segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Empresta-me o Teu Olhar (conclusão)

Um fio de voz fez-se ouvir do outro lado. – Diz-me o que vês.
Não conseguiu responder. Afastou o auscultador do ouvido e fitou-o. Olhou à sua volta. Ninguém parecia interessado nela. Ao encostar de novo o auscultador, ouviu de novo, diz-me o que vês.
- Quem fala?
- Por favor, não desligues. Diz-me o que vês. – A voz chegava-lhe em surdina, como se estivesse muito longe. Pareceu-lhe a voz de uma criança.
- Como assim, o que vejo?
- O que vês à tua volta, conta-me.
Olhou novamente em todas as direcções. Não viu nada suspeito.
- Isto é uma brincadeira, não é? Estás a falar de um telemóvel, aqui perto, a observar-me…
- Não, juro que não. Não sei sequer para onde estou a ligar. – A voz parecia-lhe agora um lamento.
- Estou confusa. Ajudava se me explicasses o que se está a passar.
- Eu só queria saber onde estás, o que está aí a acontecer, o que vês.
- Mas para quê, que interesse tem isso?
- Não tenho mais nada…
Pareceu-lhe ter alguém atrás de si. Virou-se instintivamente mas não havia ninguém, apenas o movimento habitual de pessoas indiferentes umas às outras. Indiferentes para com ela.
Sentiu um vazio no peito que lhe subiu pela garganta e se alojou no cérebro. Vou desmaiar, pensou. Apenas teve tempo de se apoiar com uma mão à parede.
- Não te vás embora. Diz-me o que vês. – Desta vez a voz saiu nítida, próxima. Foi como se a tivesse segurado.
- Estou num Centro Comercial. Num telefone público. Junto a um repuxo e a umas escadas rolantes. Lojas… muitas pessoas. – Perguntava a si própria o porquê de estar a ter aquela conversa com alguém que não conhecia, ao telefone.
- Fala-me das pessoas.
Ia protestar, recusar dizer fosse o que fosse, ia desligar, mas algo naquela voz a prendeu. Sentia naquele murmúrio algum desespero.
- Vejo o Segurança da loja aqui ao lado a olhar para as pernas de uma miúda que passa. Vejo um grupo de homens… que estranho, três deles levam acordeons, um leva um bombo, outro umas massas… vão vestidos normalmente, bem vestidos, quem serão, o que estarão aqui a fazer? – Pensava alto.
- Como é o olhar das pessoas?
- Distante. Cansado… parecem todas muito concentradas nelas próprias. Não procuram nada, sabem todas para onde vão. – Fez-se silêncio por alguns segundos. – Não vejo ninguém sozinho, mas parece-me ver solidão… vão todos absorvidos com as suas coisas, com as suas vidas. Ninguém quer saber, ninguém se preocupa.
- Estás a falar de ti…
Virou as costas à multidão que passava e procurou concentrar-se naquele estranho diálogo. – Agora diz-me tu o que vês.
- Nada, não vejo nada.
- Como assim, não vês nada?
- Há pouco mais de um ano sofri uma grave acidente de viação, fiquei muito mal tratada, sofri um forte traumatismo craniano e estive sete meses em coma. – Falava pausadamente, como que procurando as palavras. – Recuperei a consciência mas não a visão. Ceguei, não vejo. É por isso que peço o olhar emprestado.
- Eu não podia imaginar… - balbuciou.
- Não fiques assim. Sabes, também ainda não recuperei a mobilidade. Faço duas horas diárias de fisioterapia e o resto do tempo, passo-o deitada. Não me resta muito mais que ouvir música, digitar números de telefone ao calhas e pedir a quem me atende que me diga o que está a ver.
- Foi a maneira que encontraste de sair daí.
- Sim, é isso. Fico aqui a imaginar os sítios que me descrevem, as pessoas que passam, as pessoas com quem falo. A tentar perceber as entrelinhas do que dizem. Mas é muito difícil conseguir falar com alguém, a maioria desliga logo. Eu percebo, claro, se calhar fazia o mesmo.
- Achas que se diz muito nas entrelinhas?
- Acho que as pessoas profundas, como tu, não se conseguem exprimir com clareza são, muitas vezes, as entrelinhas. Quando se sentem incompreendidas, cobram isso das pessoas. Ao mesmo tempo que querem ser vistas, não se mostram totalmente.
Aquelas palavras tinham muito a ver consigo. Olhou por cima do ombro, não conseguia afastar a ideia de que estava a ser observada. De que aquela pessoa com quem falava a conhecia. Mas desligar já não era uma opção.
- Há pouco, disseste que eu estava a falar de mim. Tinhas razão, o cansaço que vejo nos outros é o meu, a solidão que vejo é a que sinto, o olhar distante não é das outras pessoas. Mas tudo isto é momentâneo, daqui a pouco já passou. Tem que passar. Há quem precise muito de mim, da minha força.
- Ele deixou-te sozinha. – A frase não saiu como uma interrogação, antes como uma certeza.
- Não, deixou-me com dois filhos! – Exclamou. – Que eu tinha mudado, que a nossa relação já não era a mesma, que não conseguia comunicar comigo, não me entendia… que eu estava muito concentrada nos filhos e não queria saber dele. Que agora ele tinha novas experiências para viver, novos interesses. Disse-me isto assim. Dá para acreditar? – Não esperou pela resposta. – O filho da mãe! Doze anos de relação…
- Seria que, no fundo, tu precisavas de continuar a ser descoberta e ele se fartou dessa procura?
- Há mal nisso? Eu não acho que haja. Ele nunca me disse nada, nunca! Se algo estava mal, porque não falou comigo?
- Deu cabo do teu mundo.
- Quero crer que da mesma maneira que o acidente deu cabo do teu…
- Sim, calculo que sim.
- É verdade… fez com que eu pusesse tudo em causa. Me pusesse em causa. Em boa medida, deixou-me sem nada em que acreditar acerca de mim. E eu preciso de algo em que acreditar.
- Sabes que és boa mãe.
- Sim, sou. Foi aos meus filhos que fui buscar forças para continuar. Precisamos de algo a que nos agarrar, não precisamos?
- Sem dúvida. Ambas temos que aprender a lidar com a mudança que ocorreu nas nossas vidas.
- Tens conseguido?
- Todos os dias um bocadinho. Vais ver que um dia nos vamos rir de tudo isto. Quando formos leves e transparentes.
- Tu não sabes mas eu vou dizer-te: transparente não sei se consigo ser, sempre fui muito opaca, mas leve quero acreditar que vou conseguir. – Ao dizer aquilo, não conseguiu evitar achar que, de alguma maneira, quem estava do outro lado sabia isso bem.

