terça-feira, abril 14, 2009

Vagar

Vinte carcaças… não, quinze carcaças... dez carcaças… quinze carcaças! Talvez sejam demasiadas. Talvez não caibam no congelador. Separadas, às três ou quatro, haverão de caber. E porque não voltar cá amanhã? Duas chegavam…

Os algarismos contorceram-se no mostrador vermelho, acompanhados pelo habitual ruído que chama a atenção para a progressão numérica. Deu um pequeno passo à frente, indeciso. Tossiu sem vontade e sorriu sem convicção, para ganhar tempo. Quinze carcaças, acabou por murmurar – acrescentou um se faz favor, mas as palavras morreram-lhe ainda antes de chegarem aos lábios. Trocou umas moedas por um saco de papel cheio de pão fumegante, que enfiou dentro de um saco de plástico com asas. Deixou a pastelaria do pão sempre quente e atravessou a estrada, a caminho de casa mas, ao deixar o asfalto, mudou de ideias. Diante de si, reflectido no extenso relvado, o sol de inverno convidava a pensar em mergulhos de verão. Sentou-se num dos bancos de muitos tamanhos e feitios que cercavam o quadrado verde, a contemplar as árvores despidas e os riscos assimétricos e desordenados que elas desenhavam na relva mal tratada. Corriam cães em todas as direcções e não faziam barulho, não ladravam. Jogavam miúdos às cartas, num dos vértices do Largo, e enchiam a tarde de gritos e palavrões. Do outro lado, um dos bancos, de pedra larga e comprida, estava preenchido a todo o comprimento pela indiferença de alguém perante a vida. Dormirá? Uma rapariga com ar de longe, aparentava aflição ao querer muito retirar uma cadeira de rodas, com um velho dentro, do relvado. Para a próxima, não vás para tão dentro da erva. O aroma que se libertava de dentro dos sacos distraiu-o da paisagem, ao mesmo tempo que um ronco profundo e grave lhe percorreu as entranhas. Estava-se bem ali, não fora a gulodice e a cabeça a ficar quente na proporção inversa em que as carcaças arrefeciam. Olá gente estranha, ‘atão? Mais uma rapariga para a molhada do jogo de cartas. Poupados nos cumprimentos de ocasião, que não servem propósito evidente, o grupo respondeu passando-lhe para a mão uma garrafa de litro de cerveja. Quente, foi fácil adivinhar no trejeito contorcido, que ela tentou disfarçar gritando um qualquer disparate mais alto que os gritos do grupo. Juvenil e jovialmente, deu por si a dar aos pés, como se estivesse a dar balanço num baloiço imaginário. Não conhecia outro jardim onde, à frente de cada banco, existissem tão profundas e largas crateras, seguramente escavadas por inquietos e balouçantes pés, ao longo de não pouco tempo. Era de tal maneira assim que, estando sentada normalmente no banco, nenhuma pessoa de estatura corrente conseguiria chegar com os pés ao chão. Sentiu saudades de baloiços. Quando terá sido a última vez que andei num? Vasculhou os recantos mais esquecidos da memória, mas não encontrou a resposta. Pudera, como pode alguém saber que aquela é a última vez que anda de baloiço; é algo importante apenas quando já não se tem idade para isso. Ficou a remoer aquele pensamento. Haverá uma idade para andar de baloiço? Um peso, talvez… – não se achando com coragem para voltar a sentar-se num baloiço, lamentou não se ter despedido convenientemente. Uma súbita sensação de vazio encheu-lhe o peito e o estômago, apontando-lhe o caminho de casa. Para mais, aquele sol era matreiro o suficiente para, aproveitando-se do seu pouco habitual baixar da guarda, o constipar. Devo ir. Mas o vagar daquela tarde manteve-o sossegado por mais algum tempo. Se ao menos tivesse trazido a boina... Teve uma ideia. Retirou o saco de papel com o pão e sacudiu vigorosamente o saco de plástico. Dobrou as asas para dentro e, indiferente aos olhares que sabia que iria atrair, colocou o saco no alto da cabeça. Os cães, ainda em silêncio, continuavam a correr toda a extensão do relvado. No canto do jogo de cartas, jazia abandonada e vazia uma garrafa de litro de cerveja. A rapariga que aparentava ter vindo de longe, já sem aflições, ia atrás da cadeira de rodas, pelo passeio. Escorrendo de dentro do saco de plástico, o ténue aroma de pão acabado de cozer penetrava-lhe as narinas, desassossegando-o. Um novo rugido subiu-lhe das tripas, mas ele deixou-se estar. A abanar os pés, como se estivesse a dar balanço.



17 comentários:

Maria Liberdade disse...

Estranho? Ele.

Arábica disse...

Vagar.


Para sentar, escorregar no ar envolto no vapor do pão e balançar a memória.


Muito bom, Rui.


Beijos

lélé disse...

