quinta-feira, julho 14, 2005

O Último Comboio (parte II)

Sentiu o sangue subir-lhe à face. Baixou os olhos. Sentia-se atrapalhada.
Por fim, conseguiu dizer algo: - Desculpe… eu moro no 5º, vinha pagar o condomínio… só hoje vi o seu aviso, já devia ter vindo mais cedo.
Ele parecia algo divertido com a atrapalhação dela. Mantinha o mesmo sorriso.
- Eu conheço esta música – exclamou ela.
Sem dar por isso, ela tinha entrado em casa do seu vizinho.
Com os olhos postos na luz alaranjada do leitor de cd’s, estava agora a meio da sala.
- Já não ouvia isto há tanto tempo. “Heartbreak Station”, dos Cinderella.
- E eu que pensava que era o único…
Foi bruscamente interrompido.
- Peço imensa desculpa. Entrei-lhe pela casa a dentro – não conseguia disfarçar o incómodo que sentia.
- Não tem importância. É sinal de que gosta mesmo muito deste tema.
- Sim, traz-me muitas recordações. Recordações de há uns anos atrás. Da minha juventude.

A sala estava pouco iluminada. Apenas um pequeno candeeiro junto do monitor do computador estava aceso. A restante luz na sala vinha do leitor de cd’s e da janela que estava aberta.
Pareceu-lhe uma sala algo despojada. Uma mesa com 4 cadeiras, um sofá de três lugares, um pequeno móvel onde estava o leitor de cd’s e o computador e uma cadeira com rodas. Reparou que não havia televisor.
A decoração parecia ser constituída unicamente por colunas com cd’s. Muitos cd’s. Havia também um quadro numa das paredes. Fez-lhe lembrar Number 7, de Jackson Pollock.
“Típico de um homem solteiro”, pensou.

- Que coisa, voltar a ouvir esta música, assim, tantos anos depois – pensou ela alto.
- Mas senta-te. Desculpa, já te estou a tratar por tu
Ana sentou-se no sofá, ele na cadeira que estava virada para o computador.
- Não, claro, não tem importância. Ana, chamo-me Ana.
- Pedro…
- Sim, eu sei.
Ao vê-lo um pouco surpreendido, sorriu e explicou: - O aviso, está assinado.
- Oh pois. Disparate meu.
Entretanto, a música tinha chegado ao fim e Pedro, com o comando, voltou a colocá-la.
- Mas diz-me, que recordações são essas que o “Heartbreak Station” te traz? Desculpa, antes disso, queres tomar alguma coisa?
- Não, obrigado, estou bem assim… só se for um copo de água.
- Fresca?
- Natural.
- Vais desculpar-me mas água só da torneira, engarrafada não tenho.
- Da torneira, eu bebo da torneira.
- Mas conta – disse ele enquanto ia à cozinha. Tinha ficado curioso.
Ana reparou numa foto a preto e branco que estava junto ao computador. Era o que parecia ser uma praia, cheia de conchas de ostras abertas. Muitas. Tinha um ar desolado, triste.
“Muitas ostras mas nenhuma pérola”, pensou ela.

- Aqui está, água pura e cristalina da torneira – gracejou ele -. Vais ter que me desculpar duas coisas – acrescentou -, uma é eu ter perguntado o que querias beber, quando só tenho água em casa. A outra, é eu estar sempre a pedir desculpa. Desde que chegaste parece que não fiz outra coisa.
Ana sorriu.
- Eu também já te pedi.
- Mas quanto à música…
- Vais achar-me maluca.
Pedro continuava a interrogá-la com os olhos.
Ela sentia-se algo intimidada. O que ele lhe pedia não era fácil, apesar de parecer. Mas, ao mesmo tempo, sentia vontade de o fazer.
Inspirou, como que para ganhar coragem.
- Pois bem. Por volta dos meus 17 anos vivia aqui perto, na Amadora, mas fui estudar para Lisboa. O transporte que mais de dava jeito era o comboio.
Falava depressa, gesticulava. Parecia querer dizer tudo de um fôlego só. Talvez porque receasse perder a coragem.
- Eram daqueles comboios antigos, sabes? Enfim, a partir de certa altura, comecei a ver em muitas carruagens o refrão desta música.
Escrito nas carruagens, a marcador, percebes? “she took the last train out of my heart”…
Ele, que até agora tinha estado imóvel, inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nos joelhos; encostou o queixo às mãos, unidas. Olhava agora para ela muito fixamente.
- … mas em quase todas, mesmo. Todos os dias eu apanhava dois comboios, sentava-me ora nas carruagens da frente, ora nas de trás e em quase todas elas, aquela frase se repetia.
“Mais, a acompanhar a frase, quem a escrevia colocava sempre a data: o dia, o mês, o ano; e os dias iam sempre mudando, as frases não tinham sido todas escritas de uma só vez, não, iam sendo escritas ao longo do tempo”.
- Por um doido, com certeza – deixou escapar Pedro, que a ouvia com toda a atenção.