Pouco depois despediram-se. Desligaram sem mais nada saber uma da outra.

Pousou o auscultador mas não se mexeu durante algum tempo. Ao virar-se, viu o repuxo e duas crianças que apontavam para água. Tudo lhe parecia em câmera lenta.
Pela primeira vez desde o divórcio tinha tocado na ferida que a trazia dorida. Na fonte da dor.

Ao entrar no Continente sorriu. De facto, sentia-se mais leve.

39 comentários:

Sofia disse...

ohhh Rui.... o teu post fez-me chorar....desculpa a honestidade mas acho que compreendes.... está lindo, mt real, mt sentido. E tens razao ele deveria saber de tudo. Se nao soube foi pq nao o quis.

Bjs meu bom amigo

ss

Alberto Oliveira disse...

Conto muito interessante com um diálogo muito vivo. Dava para um guião cinematográfico... Melhor: uma curta-metragem. Bem adaptadinho era canja!
Parabéns e... uma óptima semana!

Anónimo disse...

Magnifico final!! Creio que as vezes apenas precisamos nos confrontar com uma realidade mais triste e chocante, para relativizarmos os nossos problemas e percebermos que somos afortunados. Levantas tb uma outra questão que começa a ser demasiado comum...o não entender, o compreender, o dialogar com o companheiro. As pessoas armam-se das suas barreiras e escudos de metal e esquecem-se que tb são capazes de magoar.
Parabéns pelo texto beijos!

