quinta-feira, dezembro 22, 2005

Taxi - O Regresso a Casa (conclusão)

Quando parei à porta do número 29 da Rua dos Condes, o taxímetro marcava 5,70€. Mordi o lábio inferior e saí para ir tocar à campainha.
Do outro lado da rua, à porta do “Mini-Mercado Barrocal”, estava uma senhora já de idade. Abanava a cabeça e tinha um dos olhares mais tristes que me lembro de ver.
Uma sensação de desconforto invadiu-me. Tinha que sair dali e depressa. Toquei novamente.
Nada.
Como a rua só tem um sentido e, com o estacionamento, uma faixa de rodagem, tinha já vários carros a apitar. Estacionei em frente a uma garagem que por sorte existia perto.
À porta do Mini-Mercado estavam já cinco idosas que falavam baixo entre elas.
- Então você não tem ninguém em casa, Sr. Albino? – perguntei.
O homem tentava disfarçar as lágrimas que começavam a cair pela face.
- Tenho sim, não devem ter ouvido.
Toquei de novo, mas sem sorte. Não estava ninguém em casa. E agora? Deixava ali o homem, ao frio? Ia entregá-lo às velhotas à porta do “Barrocal”? Chamava a policia? Toquei de novo.

- As senhoras sabem se está alguém no segundo esquerdo?
As velhotas pareceram surpreendidas com a minha pergunta e agitaram-se. Nenhuma respondeu. Atravessei a estrada e fui ter com elas.
- As senhoras desculpem lá, mas expliquem-me lá o que se passa.
Uma delas acabou por falar. Percebeu-se que teve que ganhar coragem: - Está sim. A filha do Albino. Mas é uma velhaca, quer se ver livre dele, não lhe vai abrir a porta.
- Espere lá! Você está a dizer-me que a filha está em casa e não quer abrir a porta ao pai?
- Foi o que ouviu. Já não é a primeira vez que o faz. Quer é vê-lo morto para lhe ficar com a casa e com o pouco dinheiro que deve ter – retorquiu uma outra velhota.
- Mas as senhoras têm a certeza que ela está em casa?
- Está, eu vi-a a espreitar à janela quando você tocou. Percebeu que era o pai e agora não lhe abre a porta. Aquela cobra – afirmou a senhora do olhar triste.
Agora falavam todas ao mesmo tempo. Uma delas empurrava-me com o indicador enfiado no meu peito. A que devia ser a dona do Mini-Mercado foi ter com o velhote ao táxi.
- … oh dona Beatriz e daquela vez em que a velhaca lhe bateu?
- aquela malvada, que não tem outro nome…
- tem, tem… vaca, é o que ela é. Fornica com uns e com outros, mete-os a todos em casa e só quer ver o pobre do pai morto.
- e ele que lhe deu tudo.
- Deixem-me falar… calma. Isto não pode ficar assim. Eu vou subir aquele segundo andar e, nem que tenha que deitar a porta abaixo, ela vai ter que receber o pai!
- Isso, faça isso. E aproveite e dê uns tabefes naquela cabra.
- Eu vou, mas as senhoras vão comigo também. Vamos todos e vamos armar uma tal cagaçal que ela vai ter que abrir a porta.
O estado de excitação das velhotas acalmou, subitamente fez-se silêncio. Entreolharam-se. Uma réstea de adrenalina que conservavam impulsionou-as, disseram que sim.
- Sr. Albino, volto já. Não se preocupe que na rua não fica.

A vizinha do rés-do-chão abriu a porta da rua e o grupo de justiceiras geriátricas avançou, comigo à frente. Quando cheguei ao segundo andar ia para fazer um último apelo de motivação ao grupo, quando reparei que estava sozinho. Devagar, devagarinho, agarradas ao corrimão em fila indiana, lá vinham elas subindo as escadas, ofegantes.
Dei por mim sem saber se havia de chorar ou de rir.
- Recuperem lá o fôlego que vamos ter que fazer barulho.
Fechei a mão e bati na porta com quanta força tinha.
- Abra a porta. Está aqui o seu pai – gritei eu a plenos pulmões.
Nada. Bati de novo e, desta vez, dei também uns pontapés na porta para mostrar que não estava a brincar.
- Sabemos que está aí, se você não abrir a porta vou chamar a policia, não duvide.
Uns segundos depois ouviu-se um barulho de chaves no interior de casa e um ferrolho a ser corrido. A porta rangeu.
- Eu vou lá a baixo chamar o Sr. Albino – disse umas das mulheres. Foram todas.
Uma figura muito magra e de cara chupada apareceu numa pequena fresta que se entreabriu. Tinha os olhos raiados de sangue e o cabelo em desalinho. Não disse nada.
- Eu trouxe o seu pai do Hospital e você vai deixá-lo entrar, ouviu?
- Estava a dormir, não ouvi – respondeu numa voz rouca de tabaco.
- Não estou minimamente interessado em falar consigo. A sua atitude é inqualificável. Digo-lhe só isto: o seu pai vai entrar e você vai tratá-lo bem; eu que saiba de alguma coisa, percebeu?

