quarta-feira, julho 23, 2008

O Corredor (2)

Por serem absolutamente evidentes, certas coisas não carecem de menção. Ainda assim, frequentemente e sem pensar nisso, não resistimos a constatar o óbvio. Quase caindo ao sair do Salão Braga, espantado com o que via, foi o freguês o primeiro a ceder à tentação. “Vai nu”, no que foi logo secundado por Ulisses, “O gajo está em pelota”. Como que para autenticar definitivamente a veracidade de tão insólito acontecimento, Delmino sentenciou que, “epá, o tipo não traz roupa”, acrescentando logo de seguida, “nem sequer sapatos”.
Por esta altura, vindos das portas e janelas, a rua João das Regras estava cheia de sons. Ouviram-se interjeições, palavras soltas – a maioria, de incentivo ao atleta naturista –, assobios e até palmas. Quem tivesse atentado nos espectadores e não no espectáculo, teria visto expressões de estupefacção e, sobretudo, de gozo. Teria visto uma outra rua, outras gentes, diferentes das de todos os outros dias.
Nos dias seguintes, nos inúmeros comentários que se fizeram, não houve acordo sobre tão estranha personagem. Era como se cada pessoa tivesse visto uma cena diferente e lhe atribuísse um significado próprio. Para uns era um homem alto, para outros, baixo. Tanto tinha cabelo claro, como escuro e era entre o comprido e o curto. Houve quem garantisse já o ter visto por ali e quem afiançasse, por todos os santinhos do altar, que aquela cara (“e pernas e braços e cu e…”) jamais por ali tinham passado. Sobre as motivações de tão estranho comportamento, também não se obteve consenso. “Estava a fugir da bófia”. “Tinha aspecto de camone e devia estar carregadinho de droga”. “Vinha era a fugir de um marido que tinha estado a encornar”, brincou o Hermenegildo, da loja de ferragens. Numa coisa, no entanto, todos estavam de acordo: era do sexo masculino e estava em boa forma física, já que percorreu a rua em “muito menos de um fósforo”, como afirmou a Dona Carmelinda, da Lavandaria Texas, ficando logo de seguida muito afogueada e corada, quando Hermenegildo, dando-lhe um toque com o cotovelo, disse bem alto que ela tinha sido quem melhor reparou no atleta. “Correu depressa, com pena sua, não foi”?

Depois de o corredor ter desaparecido na Praça da Figueira, Hermenegildo foi a correr na direcção contrária, na certeza que alguém viria no encalce do homem. Mas nada aconteceu. Era como se ele se tivesse materializado na esquina e ali começado a correr. “De que fugiria ele”? perguntou o especialista em todo o tipo de ferragens, encolhendo os ombros. “É maluco, ora”, respondeu alguém.
À porta do Salão Braga, nem uma palavra tinha sido proferida. Enquanto Delmino e Ulisses se foram juntar aos vizinhos, o freguês, agora a meio da rua, curvado sobre si, tinha o olhar perdido na Praça da Figueira. Quando regressaram à barbearia, o velhote ofereceu uma pergunta como resposta a Hermenegildo. “Porque é que dizem que ele estava a fugir”?
Os dois barbeiros trocaram um olhar vago. Ulisses colocou a mão no ombro frágil do freguês e só sentiu ossos, por baixo da roupa. “Vamos tirar essa espuma senhor Políbio, já está seca e sem préstimo. Alguma vez tinha visto coisa igual”? Já sentado, o homem nada disse. Inexpressivo, encarava o espelho. Era como se ali não estivesse. À porta, Delmino ainda brincou com a Dona Carmelinda, dizendo-lhe que se ela fosse mais nova, com mais força nas pernas, tinha ido a correr atrás do outro. “Mas para lhe dar umas roupas, dessas que ficam aí esquecidas na lavandaria, não me perceba mal”. Voltou para a sua cadeira e reclinou-se, ainda com um breve sorriso nos lábios. Por esta altura, o silêncio tinha reconquistado o seu domínio e nada parecia ter acontecido na cinzenta rua João das Regras. As cabeças, ainda há pouco erguidas e cheias de vida, voltaram a sucumbir à sua pesada existência e a apenas encontrar amparo nas pedras da calçada.

(continua)

boomp3.com

13 comentários:

Cristina Costa disse...

Hummmm.... (a pensar)
Aguardemos a continuação pois.

José Pires F. disse...

Brilhantes estes dois primeiros posts.
Fica agora, a curiosidade de ver como continuarás a história, sabendo já que, não defraudarás os leitores.

Abraço.

segurademim disse...

na baixa pombalina tudo pode acontecer e os carecas existem

:)

Vanda disse...

"...e a apenas encontrar amparo nas pedras da calçada!"


Houvesse na barbearia um portatil com ecran gigante onde passassem estes "amparos" que escreves e já ninguém morria de tédio ou adormecia decerto!

:)
:)

ROSASIVENTOS disse...

TAC

[ nasci de ti pra te ser-me

eu que não sendo a mulher do circo era um puro acaso somado

de aortas e válvulas

eu

extasiada estudiosa alheia de estores de pálpebras [

Eyes wide open disse...

Pronto... lá vou eu ficar as férias todas, na expectativa de saber porque raio se passeava este senhor como veio ao mundo... teria ido ao Min. das Finanças entregar o IRS?


;)


*

Olinda disse...

Há silêncios assim... :-)

~pi disse...

a rua como se nada.


a rua pasmada

especializada

em todo o tipo de

silêncios.

a rua

nua

atada



~

Carla disse...

És um perfeito contador de histórias..prendes o leitor até ao ponto que se quer final...mas apenas o ponto porque de histórias tuas, contadas com esta mestria...esperemos que o final nunca chegue
bom fim de semana
beijos

Claudia Sousa Dias disse...

Adorei os comentários, as hipóteses as exclamações...não há como um bom atentado ao pudor para afastar o tédio!!!

um beijinho


CSD

Carla disse...

e a continuação?
venha rápido!
beijos

Maria Laura disse...

E, por um instante, a rua ganhou vida. Um excelente relato. Este conto está mesmo a intrigar-me...

Vanda disse...

E enquanto as cbeças pendem de tédio não ha uma musica que as espevite? :)


beijos