quarta-feira, dezembro 14, 2005

Um Passeio no Jardim

Lembro-me que naquela altura pensava com frequência nos meus pais. Recordava a toda a hora episódios da minha vida com eles, de todos tentando retirar uma lição, um ensinamento.
Tentava também avaliar se tinha sido um bom filho, se eles tinham sido bons pais; onde é que cada um de nós tinha falhado e onde é que a sabedoria deles me tinha auxiliado.
Fazia isto automaticamente, sem dar por isso, não era nenhuma decisão consciente. Até que um dia a razão para o fazer se tornou evidente. De tão óbvia, não sei porque nunca tinha tomado consciência dela: eu ia ser pai pela primeira vez em breve.
Esta iminência da paternidade assustava-me um pouco. Queria ser um bom pai - o melhor pai -, e não fazia a menor ideia de como o podia ser. Por vezes, ficava algo angustiado com a ideia, com a dúvida se seria eu capaz. Estaria preparado para tão grande mudança na minha vida?
Esta preocupação só era superada pelo fascínio que sentia com a ideia de gerar vida, de eu estar na origem desse processo fantástico.
Se as mães o sentem de uma forma especial, única, nós, os pais (alguns, pelo menos), sentimos as coisas de maneira diferente, claro, mas também intensamente. Eu era dos que sentia assim.
A ideia de gerar uma vida fascinava-me, enchia-me de um sentimento maior que eu.

Até que um dia…

Não sei se as pessoas que andam de comboio alguma vez pensam em quem os vai a conduzir. Num autocarro, num táxi, é fácil perceber quem vai os comandos, damos pelos condutores (mesmo nos aviões, sem o vermos, o piloto está mais presente que no comboio, quanto mais não seja porque no inicio da viagem o seu nome é referido e durante o trajecto ele faz uma pequena comunicação aos passageiros), num comboio não, aquilo pára, arranca, abre portas e quase nunca se dá pela pessoa que o vai a conduzir.
Eu sou maquinista da CP e gosto muito do que faço. O anonimato da função permite-me pensar em coisas como a paternidade mesmo enquanto estou a trabalhar.
Sendo uma função de grande responsabilidade, está de tal maneira automatizada, que acaba por ser relativamente calma e livre de stress, afinal, não temos horas de ponta e basta alguma atenção à sinalização que aquilo até as curvas faz sozinho.

Há três anos atrás, estava eu absorvido nos pensamentos de que vos falava, quando, ao sair de uma curva antes da estação de Barcarena, algo me arrancou ao torpor em que me encontrava.
A princípio não consegui apreender o que era, foi o inconsciente que me alertou para algo de errado; o cérebro demorou uns segundos a processar a informação mas, quando tomei consciência dela, não podia ser pior: estava uma pessoa na linha a tentar subir para a plataforma da estação.
Freio em emergência mas, tal como um petroleiro em mar alto, várias dezenas de toneladas de comboio a uma velocidade razoável, não param em poucos metros.
Aflição, muita aflição. De um momento para o outro, vemo-nos numa situação surreal, é como se fossemos transportados para um filme, algo de terrível está prestes para acontecer e nós não pudemos fazer nada. Só que neste caso não estamos sentados na plateia ou no sofá de casa, estamos no meio da acção, somos intervenientes directos. Pânico, muito pânico.
São breves segundos que demoram muitos minutos, muitas horas a passar, ao serem recordados vezes sem conta. É algo que nunca mais me vai abandonar. Terror, muito terror.

Uma rapariga com a sua filha pequena ao colo decidiu atravessar a linha, achou que conseguia subir a plataforma em segurança e assim poupar duzentos metros de caminho e cinco minutos de tempo.
Colocou a filha no apeadeiro e, quando se preparava para tentar subir, ouviu o comboio aproximar-se. Ao vê-lo sair da curva, também o seu cérebro demorou a processar a informação, também ela deve ter pensado que algo de terrível estava para acontecer. E, depois, tomou a decisão errada, fatal: em vez de, num último esforço, ter tentado subir, optou por se encolher e ficar imóvel. Apesar de a velocidade ser já reduzida, o comboio entrou na estação e o degrau da primeira porta apanhou-a, depois outro, e outro…
Aflição, pânico, terror? Seria isso que eu sentia? Com uma tremenda descarga de adrenalina a correr-me no corpo, o ritmo cardíaco descontrolado e o cérebro em desatino, consegui realizar os procedimentos habituais nestas situações, mas em piloto automático: não me lembro de ter contactado o posto de comando da Refer/CP e de ter chamado o Revisor, mas sei que o fiz. Lembro-me de “voltar a mim” quando, ao olhar para o espelho retrovisor, vi a criança, ali, parada, perdida. Parecia olhar para mim. Em que pensaria ela?

