No cais da estação de Metro, com as biqueiras sujas dos All Star milimetricamente perpendiculares à linha amarela, pensava nas traições que a idade lhe começava a infligir – aquela dor que se lhe enfiava na zona dos rins sempre que estava de pé, na mesma posição, mais que dois minutos era uma dessas traições. Cerrou os dentes com força. Se havia coisa que não apreciava, era traição.
O volume de voz da rapariga que, pelos altifalantes, mantinha os impacientes passageiros ao corrente das notícias de há dois dias, aumentou, anunciando, ainda antes do placard electrónico, a aproximação da composição ferroviária. Um sopro quente, com cheiro de carris soterrados, foi empurrado para a galeria do arquitecto Siza, precipitando os corpos, até então respeitadores, para lá da linha. Um senhor gordo e demasiado vestido, que transpirava abundantemente das patilhas, deu-lhe um encontrão, fazendo-o pisar o risco. Cerrou também os punhos com força – não apreciava traições nem desordem.
Foi encafuado não tanto por vontade própria, mas pelas circunstâncias, numa das extremidades da composição, junto à porta que só abre no trajecto inverso. De pé, que nem tentou procurar lugar sentado, tão grande era a ansiedade em aliviar o peso do corpo que sentiu nos companheiros de viagem. Teria de suportar os rins durante seis estações. Nada a que não estivesse habituado. Antes assim. Bem vistas as coisas, ia mais à vontade pé, que nunca sabe onde pousar o olhar quando tem desconhecidos sentados mesmo à sua frente. Encontrou conforto na máxima que lhe ocorreu naquele momento: suporta-se melhor o lombo dorido que o olhar perdido.
Sorria para dentro quando uma rapariga lhe chamou a atenção – não tanto ela, mas mais as calças que usava. Depois de matutar no assunto durante um momento, Frederico concluiu que começava a não ter também já idade para se recordar de algumas coisas que tinham tido importância na sua juventude. Começavam a ficar já longe demais, ténues vestígios que, amiúde e pelas razões mais estranhas, o faziam regressar ao passado. Viu-se no alto de uma comprida curva que lhe fez lembrar o dorso de um Dromedário. Subitamente, a curva estremeceu e ele desequilibrou-se, começando a cair em direcção a uma das extremidades. Tinha 35 anos e sentia-se velho.
O comboio chiou no aperto da curva e deu um solavanco tal que o arrancou do sítio e dos pensamentos cinzentos. Reconquistado o equilibrio, achou curioso o tipo de questões que com ele implicavam, mesmo quando se encontrava em sofrível situação de equilíbrio, entalado entre desconhecidos e em permanente esforço de contenção, tentando não tocar em alguém.
Do que ele não se tinha conseguido lembrar da sua juventude, eram as razões que o tinham levado a, no 10º ano, escrever a esferográfica numa mochila verde-tropa em que carregava um caderno e alguns livros para a escola. É que a rapariga sentada perto dele – e que teria a sua idade de então – tinha as calças de ganga todas escritas a esferográfica. Havia letras de todo o formato, tamanho e cores. Umas redondas, outras angulosas. Havia palavras isoladas e frases mais ou menos longas. Umas eram em português, mas a maioria em inglês. Havia filosofia e muita música. Um tratado de vida, concluiu Frederico, sem saber bem o que isso significava.
The only moment we were alone. First breathe after coma. Your hand in mine. Six days at the bottom of the ocean. Three Seed. Lets dance to Joy Division. The stylish kid in the riot. Cool kids wear Ray Ban. Poupar a vontade. Amar é metade de crer. Carpe Diem.
Havia mais, mas não conseguiu ler por impossibilidade de se aproximar.
Nos anos 80, pelo menos na sua escola, chegou a ser moda, mas hoje, depois de tanta coisa ter acontecido, pensava que a juventude já tinha encontrado outras formas de exteriorizar as suas crenças e angústias – coisas mais “radicais”, como tatuagens e piercings. Mas a rapariga ali estava, sentada perto dele, olhar vago e muito compenetrada na música que lhe chegava através de dois fios brancos, que desapareciam num saco que ela transportava ao ombro.
Faltavam quatro estações para o destino, o tempo possível para que Frederico se recordasse das razões que o tinham levado, há muitos anos, a escrever na sua mochila, que à superfície lhe era mais difícil divagar. Eram coisas que hoje lhe pareciam parvas – Up The Irons, Megadeth, peace sells but who’s buying, Hell Raiser, é proibido proibir… Carpe Diem, um clássico destas coisas –, mas que na altura lhe pareceram ser de rebeldia, anti-o-que-quer-que-fosse, muito anti-quem-mandava. Seriam as mesmas razões que levavam uma adolescente a escrever nas calças, hoje? Concentrou-se.