Ao passar por mim no patamar mal iluminado daquele segundo andar, o Sr. Albino olhou para mim sem dizer palavra. Senti que me queria pedir algo, mas que não teve coragem.
Entrou em casa e a porta fechou-se. Fiquei ali, na escuridão alguns minutos. Não se ouviu nenhum som.
Quando, por fim, me fui embora, as velhotas continuavam em conversa à porta do Mini-Mercado, por certo sentiam que pela primeira vez tinham feito algo em relação aquela situação.
Tinham feito pouco, pensei eu. Aliás, também eu tinha feito pouco. Decidi voltar ao Hospital, iria falar com a assistente social, contar-lhe o que se passou, algo teria de ser feito.

- Mas eu sei disso tudo. Já não é a primeira vez que aquela criatura finge que não está em casa para não receber o pai. Eu já lá fui, já falei com ela e fiz um relatório para a Segurança Social – afirmou a M. dos Anjos enquanto bebia um chá na cafetaria do Hospital de S. José.
- Então não há nada que se possa fazer?
- Fazer o quê? Ele nunca apareceu aqui com sinais de maus-tratos, nunca se queixou disso. Que ele não está bem lá, é um facto, ela não tem com o pai os cuidados que devia ter com uma pessoa daquela idade, com problemas cardíacos. Olhe, eu faço o que posso e até mais do que devo. De quem é que você julga que eram os 5,00€ que eu lhe dei?
- Sabe o que lhe digo? É triste ser-se velho – afirmei, enquanto me levantava. Tirei 5,00€ do bolso e deixei-os na mesa. – Esta fica por minha conta.

A caminho de casa, percebi o que queria dizer aquele olhar do velhote no patamar, antes de entrar em casa: que não era ali que queria estar.

Continuo sem saber se há quem goste de estar nos Hospitais, mas agora sei que, mesmo sem precisar, há quem se sinta melhor num Hospital.

20 comentários:

Sara MM disse...

ai jesus!
que isto já vai tão longo e eu ainda não li mais que duas frases desses taxis :o(
ou será hospitais?!?!
mas volto em breve!

Anónimo disse...

Infelizmente esta é uma realidade mais do que recorrente nos dias de hoje...também não é novidade, pois estamos fartos de conhecer casos de idosos que vivem condenados à sua própria sorte e por vezes com uma familia tão númerosa. Sei o quão dificil é ter a cargo uma pessoa de idade com as suas limitações, doenças, etc...mas caramba será que o sangue, os laços, o afecto..sei lá não falam mais alto ao coração dessa gente??? Doi! Mas infelizmente não posso meter todo o mundo debaixo da minha asa e dar carinho e afecto...Resta me apenas dar carinho e afecto aqueles que posso, dar 2 de dos de conversa com a velhota no autocarro, no comboio, sei lá e pensar que ao menos por aquele instante a pessoa esqueceu que está só!
Feliz Natal e Bom ano novo!

Ana P. disse...

Cada dia que passa pergunto-me a mim própria qual a condição do ser humano, para que vive, para que serve?
É triste, é muito triste....
Mas acontece

Jinhus

Anónimo disse...

Bem escrito mais uma vez.
Toques refinados de humor, mas com uma mensagem fortíssima.
Aposto que este taxista não leva bandeiradas gigantes a turistas.
Crianças e idosos estão no mesmo patamar de escadas diferentes mas devem ser tratados
com o mesmo amor e com o mesmo carinho.

Feliz Natal a todos.

Rui um abraço

Anónimo disse...

Grande texto Rui! Bem escrito, mensagem forte, verdadeira e que me tocou muito. E depois ainda querem que acredite em espirito de natal! Isso não é pra mim mesmo.
Mas mesmo assim...... olha, um bom natal para ti e para todos os que te leem.
Beijocas
ss

Margarida Atheling disse...

FELIZ NATAL!!!

Meia Lua disse...

