quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Avenidas Velhas (11)

– Estes livros… são de que editora?

De cócoras, o professor hesitava em pegar num dos livros dispostos em cima do plástico, no chão.

– Também não é mencionado o autor… quem é ele? Ou ela…

Sentado no degrau, o homem perscrutava atentamente o semblante do seu interlocutor. Via nele, particularmente no olhar, um interesse e uma curiosidade pelos livros, como nunca antes vira em alguém.

Não se preocupou em responder às perguntas porque não eram realmente perguntas; percebeu as palavras do outro apenas como pensamentos em voz alta, e não quis incomodar. Haveria de responder, mas não era aquele o momento.

Após alguma indecisão, em que a mão se aproximou, para logo se afastar, de vários exemplares, o professor acabou por pegar num deles. Leu alto o título: “Xavier, Visto a Partir do Espelho”. Virou a página.

Junto deles, o ajuntamento revoltado tinha-se já dissolvido e a rua voltara ao ameno ritmo do final das tardes de sábado. A água vinda da janela era já uma memória distante e os comentários indignados, um murmúrio que a brisa não transportava. Notava-se, no entanto, uma diferença na rua: as pessoas iam, já não vinham.

– Não informa a autoria da capa… bom, está bem… mas devia mencionar onde se fez a impressão e encadernação, o ISBN, o depósito legal, a tiragem. Nada disso consta – e, visivelmente intrigado, acrescentou: – Nada normal, uma situação destas…

Estava ausente, num mundo muito seu – só seu –, onde tudo à volta cessara de existir, ficando em suspenso, a aguardar a sua atenção. Era apenas ele e o livro, numa espécie de confronto ritualizado, em que um escondia a verdade e o outro a procurava desvendar. Maravilhava-o, aquele processo de descoberta e não conseguia evitar ficar excitado quando não obtia imediatamente respostas. Há algum tempo que tal não lhe acontecia.

O texto começava logo na primeira página.

Não conheço ninguém que tenha consciência do seu período intra-uterino. Eu tenho. Recordo com inusitado detalhe os últimos meses de gestação. Sim, dos primeiros meses não tenho memória. Não estaria ainda formado o local onde guardamos os pensamentos e os sonhos, dentro de nós. Talvez o facto de conhecer a minha mãe extremamente bem, por dentro e por fora, explique muito daquilo que sou. Daquilo em que me tornei. Se ela me sentiu, como apenas uma mãe sente um filho – tantas vezes me o disse –, também eu a senti, como só um filho sente uma mãe. E sinto ainda, apesar de tudo – e de nunca lhe haver dito tal.

Fechou o livro, observou a lombada e torceu o nariz.

– Temo que não deve ter tido uma vida lá muito interessante, o senhor Xavier – e, nesse momento, tomou consciência da presença do outro. Sentiu-se atrapalhado e as faces ruborizaram quando se interrogou sobre que outras coisas teria dito em voz alta. Apesar de tudo, conhecia-se suficiente bem para saber que, quando se entusiasmava verdadeiramente com algo, tinha o embaraçante hábito de falar sozinho.

Achou-se na obrigação de dar uma explicação.

– É que a autobiografia não conseguiu ocupar assim muito papel… Presumo que não deva ter tido uma vida muito emocionante.

– Consegue-se medir a emoção de uma vida pelo número de páginas em que se fala dela?

O professor sentiu novamente as faces aquecerem. Tossicou, atrapalhado. Ia falar, mas o homem no degrau falou primeiro.

– Peço-lhe desculpa, nem o convidei a sentar. Não quer? – apontou para a cadeira articulada, ao lado dos livros. – Chamo-lhe “A Cadeira do Leitor”.

– Eu… na verdade, não me posso demorar. Habitualmente, a esta hora – olhou para o relógio – já devia estar… em casa.

– Esteja à vontade.

Não disfarçando um esgar de dor, o professor ergueu-se com dificuldade. Tinha estado demasiado tempo agachado e agora doíam-lhe as costas e as articulações. As pernas latejavam-lhe.

– Precipitei-me no juízo de valor. Não cedi a moralismos fáceis… – o seu interlocutor fez-lhe sinal com a mão para esquecer o assunto. – Estes livros… – com a autobiografia na mão, apontou para os livros expostos. O resto da pergunta deixou-a subentendida na sua expressão.

– Edição de autor.

– Não é mencionado o nome do autor.

– Funciona ao contrário. A lógica é outra. Habitualmente, lêem-se as obras sem nunca se conhecer pessoalmente o autor, sabemos apenas o seu nome; mas aqui não: conhece-se o autor ao mesmo tempo que a obra.

– É o senhor o autor.

– Sou eu quem escreve estes livros, sim.

– Onde é que os imprime, como é que faz? – examinou o exemplar que mantinha em sua posse. Tinha uma encadernação impecável.

– São manufacturados por mim, desde a ideia, até à encadernação, passando pela escrita. É um processo solitário, mas nada angustiante, antes pelo contrário, se quer saber – esboçou um sorriso. – Há uma moça que me passa os papéis para o computador. Agora que penso nisso, não é apenas uma relação a dois, entre mim e os livros… tem piada, nunca tinha pensado nisso.

