terça-feira, julho 26, 2005

Taxismos - Um Homem Livre

Acontece-me cada uma. Isto de ser taxista tem muito que se lhe diga. A maioria das pessoas não faz a menor ideia.
Nem sei bem porque gosto disto, mas a verdade é que gosto. Talvez porque me permite o contacto com muitas e variadas pessoas.
Mas acontece cada coisa. Ainda ontem, por exemplo. Eu nem devia estar a contar isto, ninguém vai acreditar, mas não quero saber.
Deviam ser umas 2h00 da manhã. Estava parado há mais de meia hora em frente à igreja de Benfica. Sentia-se o ar pesado, uma estranha calma mesmo para uma noite de verão, quando me apareceu aquele sujeito. Nem o vi aproximar, só dei por ele quando me abriu a porta detrás do carro. Se não soubesse melhor, diria que se tinha materializado ali mesmo.
Falou com uma voz profunda, cavada, mas ao mesmo tempo, como dizer… suave, não sei explicar melhor.
- Sabe qual é o ponto mais alto de Lisboa? – perguntou ele.
- Não tenho a certeza, talvez as Amoreiras, o Hotel Sheraton?
- Referia-me ao local natural, por assim dizer, sem contar com construções.
Ele há com cada um. As perguntas que nos fazem a uma hora destas. O tipo era novo, não tinha nada ar de maluco. Bem vestido, bem tratado, até a barba tinha feita.
- Não sei, com essa é que você é que você me apanhou – respondi eu.
- Sabe onde fica a capela da Sra. do Monte, na Graça?
- É aí? Não sabia que era o ponto mais alto de Lisboa. Não é sitio onde vá muitas vezes.
Ajustei o espelho para o poder ver melhor. Reparei que sorria.
Dei à chave, escolhi a tarifa e partimos.
O trânsito era quase nenhum. Não se via ninguém na rua. Aquele tipo intrigava-me. Acabei por meter conversa.
- Olhe que a capela já deve estar fechada – disse eu, sentindo-me logo um pouco estúpido.
- Não quero ir à capela. Mas pode-se dizer que vou numa espécie de peregrinação.
- Desconhecia que se faziam romarias à Sra. do Monte – ainda pensei acrescentar algo sobre a hora, mas não o fiz.
- É uma romaria muito pessoal. Eu nunca fui muito de me meter em confusões. Ajuntamentos de pessoas fazem-me impressão. Não, isto é algo muito pessoal, muito meu.
- Muitos pecados para expiar.
Ficou calado. Reparei que olhava pela janela. Não pude deixar de reparar como as luzes da cidade se reflectiam nos seus olhos.
Preparava-me para dizer que não tinha nada com isso, que já estava a falar demais, quando ele olhou para o espelho, nos meus olhos e me disse: - Esta noite tenho umas contas para acertar. Libertar-me.
- Libertar-se?
- Sim. Há muitas formas de cativeiro. Hoje liberto-me do meu. Vou para as terras escuras. Tão certo como a vida nada significar, e que em nada tudo termina, é o céu e o inferno estarem perto demais um do outro.
“Há muito que quero ir para as terras escuras, mas sempre houve algo que não me deixou. Pois hoje vou libertar-me de todas as dores, de todas as mágoas”.

Só vi o auto-tanque da Câmara que andava a lavar a rua no último instante. Desviei-me por instinto e não lhe bati por milímetros.
A minha pulsação estava disparada. Fiz um esforço para me recompor. Confesso que agora, ao pensar nisso, não sei se estava naquele estado por causa do acidente eminente, se por causa do que tinha ouvido, da expressão dele ao me dizer aquilo.
Subíamos a Rua Maria da Fonte. O passageiro parecia tranquilo. Se se tinha assustado, não o demonstrava.
Ao chegar ao Largo da Graça, ouvi-o dizer: - Estamos a chegar. Já reparou como está uma noite linda?
Eu devia estar com cara de caso porque ele sorriu e pediu-me desculpa.

Parei o carro. Não se ouvia um barulho que fosse. Uma ligeira brisa fazia-se sentir mas não estava frio. Pagou-me e, ao sair, disse-me: - Quando passar um pássaro em direcção a sul, vou agarrar-me à sua cauda e vou partir.
E tinha ele acabado de me pedir desculpa.
Afastou-se e ficou a contemplar a cidade, lá em baixo.
Por qualquer razão, ao mesmo tempo que eu queria sair dali, algo me fez ficar. Saí do carro e fiquei a observar aquela estranha criatura.

Não sei bem o que aconteceu a seguir. Pelo menos não sei bem como o descrever.
Vi-o passar a vedação. Sei que corri na direcção dele. Saltou. Elevou-se no ar levando consigo todas as suas dores e mágoas.
Planou durante breves segundos e caiu. Vergado pelo peso que carregava, embateu no chão. Num derradeiro esforço, murmurou “adeus”.
Juro que o vi erguer-se e voar. Finalmente o seu sonho tinha-se tornado realidade, era um homem livre.

Eu sei que não vão acreditar. Mas posso garantir-vos uma coisa: há por aí cada um.

2 comentários:

Anónimo disse...

Não sabia que eras Taxista. :-)
Por breves segundos foi realmente livre, tantos e tantos que nunca chegam a saborear essa plena liberdade...
Será melhor assim?...entregues ao destino, e num ápice acontece, nem tens a possibilidade de escolha.
O prazer de comandar a nossa própria vida não é para todos, é para quem escolhe planar nem que seja por breves segundos.
Abraços

Rui disse...

São tantas as perguntas. Eu gostava de ter respostas, mas não é fácil. No entanto, vou procurando.
Abraço.