sexta-feira, julho 07, 2006

Tudo Isto Existe

Este texto começou por ser um comentário deixado a um post (ler aqui) no Papel de Fantasia. Vai daí, acabou por ser um post aqui. A desinspiração tem destas coisas.

Arsénio concluiu a recruta na Marinha com distinção. Foi mesmo o vencedor do Troféu Pirolito, atribuído ao instruendo que menos cloro subtraiu à água do tanque em que treinavam os mergulhos de cabeça.
Em véspera de embarcar, estava no Bairro Alto, à porta de uma taberna de mau aspecto. Era o nome do antro que o trazia especado: Fatum. Aquela palavra mal pintada numa tábua sebosa, atraia-o. Ajeitou a mochila que trazia pendurada no ombro e entrou.
A um canto, na penumbra, envoltos numa nuvem de partículas suspensas, dois velhos de ar bolorento, esfolavam as cordas de duas guitarras decadentes e os ouvidos de Arsénio. No meio deles, um terceiro velhote esforçava-se por arrancar às amígdalas o catarro que nelas tinha agarrado.
O trio era insuportável e esteve quase a rodar os calcanhares dali para fora, não fosse uma voz bagacenta vinda detrás do balcão o ter chamado.

- Oh piqueno, o que é que a Hermínia te pode servir? – Era uma mulher castiça quem lhe dirigia aquelas palavras. De caracóis desfeitos numa permanente mal amanhada, tinha cabelos escuros como carvão e a cara com rugas em forma de lamentos.
- O que é que aconselha a um pobre marinheiro, dedicado companheiro, para quem o Tejo é sempre novo?
- Aconselho-te a não levantar ferro, a não soltar amarra. Quem embarca nunca mais volta inteiro. – Aquelas palavras pareceram fazer o chão debaixo dos pés de Arsénio inclinar a bombordo.
- Ora, é disso que eu preciso. – Respondeu ele, pouco seguro.
- Então, toma lá este copito de vinho branco, que é uma especialidade. – Hermínia encheu um copo de três e entornou no balcão as partes quatro e cinco.
Era uma zurrapa inqualificável, mas Arsénio suportou-a sem dar parte fraca, não fosse ele o dono do Troféu Pirolito.

- Oh Alfredo. – Gritou a mulher, mão na anca, na direcção de uma mesa onde um homem parecia dormir. Não obteve resposta. – Alfredo!!! Rais’parta o homem que é duro de ouvido…
Alfredo levantou a sua cabeça redonda, encimada por um cabelo preto-olex muito bem penteado. Tinha uns óculos com lentes fundo de garrafa verde, e um lenço ao peito.
- Ca foi, mariquinhas? – Perguntou ele com voz de rouxinol constipado.
- Mas atão, quando é que tu m’acabas os armários da cozinha? Olha que marceneiros é o que há mais por aí… - A ameaça vã não provocou qualquer reacção a Alfredo, que sabia o que valia.
- Sabes que isso é mentira.
- Ai, mentira. Conheço um bem jeitoso, que nem mora muito longe, o Carlos.
- O do Príncipe Real?
- O do Carmo.
- Não sejas tonta… trago-tos prá semana, mocita dos caracóis.
- Cantigas…

Os dois velhotes do canto pararam de dar às unhas e o companheiro calou-se. Não teve sucesso, daquela garganta ressequida só saiu barulho. Após breves segundos, em que aproveitou para ajeitar a boina, achou por bem voltar a tentar e, a um gesto de cabeça, os tocadores voltaram a dar às falangetas.
Arsénio, que já estava por tudo, pediu reforço líquido. Estava Hermínia a entornar o vinho no balcão, quando entra uma mulher de rompante, cabelo em desalinho, blusa branca de alças que mais parece uma combinação interior, saia vermelha enxovalhada.

- Que cara severa é essa, mulher? – Atirou-lhe Hermínia.
- Viste o Malhoa?
- O Zé?
- Não, o dos pincéis.
- Ah, esse. Ainda hoje não passou por cá.
- Se o vires, diz-lhe que estou farta de estar sentada de esguelha naquela mesa à espera dele, que me doem as cruzes e que estou farta do bigodes a fazer cócegas à guitarra. Se ele não aparece depressa, piro-me para o retiro. – E sem esperar resposta, saiu, levando com ela alguma da penumbra do sitio.

Entretanto, o velhote dos gargarejos conseguiu escarrar uma coisa verde e peganhenta que veio aterrar aos pés de Arsénio. Os clientes rebentaram num aplauso eufórico que durou três segundos, alguns levantaram-se mesmo para retirar as ceroulas de onde elas se tinham metido.

- Obrigado. - Disse o idoso, quase afónico.