– Directamente do produtor ao consumidor, bem vejo. Mas reparo que o livro também não tem preço indicado.

– Não são para vender.

– Não? – na testa, tinham-se formado uma série de vincos ondulantes, paralelos entre si.

– São para ler.

– Como pode isso ser? Qualquer um destes livros leva o seu tempo a terminar. Certamente, não espera que uma pessoa se sente nessa cadeira a lê-los de uma penada.

– Certamente que não. Até porque apenas me demoro uma hora, duas, no máximo. Essa cadeira, acima de tudo, serve para descansar. Quem passa, pode sentar-se aí e aliviar o peso das pernas e, se quiser, tem o que ler. Um paragrafo, que seja. Se gostar, se tiver interesse no que leu, pode levar.

– Não entendo.

– Os livros são para dar. O senhor, pode escolher um e levá-lo.

– Confia assim nas pessoas? Sabe que vai ficar sem muitos, não sabe.

– Eu não disse que eram para emprestar. Os livros são para dar!

O professor sentou-se na cadeira – que se revelou mais confortável do que aquilo que aparentava – e folheou lentamente a vida de Xavier.

– Não entenda mal a minha pergunta, mas como é que se tem uma ideia destas? O que o levou a… – deixou a pergunta no ar.

– Sinceramente, não sei. Precisava sair de casa, acho.

As folhas passaram uma a uma pelos dedos do professor. Sentiu-se subitamente inquieto. O que disse a seguir deveria ter sido apenas um pensamento.

– Não daria muitas páginas, a minha biografia…

Sentado no degrau, o homem revolveu os bolsos, apenas encontrando um rebuçado peitoral. Suspirou.

– Santo Onofre...

– Eremita. Viveu no deserto – não conteve uma gargalhada, perante a ironia que encontrou no desabafo do outro. Há quanto tempo não ria? – Desculpe-me, mas…

– Está a desculpar-se por rir? Faz tanta falta – guardou o rebuçado, inconformado. – Por acaso não tem um cigarro que me dispense, não?


FIM

12 comentários:

Devaneante disse...

Rui, adorei!! Que ideia fantástica essa de escrever e de oferecer os livros a quem passa!... Sem dúvida um fim inesperado e muito interessante.

Agora vou precisar, com mais tempo e calma, de voltar a ler as partes todas de uma só vez para me certificar que não me escaparam muitos detalhes (sim, porque será inevitável escaparem alguns).

lélé disse...

Percorremos 11 "Avenidas" até encontrar o riso!... Às vezes, é mesmo difícil chegar lá!

Alberto Oliveira disse...

... se eu fosse de fiar, poderia dizer que «Acertei! o homem oferece mesmo os livros que escreve!», antes de ler o final imprevisto deste belo relato. E na verdade apenas o li depois de comentar o anterior.

Só me resta acreditar no que aqui foi descrito e amanhã sem falta, dar um salto à Guerra Junqueiro e saber se o autor-escritor corresponde fisicamente à realidade.

Se sim, pago a mim mesmo um café na Mexicana enquanto leio o livro à borliú. Se ao contrário isto não passa de uma fantasia pegada, continuo a andar, contando os passos e tomando notas, tomando notas e contando os passos.

O Professor.

Maria Liberdade disse...

Gosto tanto das histórias simples que escreves, sobre pessoas simples, cuja a simplicidade as torna singular. As tuas histórias inspiram-me uma imensa ternura.

Arábica disse...

Rui,

um final excelente, dos melhores que já criaste, uma história que nos fez percorrer muitas ruas e muitos rostos, para depois, terminar, olhos nos olhos...


És de uma imaginação incrivel, Rui!


Mas sabes que mais? Este teu autor, lembra-me tantos outros autores anónimos que se cruzam connosco diáriamente nesta cidade virtual...

Que haja sempre tempo para nos sentarmos na cadeira e um cigarro para ser partilhado.


Um beijo

Jaqueline Sales disse...

Poderia ser muito interessante trocar livros, olhar os olhos das pessoas e perceber o brilho, o sorriso, a luz que emana de cada palavra e gesto. Dupla satisfação: leitura e encontros. Não tem coisa melhor.

Beijuivooooooooooossssssssss da Loba

ze disse...

Pois, fiquei com pena de não haver um 12, ó Rui!

vieira calado disse...

Um texto muito bem composto!

Desejo-lhe Carnaval alegre.

Arábica disse...

Passei, beijos para todos.

~pi disse...

beijo,

ado-cicado e

ab-surda-mente

´real`,



~

morfose disse...

Lindo, lindo.
Tens um jeitão, amigo.
Venham mas é cá comer umas cavacas, vá.

Gina G disse...

Olá.
Levei alguns dias a ler esta história, não costumo ler nada de rompante.
Confesso que ao princípio fiquei retida na história por conhecer tão bem os lugares que referes. Mas depois já não era nada disso e fiquei-me pela história em si. Adorei. Mesmo.

P.S.
Esta tarde, daqui a nada, vou contar os passos que dou desde o poste da Mexicana até à entrada do Metro da Alameda... E também quero ver se encontro o professor oferecendo os seus livros. :)

bjs