Pedro tinha 33 anos. Vivia sozinho e tinha tido a audácia de aceitar ser o administrador do condomínio, quando percebeu que mais ninguém estava disposto a avançar. Tinha colocado como condição procurar uma empresa especializada na gestão de condomínios a quem “passar a pasta”.
Tinha acabado de fazer uma contestação no computador, era advogado. Preparava-se para ir para a cama ler “A Casa do Sono”, de Jonathan Coe, quando lhe tinham batido à porta.

- Mas queres ouvir algo realmente estranho? – disse ela depois de beber um gole de água. Continuou sem o deixar responder.
- Eu identificava-me com quem escrevia aquilo. Por qualquer razão para mim desconhecida, eu como que compreendia aquela pessoa. Sentia que a conhecia. Pasme-se…
Ana reparou nos olhos de Pedro. A sua expressão tinha algo de indecifrável. Parecia paralisado, por momentos pareceu-lhe que ele não estava ali, o corpo sim, mas a mente tinha partido para parte incerta.
Ana pousou os olhos no chão e esperou que Pedro dissesse algo, mas este parecia incapaz de pronunciar uma palavra que fosse. Continuava ausente.
- Vou passar o cheque – disse ela enquanto procurava a caneta.
- Não, espera – disse Pedro apressadamente; levantou-se -, vais ter que me explicar como é que sentias isso por alguém, apenas por uma frase escrita num comboio.
Foi à cozinha, de onde regressou com um copo de água. Reparou que ela estava a olhar fixamente para a foto que parecia ser de uma praia.
- Por favor, conta-me.
A surpresa inicial parecia ter dado lugar a uma curiosidade excitante.
- Não é fácil explicar. Não sei sequer se tem explicação.
Ana olhava agora pela janela. Recordar aquele período da sua vida nunca tinha sido fácil. Nunca tinha retirado prazer disso mas, naquele momento, sentia que era capaz de falar disso.
No fundo, sempre tinha desejado que alguém quisesse ouvir aquela sua “história”. Sendo difícil de admitir, sempre tinha tido necessidade de que alguém se interessasse por si.
- Falar sobre isso é falar sobre mim e eu sempre tive dificuldade em falar sobre mim – olhava distraída mas fixamente nos olhos de Pedro.
Fez-se silêncio. Pedro reconheceu algo nos olhos de Ana. Quase que podia jurar que era tristeza.
- Associava aquelas frases a um sentimento de abandono, de ausência, de solidão – continuou ela -, achava que quem tinha necessidade de escrever uma frase daquelas num comboio, é porque não tinha com quem falar. Entendia aquela frase como um grito, como se fosse o deitar fora a gota de água que iria fazer transbordar o copo.
Ana falava automaticamente. Parecia nem dar pela presença de Pedro. Pensava alto.
- Achavas que podias ter sido tu a escrever aquelas frases – o ponto de interrogação colocou-o Pedro com o olhar.
- Sim, acho que sim, podia ter sido eu. Ao mesmo tempo, sentia que podia ajudar essa pessoa, que a podia escutar, achava que teria feito diferença. Mesmo que não tivesse nada para dizer, só o facto de escutar teria feito diferença.
- Quem sabe era isso mesmo que essa pessoa procurava, alguém com quem falar, com quem partilhar algo.
- Mas nunca aconteceu. Apesar de sempre ter tido a sensação que um dia ia conhecer essa pessoa, nunca a surpreendi enquanto escrevia.
- O que eu tenho alguma dificuldade em compreender é como é que se pode sentir algo por alguém que não se conhece. Apenas por algo que essa pessoa possa dizer.
- Ah, pois. Já coloquei essa mesma questão a mim mesma muitas vezes.
“Nunca encontrei uma resposta satisfatória, mas sei que acontece. Sei que bastam as palavras para se estabelecer uma relação com alguém Uma relação forte. Ao ponto de nos poder abalar. Abalar as nossas vidas, fazer-nos questionar coisas que tínhamos por adquiridas, questionarmo-nos a nós próprios.
- Como uma coisa que à partida parece simples, pode tornar-se tão complicada.
Olhavam os dois para a janela. No vidro, as suas silhuetas reflectidas.
Foi Ana quem quebrou o silêncio.
- A partir de certa altura as frases foram rareando e deixaram de aparecer. Quem sabe se terá conhecido alguém. Sempre me interroguei sobre isso.
- Quem sabe se não foi o marcador que secou…
- Achas que terá desistido? – perguntou Ana.
- Não forçosamente desistido, pode ter chegado à conclusão que não valia a pena. Afinal, não estamos a falar de nada muito nobre como escrever poemas, estamos a falar de um tipo que escrevia uma frase em comboios! Um tipo solitário de certeza. Um dia deve ter percebido que não valia a pena, que ninguém ia aparecer. Cansou-se.