Sara MM disse...

(como já sei que vão todos e todas dizer que está lindo e comovente e profundo e verdadeiro - e essa é a parte que toca - eu digo...)

... QUE LAMEEEEEEEECHAS!!!!!!!!!!!

:ob (sorry!)
BJs

Sara MM disse...

(ou tb posso dizer...)
ânimo! nem todos precisam de uma fonte assim... nem todos precisam de um telefonema assim... nem todos deixam passar tantos anos assim...

BJs
(e agora vou, senão nunca mais me falas :o\

susana disse...

Nota dez!!!Um espéctaculo!!Mas ainda bem q

susana disse...

raios!!(sorry), mas ainda bem que nem todos os bloguistas tem o teu talento a escrever!!Foste tu não foste???Original, sensacional, super emotivo!!Adorei!!!
Sabes porque digo que ainda bem que nem todos os bloguistas não tem o teu talento, porque eu não teria tempo, para ler tanta coisa!!Só por isso!!
Responde-me só se és tu o autor??
E se já publicaste algum conto!!!
Se és muitos parabénssssssssssssss!!!
Nunca passei por um divórcio, mas sei de muitos!!!(só um aparte)

Fortunata Godinho disse...

Sr. Don Rui, Ainda agora comecei nestas lidas, mas já estou um pouco viciada...
Um Bem Haja a quem assim escreve e descreve.
Eu sou um mero ser que gosta de escrever, mas tu és um escritor, um fantasista, até memso um verdadeiro ideota :)
És alguém que possui o Dom da imaginação - mas não como os outros - não como eu(i might add), não és enfadonho, nem cansas. Encantas.

Anónimo disse...

Burilas as palavras de uma forma magnânima...fantástico este teu texto. Um beijo enorme :)

Anónimo disse...

Da escrita gostei (como sempre) do enredo não (também me é permitido dizer quando não gosto, não é?!) desculpa

Anónimo disse...

Eu não gostei.
mas dou nota dez à missixty2000

Um abraço

Anónimo disse...

Como sempre, exímio na arte de te colocares no lugar dos outros.
Excelente, profundo e comovente.

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Ana P. disse...

Eu nem vou comentar, meu querido. Gostei, sim, e chega....

Jinhus

Vanessa disse...

Tudo o que senti ao ler este post, já foi dito...

Parabéns!

PS: Tenho a visão de um dia entrar numa Fnac de uma qualquer localidade, ou uma bertrand, para te "comprar". Que me dizes?

Rui disse...

Só vocês para me fazer sorrir.
Quanto ao livro, nem sei o que é preciso para.

Anónimo disse...

Talento.

E isso já tens

:)

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Vilma disse...

Quantas vezes pecisamos de sentir dor para nos curar de mágoas profundas... a dor, ao contrário do que se pensa, é um bem, pois só assim podemos saber que algo precisa de remédio!

butterfly disse...

Olá...passei para deixar um beijinho e para ler mais uma das tuas belas histórias...
Beijinhos!!

Vanessa disse...

Podes começar por te informar...
O mais difícil tu já tens!
A capacidade de cativar e de deixar quem te lê, à espera de mais. O talento, como diz (e bem) a risquita ;)

PS: Quem te escreve isto, é uma alminha que muito raramente lê um livro. Não por falta de tentativas (que eu até tenho um "papa livros" dentro de casa que se esforça por me incutir o espírito da coisa), mas sim por falta de interesse demonstrado logo nas primeiras 20...30 (vá lá)páginas (achei que era importante saberes disto).

Margarida Atheling disse...

Impossível ficar indiferente ao que escreves! Impossível!

Meia Lua disse...

Tens muita sensibilidade. Conseguir exprimir os sentimentos de cada uma assim, de maneira tão crua e tão real. Impressionante... uma dá os olhos, a outra ouve e conhece o coração...
beijinho :*

Lagoa_Azul disse...