Por acaso, está bem lembrado! Como é que a gente se há-de lembrar da última vez, se a última vez nunca o chegou a ser?
Agora, estar com a barriga a dar horas e o pôr o pão na cabeça, é que não entendo!...

Carla disse...

momentos em que me revejo, acho apenas que não resistiria a pegar num "molete" (desculpa lá mas carcaça é aí para o Sul) e saborear o sue calor...
beijos

Fenix disse...

Então há uma idade para andar de baloiço?
E para deixar de andar?
Estás a dizer-me que não posso voltar a andar de baloiço?
Logo eu que gosto tanto!
Nem penses!
Tenho 44, mas até podia ter 84, se me aparecer um baloiço resistente (não precisa de ser muito, que eu não peso muito) à frente e não houver polícia por perto a ver se não me sento...
Sento e baloiço-me..., ah isso é que sento!
Então vou desistir de um dos meus maiores gostos de criança?!?
Isso é que não!!!

Ah e também adoro pão quente!
Já agora, porque não comer o pão quente ali mesmo, enquanto estava quente?

Beijinhos
São
:-))
(Vamos lá filosofar :-))))

ze disse...

Eu fiquei a descansar lembrando-me da ultima vez que andei de baloiço e no meu desapontamento desse dia por não ter conseguido atingir a amplitude do movimento da vez anterior, que nem tinha sido assim à tanto tempo!

Essa penúltima experiência foi numa tarde memorável em que fui parar não sei a que propósito a uma casa de ocupas.
Estava organizada como se de um parque de diversões se tratasse.
Eu fiquei hipnotizado com o balançar daquele pêndulo preso por um gancho e uma argola ao tecto.
Chegada a minha vez açambarquei o brinquedo como uma criança e tocado por um verdadeiramente inesperado talento divino ultrapassei com facilidade a mítica marca dos 180 graus.
Tomado por um sentimento similar ao do Di Caprio na proa do Titanic, achei que no mínimo teria já igualado o recorde mundial da especialidade.
E agora lembrei-me que fiz planos de ter um assim em casa.
(mais uma tabela de basket)

Leonor disse...

enquanto se caminha, pode-se olhar. E ver.

(que saudades dos baloiços!!!)

~pi disse...

caminhamos sobre o belo de ser e poder olhar assim :)

( caminhamos sobre a escrita onírica

e sublevada,



beijo




~

Alberto Oliveira disse...

... com alguma curiosidade aproximou-se do baloiço. Era a primeira vez que via tal coisa e não fazia a menor ideia da sua utilidade. De frente para ele, tocou levemente na base de madeira sutentada por duas grossas cordas. O baloiço moveu-se lentamente para a frente e para trás, num espaço de poucos centímetros. Atreveu-se a dar maior impulso à coisa não se afastando de onde estava inicialmente e a base de madeira no movimento de regresso, acertou-lhe em cheio na ampla testa.
Os quarenta centímetros de comprimento de Znag Y, natural do planeta M435, encontravam-se agora estendidos na relva do Jardim das Acácias Perdidas ao Rato. Ao seu lado, dispersas e ainda fumegantes, meia-dúzia de carcaças aguardavam que o seu proprietário se levantasse e lhes desse o destino que ele bem entendesse. Que não se podia prever, uma vez que no lugar onde os humanos têm uma boca, Znag tinha uma legenda "!!riac miv oitis euq eM. !odaxil uotsE"

LUA DE LOBOS disse...

como sempre é para mim, uma delicia ler-te
xi
maria
acho que vou procurar um baloiço

Jaqueline Sales disse...

Deliciosa e envolvente leitura, amigo.

BeijUivoooooooooooosssssssss da Loba

Eyes wide open disse...

Como há uma idade para deixar de andar de baloiço?!?!?!?!? Não pode... :)


[se fosse eu a transportar aquele saco de pão quentinho, te garanto que quando chegasse a casa o quinze já era... ;) ]

segurademim disse...

... também estou indecisa

fico aqui perscrutando os aromas ou vou ali receber o calor dos raios de sol

[a sopa é de alho francês e o pão já arrefeceu à muito]

*

Heduardo Kiesse disse...

"Haverá uma idade para andar de baloiço?"

- se houvesse idade para ser feliz...


abraços

Meia Lua disse...

Enquanto se caminha, o mundo não para, e o olhar passeia por mil lugares, mas os detalhes, esses... não são vistos por qualquer um.
:)

Alberto Oliveira disse...

... lembrei-me de passar por aqui para levar as restantes nove carcaças que faltavam no meu comentário anterior. Estão duras?! não interessa. Torradas e barradas com manteiga, marcham que é uma beleza ao pequeno-almoço de amanhã...

Jaqueline Sales disse...

Peguei banquinho e café para sentar e ler com atenção todas as suas aventuras, meu querido. E, olha, são grandes e inesquecíveis aventuras, hein!

BeijUivooooooooooooossssssss da Loba