Quando fui para esta profissão sabia que era praticamente inevitável passar por esta situação. São raros os maquinistas que não tenham passado por isto e os mais velhos fazem questão de lembrar isso a quem começa – o monitor do meu curso tinha 16 casos no curriculum.
Se noutros países quando algo semelhante ocorre, a empresa não deixa o maquinista conduzir mais nesse dia e coloca ajuda psicológica à disposição, cá, pergunta-se via rádio se o corpo está a obstruir a via; caso não esteja, depois da polícia tomar conta da ocorrência, somos mandados seguir viagem - tenho um colega a quem isto aconteceu num sentido e, ao fazer o trajecto de volta, voltou a acontecer.

Como numa fracção de segundo, sem qualquer aviso, sem um sinal, a nossa vida pode mudar. Absorvido pela ideia de ser responsável por gerar vida, eu acabava de estar envolvido na perda de uma.
Este conflito – há falta de melhor termo -, abalou-me profundamente. Durante muito tempo as coisas deixaram de fazer sentido, pelo menos o sentido que faziam habitualmente. Questionei tudo. As certezas que tinha desapareceram. Tudo era transitório, efémero.
Se pensava na minha filha que ia nascer, logo pensava naquela figura no espelho retrovisor. Porquê? Tinha sido apenas uma decisão errada da sua mãe. Como é que um acto irreflectido, mas simples, banal, podia ter consequências tão dramáticas, sem possibilidade de segunda chance, sem direito a arrependimento?
E no centro de tudo, estava eu.
Conseguiria amar a minha filha? Seria eu digno de uma filha? Haveria o destino de, um dia, procurar vingança?
Com o tempo, as duvidas foram sendo menos, a compreensão do que aconteceu maior. Tenho hoje a consciência exacta do meu papel em tudo o que aconteceu, mas continua a custar. Lembro-me ainda muitas vezes de tudo. Revejo os detalhes da cena com frequência.

No outro dia, parado na mesma estação em sentido contrário, reparei numa mulher que estava parada junto à linha, fora da plataforma. Percebi que aguardava que eu passasse para atravessar pelos carris. O local era exactamente o mesmo do acidente, atravessar ali na altura em que um comboio está a chegar, é tragédia pela certa.
Apitei-lhe. Por gestos perguntei-lhe se sabia o perigo que corria. A resposta foi insultar-me; chamou-me todos os nomes que sabia.
A vontade que tive foi sair e dar-lhe uma carga de porrada. Juro, foi por pouco que não o fiz!
Não têm noção. Não querem saber.

Agora vou terminar, tenho que ir buscar a minha filha à escola, prometi-lhe que íamos passear ao jardim.


Ao amigo Quim, aquele abraço.

19 comentários:

XanaA. disse...

Não deve ser nada fácil passar por essas situações. E depois ter de continuar como se nada tivesse acontecido. Mas, do meu ponto de vista, a responsabilidade é das pessoas que colocam a sua própria vida em risco. E nós sabemos sempre quando nos estamos a pôr em risco...

Votos de que essas situações não se repitam!

E o sentimento de gerar vida não deve ser eclipsado por tais acidentes, ainda que trágicos. São situações distintas. (Minha opinião, claro.)

Bjs

Anónimo disse...

Para quem, como eu, estou em vias de vir a ser pai, este texto bateu forte, muito forte... As lágrimas vieram-me aos olhos e se não estivesse em local público, não sei como seria...

Lembro-me do final do filme "O Resgate do Soldado Ryan". À beira da morte o personagem John Miller (Tom Hanks) pede ao soldado James Ryan (cujo resgate tinha custado a vida de vários companheiros) para fazer com que o resto da vida dele valha a pena o sacrifício.

Que a relação entre si e a sua filha valha pela tragédia que ocorreu, faça com que essa relação seja ainda mais forte e especial...

Um abraço

PM
vouserpai.blogdrive.com

Dani disse...

Depois de 4, a sensação de dor e frustração, continua a ser a mesma. Mesmo sabendo que nada podemos fazer, e apenas podemos assistir de bancada à tragédia, continuamos a pensar se não haveria mesmo alguma coisa que pudesse alterar o desfecho. E todos os dias, temos que passar pelos mesmo sítios, numa corrente de recordações, que de melhor ou pior forma, vamos tentando apagar. E nem sequer me vou dar ao ao trabalho, de falar no apoio que a empresa dá...

Anónimo disse...

Deixo sorrisos e beijitos.......
=P
Está mm sem palavras

zita disse...

Bem, vinha mesmo agradecer a visita ao meu blog, e decidi ler este teu post...arrepiante...
beijo

Anónimo disse...