As palavras de Pedro fizeram Ana tirar os olhos do televisor.
- Já há muito tempo que não pensava nestes episódios – disse Ana -, nem imaginava que me lembrava tão bem de todos os pormenores.
“Deves achar-me uma parva… Sabes? Nunca tinha contado isto a ninguém. Nem sei porque te estou a contar, nem sequer te conheço, e daí… talvez seja por isso mesmo”.
- Não penses mais nisso. Ainda bem que contaste. Eu tenho que confessar algum espanto, alguma surpresa… muita surpresa. Tudo isto é, de alguma maneira, uma revelação para mim.
“Mas eu entendo-te. Eu também fui sempre muito reservado, sempre fui de guardar as minhas coisas para mim. Sofro de uma certa tendência para cair em buracos, mas também sempre consegui sair deles sem grandes mazelas… só com alguns arranhões – disse Pedro, sorrindo -, são arranhões que prezo muito, lembram-me coisas, dificuldades que aprendi a tornar úteis, que me ajudam agora na resolução de alguns problemas, no enfrentar dos fantasmas.
- Precisamos conquistar essas armas para combater os nossos fantasmas, não é? Sinto isso. Também tive que lutar para conseguir essas armas. Tive que lutar para poder ir à luta. E sabes o que é mais engraçado… ou triste, não sei? Todas essas lutas foram contra mim própria, ainda o são.
- Todas?
- Talvez não todas, mas as mais difíceis foram. Aquelas que mais me marcaram, essas foram.
“Consumi muito tempo, muita energia a tentar perceber quem eu era, como eu era, porque era assim”.
- Mas porquê tão grande esforço? Porque não deixar isso de lado e concentrares-te em viver a tua vida?
- Sem me entender? Era a minha maneira de racionalizar as coisas. Sempre tive muita necessidade de compreender o que me rodeava, nunca fui de aceitar as coisas só porque sim, por serem moda, porque me diziam para o fazer. Sempre questionei tudo. Com tudo o que isso implica.
“Ora isso chocou de frente com o facto de eu não me compreender lá muito bem a mim própria. Tentar compreender o que me rodeia sem me compreender a mim própria, não é tarefa fácil”.
- E esse conflito nunca te consumiu?
- Consegui evitar isso. Acho que me fui agarrando a algumas coisas, a algumas bóias que me foram mantendo à superfície. A música, por exemplo. A frases escritas em comboios… foram coisas que me foram permitindo sonhar, que me foram entretendo. De alguma maneira, pegava nelas e transportava-as para a minha realidade. As energias que gastava com isso, iam impedindo que me consumisse.

Pedro estava pensativo. Não sabia o que dizer.
Ana olhou para o leitor de cd’s e viu as horas. Era tarde.
- Vou indo, é muito tarde. Que disparate.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta. Pedro seguiu-a.
- Olha – disse ele -, quero que saibas que não fiz nenhum julgamento acerca de ti, do que me disseste. Não sou de julgar as pessoas.
Ana abriu a porta. Sem se voltar para trás, virando apenas a cabeça sobre o seu ombro direito, disse:
- Toda a minha vida tenho tentado ser boa pessoa, fazer aquilo que acho correcto. Interrogo-me se tem valido a pena. Às vezes tenho muitas dúvidas de que tenha valido. Interrogo-me sobre como tenho conseguido superar as dificuldades com que me tenho deparado.
“Continuo a tentar perceber quem sou”.

Fechou a porta e avançou para a escada sem se lembrar que não tinha pago o condomínio.
Não foi de elevador. E não acendeu a luz.

3 comentários:

Anónimo disse...

Aiii Vizinho, eu sei que tinha dito que só comentaria no final mas... não resisti. Adorei, adorei, adorei !!! Espero ansiosa pela continuação. Beijos :) (Ahh já agora, tem ai uns ovinhos que me empreste? :p) (VizinhaDaPortaAoLado)

Anónimo disse...

Ai melhér... vocemessê só me conhece para me pedir coisas... tome lá os ovos... vá lá... não são esses... ah magana!! :)

Anónimo disse...

Estou simplesmente a adorar...
Nem imaginas como esta historia me diz muito...
Parabens...obrigado por seres como és....especial!