Arsénio, ia por esta altura já no terceiro copo de três. O soalho virou a estibordo e ele teve que se apoiar no balcão.

- Camane, Camane… - Repetia um miúdo à soleira da porta. Tinha uns olhos claros, muito vivos, e fazia gestos a alguém na rua. – Between, between…
Atrás dele, entrou um grupo de japoneses, muito sorridentes, apesar das evidentes dores de pescoço que os faziam estar sempre a curvar as suas pequenas cabeças. Em cada cabeça um panamá níveo e a palavra Sanyo.

- Camane, camane, between. – Continuava o rapazito a dizer, tentando que eles se sentassem.
- Ai este miúdo, com a mania que sabe falar inglês… - Hermínia saiu do balcão para por um grupo de velhotes, que estava preso às cadeiras por teias de aranha, a mexer dali para fora. Havia que dar prioridade ao turista. - Vá, todos para casa, já se acabou o tremoço… xô, xô…
- Oh Dona Mina, posso ir cantar? – O miúdo olhava com sofreguidão para a taberneira.
- Vai-te já daqui, que ainda não é a tua vez. Cresce e aparece. Toma lá estas moedas pelo serviço e vai mas é brincar com a tua vizinha, aquela miudita do cabelo às ondas do mar.

Serviu ginja aos nipónicos e um bagaço aos velhotes das guitarras. Só me falta convencer a outra, segredou-lhes. Passando por Arsénio, benzeu-se e desapareceu por uma porta.

- Maria, preciso que vás ali cantar para uns camones? – Disse ela a uma das raparigas que liam em silêncio.
- Ai madrinha, eu tenho vergonha… - Respondeu Maria.
- Vou eu, eu canto. – Afirmou a outra, levantando-se espevitada.
- Tu não, ela é que precisa treinar. Vá, anda.
- Mas eu… não sei cantar bem, como ela…
- Disparate, sabes muito bem, só tens de acreditar mais em ti e em Deus, ele não te vai deixar ficar mal.
- Está a falar do quê, madrinha?
- Oh Maria, da Fé…
- Vais cantar com este xaile que te empresto. Chegas lá e só tens que fechar os olhos e cantar aquela dos espanhóis, espanholinhos, dos caracóis, caracolinhos, que é sempre sucesso garantido… - A outra rapariga tentava animar Maria. – Depois abres os braços, mexes muito os dedos e dizes obrigado, obrigado… resulta sempre!

Regressaram as duas à sala para dar com os velhotes a tocar que nem doidos e um japonês a cantar o fado do 31 à desgarrada. Os clientes, como que com as baterias recarregadas, batiam palmas a compasso.

Já na rua, ia Arsénio a navegar e de pé junto à proa, viu ou julgou sonhar, que os braços do Cristo-Rei, estavam a abraçar Lisboa.

29 comentários:

rafaela disse...

Chama-lhe desinspiração, foi bem raptado esse Arsénio (os nomes que se dão aos filhos).

Espero pela continuação desse fado =)

mixtu disse...

Rui... para quemnão liga ao fado... revi-me nesta lisboa de fadistas e de camones, tabernas... o fado... o destino de quem parte, a saudade que dizem que é palavra portuguesa, só portuguesa mas não é pois antes de ser nossa foi e é galega...
este fado, parace-me que não tem continuação, obra prima... terminada...

cumprimentos monárquicos, está complicado convencer-te para a CAUSA...

Unknown disse...

Mas k bela desinspiração, sim, sim, bom fim de semana

919 disse...

gostava de ver o japonês a cantar o fado!... "anda, baptista!"... a tua falta de inspiração é um autêntico mistério, ou andamos todos enganados!...

manhã disse...

Essa Lisboa parece-se com aquela dos filmes portugueses dos anos 40. A guitarrada, assim uma certa inocência, o fado vadio...boa.

Teresa Durães disse...

(tenho a mesma opinião da manhã)

Vejo o miúdo a entrar de calções, como era no tempo do Fado à desgarrada, à espera da moeda por ter levado os japoneses.

Gostei bastante!

Anónimo disse...

Desinspiração? Onde? Essa parte não consegui encontrar...

Gostei de voltar aqui. Gostei de reencontrar a mesma inspiração, qualidade e bom-gosto de sempre!

Anónimo disse...

Tudo esxiste sendo verdade =)

Sentires Cruzados disse...

É a primeira vez que venho ao teu blog.
Sorri com o teu texto pois já tinha lido e comentado o post do legível que inspirou o teu.
Pegaste bem na história e construiste uma outra duma forma muito humorada.
Parabéns.
Um sorriso e um beijo*

Anónimo disse...