Tão triste e ao mesmo tempo tão verdadeiro....
Sabemos que existem histórias semelhantes, como é possível?
Enfim...
Para ti um óptimo Natal :)
beijinho

Sara MM disse...

pois.... e o natal que serve tanto para tapar coisasa feias do mundo, serve bem para ver outras tantas! Acredita que há mti quem vá deizar os "velhoteS" ao hospital com uma desculpa de uma doença qualquer, só para passarem as festas "sossegados" é incrível!!

BJS e FELIZ NATAL!!!
Sem hospitais e com carinho pra dar a velhotes!!

mixtu disse...

elucidativo
festas felizes

segurademim disse...

Há outros apoios e serviços de proximidade que podem complementar os cuidados domiciliários.

A assistente social é incompetente, não chega chamar um táxi! tinha que falar com a paróquia ou uma instituição que pudesse acompanhar o Senhor no seu próprio domicílio! a misericórdia e outras instituições que estão no terreno são exactamente para isso... é preciso rentabilizar os recursos que com os nossos impostos existem na comunidade!!!!

BOM NATAL PARA TI E PARA OS TEUS

BEIJO :)

butterfly disse...

Olá Rui,passeisó para te desejar um Feliz Natal com muitos sorrisos!!
Beijinhos!!

virilão disse...

Quanto a mim esse taxista merecia um Prémio Móvel em 2006. Pode ser que em Estocolmo estejam atentos...
"móvel 31, ao mini-mercado "barrocal"".
O problema dos velhos é um problema da nossa geração, que mais uma vez vai ter que emendar as politicas sociais, que os actuais cinquentões têm aplicado.
Haja saúde...ou estamos mal.

Um á-parte indecente: há muita gentinha que em "nova" não vale nada para o seu próximo, por isso se mais tarde ninguém deles se lembrar...
Há uns anos (era eu um garotinho de 7/8 anos), numa dessas novelas brasileiras (creio que era a "selva de pedra"), havia um velhinho forreta e muito egoista, o Otilio (meio surdo e tal), e um dia alguém lhe disse : "os egoistas morrem sozinhos"...e aquele, da novela, morreu!
Pensemos nisto... o mundo é o que dele fazemos.
Feliz Natal a todos e não se esqueçam de reciclar nesta época.

M.M. disse...

Muitas vezes penso que o mais doloroso deve ser chegarmos aos últimos anos das nossas vidas, depois de tanto trabalharmos e tanto sacrificarmos, para sermos tratados - espero que não pelos nossos filhos, mas certamente pela sociedade em geral - como invólucros dispensáveis. Será que custa assim tanto olhar nos olhos de um idoso e ver o jovem?
Enfim...
Gosto muito mesmo da maneira como escreves. Tens realmente um dom, continua, por favor.
Boas Festas para ti. Que bom ter descoberto o teu blog.

Um beijinho.

manhã disse...

Aos velhotes solitários que passam o Natal por aí nos lares e nos hospitais! Bom Natal!

Anónimo disse...

A parte mais dificil.......
Bom Ano Novo!!!
Sorrisos e beijitos
=P

Anónimo disse...

Essa tua capacidade de encarnar personagens, colocares-te no lugar dos outros, saires de ti e pensar como serão outras vidas, outras existências é muito revelador da pessoa que és. Uma pessoa muito humana.

Tal como o facto de, nesta altura do ano, te teres lembrado das pessoas que estão "abandonadas", mesmo que estejam acompanhadas.
Pois o Natal pode ser uma época muito feliz para muita gente, mas por outro lado, para as pessoas que estão sozinhas é uma época angustiantemente e avssaladoramente solitária.

Muito bem escrito, alertando para questões sociais, sem seres paternalista e moralista, com uma pitada de humor e sarcasmo. Como sempre.

Gostei mesmo muito.

_________________________

Alberto Oliveira disse...

Nem todos os contos, têm de ter finais forçosamente felizes. Este é um deles e que relata o final de vida sem dignidade, de um dos muitos idosos deste país. Gostei.

GNM disse...

: )

Espero que entres muito bem no novo ano!
Diverte-te e sorri!

Mónica disse...

esta é uma realidade que conheço bem, e que torna o nosso coração pequenino, porque por mais que desejemos, nem sempre podemos fazer algo.

Enfim... É a vida...

Só espero que este ano as famílias não se esqueçam dos seus velhinhos, aqueles que lhes deram tudo quando eram mais jovens e fizeram muitos Natais maravilhosos.

:)

Anónimo disse...

Gosto muito de te ler:))
Desejos de Uma entrada em grande no 2006
beijinhos fofos