:)
Muito bonito este texto, como sempre me habituas-te! Conseguiste descrever sentimentos que só quem passa por eles poderá ter noção. Como ser maquinista e viver um acidente e principalmente o sentimento que provavelmente nos invade (alegria, duvida, medo)quando sabemos que vamos ser pais.
um beijo
ss

Wellen disse...

Encontrei o teu blog pelo meu, e como tu dizes, "em boa hora aconteceu". Li o teu post e, como pai, tocou-me IMENSO. Felizmente ou infelizmente, não sou de me emocionar muito, mas confesso que não consegui reter as lágrimas ao ler este texto. Está bem escrito; transmite muito bem o teu sentimento. Não é é sobre ficção... Só a ideia de tal me acontecer, não nos carris mas na estrada, gela-me ao ponto de não me conhecer!

Por isso quero deixar aqui o meu voto de coragem e vai aparecendo mais vezes lá na minha "discoteca". ;)

Um abraço e que tu e a tua filha tenham sempre o encontro do sentido da vida um no outro.

Anónimo disse...

Olá:)) Li o teu texto e fiquei muito emocionada.
Obrigada pela partilha!

" A melhor herança que deixar á tua filha é todos os momentos que possas passar com ela"
Boas Festas.
Jinho

Vilma disse...

Chego ao fim deste teu texto com o coração acelarado e emocionada... porque tudo aquilo que pensaste, sentiste, é forte... e ninguém está livre de acontecer algo assim. Mais a mais quando somos directamente envolvidos.
Obrigada por partilhares emoções tão sentidas e fortes...como qualquer um de nós que é pai ou mãe, sente!
Obrigada mesmo!
Vou-te linkar no meu blogue se não te importares! Gosto do que escreves!

Anónimo disse...

Está fantástico este teu texto, Rui. Mil parabéns, tive vontade de ler e reler e...PS: Tenho certeza que és um pai maravilhoso. Abraço para ti e para a tua menina

virilão disse...

Obrigado.
A Renascença ia gostar de saber que tem ouvintes assim...;-)
És um excelente ouvinte e um óptimo contador de historias (com e sem "hagá").
Aquele abraço

M.M. disse...

Olá

Tal como todas as outras pessoas, também eu fiquei sensibilizada com este teu texto. Ainda bem que hoje conseguiste ultrapassar tudo isso e, de certa forma, distanciar-te do sentimento de culpa que apesar de tudo, persiste em existir.
A vida é feita de escolhas, de momentos. Esta mãe fez a sua última, a pior de todas.
Seja como for, é lamentável que a nível de empresa, não te tenham mandado logo para casa e com acompanhamento psicológico. Esta gente tem tanta mania de andar nos centros de saúde por dá cá aquela palha, e esquece-se de também fomentar a saúde mental.
Enfim.

Um grande beijinho para ti,

M.M.

Sara MM disse...

Qd era pequena - e quase nem sabia o que era andar de comnboio - tinha uma coleguinha na escola que ia todos os dias de comboio... e nao eram mto raros os dias em que se atrasava porque "tinha ficado alguem na linha" e "até vi o chapéu"... não eram familiares dela... mas era demasiado forte para todos nós mesmo assim...
mas em qualeur coisa da vida é horrivel ver ou sentir um "acto irreflectido, mas simples, banal (...) sem possibilidade de segunda chance, sem direito a arrependimento"
fico a pensar... Ele existe?!

Vilma disse...

Obrigada pela tua explicação. Seja como fôr o texto está muito bom...mexeu comigo! Impossível ficar indiferente!
Um Feliz Natal!

Anónimo disse...

Apos ler oteu texto, dou voltas e voltas à cabeça na tentativa de encontrar as palavras certas para te dizer...É dificil depararmo nos com situações destas, é dificil sentirmo nos intrevenientes de situações adversas e conviver com isso...
Não sou mãe, mas sou filha, filha de um homem fustigado por uma guerra que ela não criou, ams que foi obrigado a viver...
A unica coisa que te posso dizer é que ames a tua filha como nunca, sufoca a de beijos, perde te em conversas, passeios e momentos importantes, está sempre presente e nunca te esqueças de lho mostrar, de lhe dizer...Porque as situações adversas da nossa vida às vezes levam nos a capacidade de dizer Amo te àqueles que mais amamos!

Margarida Atheling disse...

Faz estremecer!

Anónimo disse...

Tão bonito, gosto muito da forma como escreves!
*^*^*^
Tem um óptimo começo de semana!!!

manhã disse...

Meu Deus! Não me ocorre mais nada!

segurademim disse...

Impressionante, estou sem palavras...

diz-me por favor se isto aconteceu contigo