Não sei porquê mas ao ler este teu post veio me a cabeça uma musica de Rui veloso...."Arsénioooo, é um velho da Areosa..." lololo :)
Como sabes bem dar esse gostinho a lisboa...essa lisboa que eu amo, a mulher bonita, que ao fim de tarde se enfeita e sai pelas ruas airosa!
Rimei!!! E a desinspiração tem dessas coisas...boas coisas!!! :D
Beijinhos

Sea disse...

:) como sempre.
Um beijo

Alberto Oliveira disse...

... este Arsénio se põe os pés dentro dum barco, vai logo a carga ao mar. Talvez umas quadrinhas para um fado-vadio viessem agora a calhar, homenageando esta figura ímpar (sim, que par para este marujo, só se fosse cega, surda e muda... ).

Atão lá vai...:

A vida no mar é dura
ninguém a queira levar
anda-se lá à procura
da vida conseguir ganhar.

Da vida conseguir ganhar
a pescar pargo e safio
e nos intervalos cantar
uns fados ao desafio.

Uns fados ao desafio
que se chamam desgarradas
e eu estou com um fastio
de só comer peixes-espadas.

De só comer peixes-espadas
que me cortam os intestinos
que estes peixes dão facadas
e eu entro em desatinos.

E eu entro em desatinos
de cantar não paro nem posso
nem a mãe deita os meninos
e eu nunca mais almoço...

... pronto! eu não canto mais,tá descansado!

Fortunata Godinho disse...

E nesse instante entrou o cego com uma nota de 10€.
Há muitos meses que andava a prometer ao Tonito (um miúdo lindo que o velho sentia e queria como seu neto), que o acompanharia numa cançoneta e juntos haviam de dar a volta à Mina - sim porque apesar de já não ver, o seu cérebro registava ainda a memória de quando a sua íris reflectia os seus ainda vivos olhos azuis.

(Rui, com esta me fico e mais proponho que à semelhança de "O código d'Avintes", vários venham dar seguimento à história, com um Post. Se aceite, publicarei este.

Bj :)

segurademim disse...

... os japoneses são danadinhos prá brincadeira... tocam guitarra, cantam o fado, o hino, recintam Camões... são assim educadinhos, desde tenra idade... muitos dons...

beijo Rui

Rui disse...

Fortunata,

Por mim, está aceite. Espero que outros peguem nos fados cegos e outros e lhes dêem a vida que merecem.

Bj

Anónimo disse...

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Sara MM disse...

A D O R E I !!!

(que mais poderia dizer!?!?)

BJss

alice disse...

querido rui,

é uma delícia esta interacção que surge entre bloggers, eu própria já fiz vários comentários que poderiam ser posts e também recebo comentários tão bons como posts ou até melhores, é fantástico.

Adorei ler o teu post e saber que uma história tão interessante possa ter nascido através da leitura de um post noutro blog, mas confesso que o legível é deveras inspirador

bem hajas por esta inspiração

beijinhos grandes

alice

Medusa Azul (Zuli) disse...

desinspiração???!!.. chamas a isto desinspiração??! >:( ai ai ai ai ai

:) tá MUITO FIXE!!!

Salvador disse...

Bem, eu gostava de ser desinspirado como tu

1 abraço

Macambúzia Jubilosa disse...

"...a cara com rugas em forma de lamentos..."

É por estas e por outras que me prendes...

:)

Paixão disse...

Ah Lisboa...

(E aquele escalpe?! menino maroto...;))

Velutha disse...

...o que se pode dizer depois de ler o teu post? Parabéns Rui, fiquei deslumbrada com a história que aqui nos contas do fado. O fado vadio, o fado das tascas, sujas quase repelentes mas ao mesmo tempo tão atraentes, o fado de Lisboa, dessa cidade tão linda, que de Alfama à Madragoa tem encanto de menina.
Beijos

poca disse...

sim... no verão as aldeias enchem-se de gente da terra... é o regresso à as origens e um rebuliço para quem os recebe...

e os ingleses tão inteligentes... vê lá tu que aos 4/5 anos já eles falam o inglês quase correcto!

alyia disse...

Continuas com uma escrita muito boa já tinha saudades :)

Anónimo disse...

PARABÉNS!!

(já passa da meia-noite)

Fico à espera do post comemorativo!!

Anónimo disse...

E a gaivota? não vi/li nenhuma...

Inês Diana disse...

Ai ai...
Ao ler isto lembrei-me de uma escrita que tão bem conheço...
Paisagens, ruas, rostos... fragmentos de vidas.
E a bendita da saudade...

:)
Beijo-te

Mipo disse...

muito, muito giro! Quando publicares um livro, avisa, que já tens aqui uma legião de fãs! :-)