Plac, plac, plac...
Isto é o som dos aplusos que aqui estou a enviar para ti.
Meu amigo Rui, simplesmente fantastico, um parto perfeitamente normal que nem pontos levou ;) sabes a que me refiro?!!!!

Beijos com carinho.

Marta disse...

Gostei muito do texto, Rui... Parabéns!

alyia disse...

E hoje só para te desejar um Feliz Dia dos Namorados

CS disse...

Já sei, já sei! Passa-se no C.C.Colombo!

Opa... Não era uma adivinha???

Whisper disse...

Textos fantasticos :)...parabens!
Beijocas ;).

susana disse...

Quero mais contos vá LÁ!!E toca a enviar este para um revista!!!Feliz S. valentim!!!

a_mais_fofa disse...

Fantástico! Adorei mesmo...
Vou ficar ansiosa à espera dos próximos contos!
Tens imenso jeito!
*a_mais_fofa*

CS disse...

Rui,

desligar as campaínhas é mesmo só para fazer o ovo quente... e agora nem isso faço por causa da gripe das aves :)

bjs

segurademim disse...

Bem me parecia que ela tinha feito bem em ir às compras... falar sózinha também ajuda, trás à superfície os problemas! falar ao espelho em tom audível para os nossos ouvidos ouvirem!´

óptimo exercício!!

;)

Anónimo disse...

Ohhh Rui........ está simplesmente lindooooooooooo
Sem mais nada
Sorrisos e beijos

peter pan disse...

"se tens um segredo (problema) conta-o a um estranho numa estalagem"
... ou ao telefone...
texto simples, directo na linguagem, de fácil leitura mas com uma sensibilidade extrema relativa aos sentimentos de qualquer mulher dos dias de hoje!
(e o lado feminino de qualquer homem!)é facil de nos identificarmos com estes sentimentos!!!

mixtu disse...

muito bem em ir Às compras... lol

Gina disse...

Lindo

Não sei como o consegues mas de facto kuase sempre consegues. Comoveste-me com o teu post.
Só alguem profundo km. tu para descrever episódios como este, e sentimentos tão profundos como os ke abordas.
Sabes em kk. momento, das nossas vidas os sentimentos os sentimentos estão adormecidos.
Algo nos desperta para a vida, algo ou alguem, e nos faz acordar, pensar ke a vida não é um marasmo.
A mim do meu marasmo algo me acordou, ou me fez sentir ke afinal, estava viva.
Estava sozinha numa ilha...

Anónimo disse...

Senti 2 coisas engraçadas ao ler este post... uma pq conseguiste surpreender-me :) e outra pq ao fim de todos estes meses de 'malefícios', 38 comentários de profunda apreciação pelo que e como escreves, deve ser mto gratificante :D
Mesmo tendo a noção de q mtos dos textos são ficção, cada vez te vamos 'visualizando' melhor: da sensualidade de alguns textos à sensibilidade de mtos outros, apresentas-nos a tua alma, os teus gostos, os teus desgostos de forma mto cativante. Brilhante, meu caro :)

LD

virilão disse...

Rui, para o tal livro talvez devas começar por algo assim:

http://radiocomercial.clix.pt/destaques/blog_radio/passatempo.asp

e depois deixar o tempo passar

PS: só não te inscrevo porque não quero ser "Abusado",e porque, para a rádio, talvez seja um nadinha demais (extenso), mas que pode dar visibilidade para seres "descoberto"...disso, não tenho dúvidas.
Arrisca, prescindo de uma percentagem nos lucros...lol

PS II: diz-lhes que vais da minha parte

M.M. disse...

Tens jeito para a coisa, pá.
O que é que hei-de dizer...? És um jeitoso!

Lia Noronha disse...

Rui : adorei o seu blog...cheguei através da Claudia e estou deslumbrada com td!

Boa semana.
abraços carinhosos diretamente do meu Cotidiano.

isabel disse...

Lindo!

Emocionei-me com a história.
Muito bonita, muito bem escrita.
Parabéns.