosa. Muito bem!
Um abraço. Até breve. Azul.
Há injustiças tremendas
Um marinheiro perde as graças do mar
Alucina
quase morre à sede
os vagalhões reduzem a sua estrutura anímica à planura de uma folha A4
e depois, é isso
A consorte desvaloriza o tormento de um pesadelo e só pensa na TV
É demais!
Muito bem escrito, Rui
Um abraço
Que coisa! Uma pessoa a pensar que depois da tempestade vinha a bonança e afinal era o Bonanza. Pobre Vitalino, passa uma pessoa por um naufrágio daqueles e nem pode meter uma baixa por tragédia para recuperar forças. Mas não deve ter sido mau de todo e se calhar o Vitalino até ficou contente. Afinal acordar de um pesadelo não é a mesma coisa que acordar de um sonho.
:))
final apoteótico!! :)
beijO
Gargalhada, rui. :-)
vitalino...
bem. muito bem!... :)
~
Esse final está demais! As mulheres não têm nenhuma consideração com os pesadelos trágico-marítimos dos homens... :)
E, ainda por cima, para ver o Bonanza! Valha-nos um qualquer santo padroeiro dos marinheiros (ou dos náufragos?)...
ai que pesadelo...e não falo da água do mar!
que final fabuloso
beijos
Viajo no tempo e no espaço, sentindo a emoção de cada palavra aqui lida e bebendo detalhadamente as lições de vida que essa viagem me dá.
Beijinhos e até breve.
;O)
Details details :)
(acorda Vitalino, antes que chegue o arrastão...)
*
... grande aventura
pensou o Vitalino, depois de jantar umas belas pataniscas com arroz de tomate bem regadas com o corrente do Sr. Patrocínio
será que esta noite vou conseguir esquiar nos himalaias?
há sonhos são super generosos...
ver se já tinha chegado
a bonança
não deu afinal:
e ai n da
/// [ chove
~
«aqueles que sonham de dia sabem muitas coisas que escapam àqueles que só sonham de noite»...
Mas acordar para a realidade, pode ser um verdadeiro choque, de dia ou de noite
É Edgar Allen Poe, se não conheces.
Excelente música, como de costume
Muito, muito gira. Adorei o fim. E o tongue in cheek.
Brilliant, my friend.
Olá,
Passei apenas para desejar bom fim de semana e deixar um beijinho.
Até breve.
;O)
E a novela...
da sic e dois da tvi mais as da rtp...
CSD
Dizem que depois da Tempestade vem a Bonança...
... pergunto-me se o Vitalino não preferiria a bonança do sonho à tempestade da realidade...
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