quarta-feira, julho 16, 2008

O Corredor (1)

O denso e escuro tecto de nuvens, que há vários dias havia estacionado sobre Lisboa, dava à rua João das Regras, naquele final de tarde, um aspecto ainda mais lúgubre que o habitual. Não tinha chovido mas, ali, naqueles cinquenta metros de Baixa, parecia que as nuvens haviam largado o seu peso e deixado a pairar um sufoco que, qual parasita, caía sobre quem passava, materializando-se na respiração subitamente ofegante, no cansaço inesperado, nos ombros pesados, que faziam as cabeças pender para a frente.
No Salão Braga, reclinado na sua cadeira, Delmino deixava-se embalar pelo familiar som que, na cadeira ao lado, o seu colega Ulisses produzia ao escanhoar o único cliente do dia. Numa dança vagarosa e sem ritmo, a lâmina contornava as pregas de carne velha e seca, cobertas de espuma de barbear, do homem. Quem perguntasse aos dois barbeiros quando tinha sido a última vez que haviam passado a lâmina na face de um freguês, de alto a baixo, num único movimento, não saberiam responder. Com o passar dos anos, barbear tinha-se tornado um processo cada vez mais demorado, que voltava a exigir atenção, cuidado e paciência – tudo aquilo que a prática, depois de muitos anos de gestos repetidos à exaustão, permite prescindir e que a idade acaba por roubar; um paradoxo que muito afligia Delmino. “Agora que eu devia cortar cabelos e desmanchar barbas de olhos fechados, é que tenho de me concentrar em cada gesto, em cada tesourada!? Estou pior do que quando comecei nesta vida”, queixava-se ele à mulher, Florinda, no final dos dias piores, quando fechava a porta e ela varria os despojos ralos e brancos dos cada vez mais ralos e pálidos clientes. Com os olhos cravados nos mosaicos gastos do chão e apoiada no cabo da vassoura, ela respondia-lhe que não havia pressa, que aqueles clientes não eram esperados por quem quer que fosse e que só não tinham sido ainda completamente esquecidos, porque, permitissem as forças e a parca reforma ao fim do mês, vinham aparar os mal-semeados pêlos que, teimosa e inexplicavelmente, desafiavam o cansaço dos corpos e despontavam, ainda que também tristes e abatidos. São homens – continuava ela – que apenas pareciam existir ali, no Salão, quando iam aparar o cabelo ou apenas estar, sentados nas cadeiras velhas como eles, a olhar através da montra, para o vazio em que quem manda havia deixado a Baixa escorregar. O mesmo vazio que sentiam ser a sua existência. Delmino olhava para a mulher com incredulidade, escutá-la era sempre descobrir algo novo, mesmo depois de tantos anos juntos.

Foi com grande espanto que os três homens ouviram gritar. Entreolhando-se, perguntaram com o olhar a mesma pergunta: teriam escutado bem? – percebendo na pergunta que viam, a resposta. E então, alguém encheu a rua com outro grito. Não de dor, que não havia sofrimento naquele alarme, antes, percebia-se surpresa e espanto, perante algo ou alguém. Era um grito de surpresa.
O velhote, de bata e com metade da cara ainda cheia de espuma, movido pela energia que a curiosidade dá, ergueu-se como pôde na cadeira e foi à porta espreitar. Atrás dele, Delmino e Ulisses assomaram-se também, ficando os três a rodar cabeças
durante vários segundos, cobrindo todos os pontos cardeais. No exacto momento em que, desalentados, se convenciam que não tinha sido nada de importante, uma exclamação estridente cortou o pesado silêncio que se havia voltado a fazer sentir. “Ah! Valente.”
Alertadas pelo inusitado da situação, várias cabeças haviam despontado nas portas e janelas e estavam agora todas apontadas para o lado da rua do Arco do Marquês do Alegrete onde, fazendo uma tangente à esquina, alguém entrou a toda a velocidade, correndo o mais depressa que lhe era possível. Todo nu.

(continua)


boomp3.com

17 comentários:

Maria Liberdade disse...

No Country for Old Men...

Rui disse...

(No) Country for Old Spice...

Olinda disse...

Ai que quero ver o desfecho da fruta. :-)

Cristina Costa disse...

Bom.
Muito bom.

Eyes wide open disse...

:) esta tua facilidade/felicidade em escolher nomes peculiares é um must.


(next...)


(e Lisboa é uma cidade quase perfeita)


*

Anónimo disse...

e onde estava a roupa desse valente? imagino que daqui a nada aparece uma personagem feminina. nem sei porquê. :D

lélé disse...

Há os que andam devagar, porque não têm pressa de chegar a lugar algum. Há os que andam a correr, porque têm pressa de se afastar de algum lugar. Há quem não tenha alguém à sua espera e há quem tenha alguém no seu encalço.

E não se pode dizer que é injusto, porque não é!

Claudia Sousa Dias disse...

E se fosse uma equipe de futebol feminino a atravessar a passadeira junto ao elevador de Santa Justa para o Rossio, em pêlo, a protestar contra o aumento do preço dos combustíveis e dos bens alimentares?

;-)


Beijo


CSD

Maria Laura disse...

Ai, isto promete... :)
Deixa que te diga, agora muito a sério, que a tua capacidade de "pintar" ambientes com palavras é notável. Estava a ler-te e a ver essas barbearias quase desertas da Baixa. E a imaginar quem ainda habitará a Baixa...

Teresa Durães disse...

hehehe gostei deste final da primeira parte. aguardo o resto

Carla disse...

ja tinha saudades destes teus textos
bom fim de semana
beijos

Vanda disse...

Ah valente Rui que a despeito do sol, das partys no guincho (rsss) e de tudo o resto, nos dás sempre a visão realistica das coisas, (quase) nos fazendo sentir a nostalgia de uma velha cidade, tão bem descrita, para depois nos brindares, numa curva qualquer da mesma cidade, com o insolito, com o sorrso maroto que já se advinha nos nossos rosos. Ou talvez não :)


Até ao proximo capitulo :)


Beijinhos

Vanda disse...

errata: visão realista. É não é? ( a idade não perdoa)

ROSASIVENTOS disse...

ariana não vai à praia

[ nem fica na cidade... :)

Leonor disse...

nada como um acontecimento peculiar para fazer parar a cidade/bairro/rua e dar-lhe de seguida material suficiente de animação e conversa para um dia.

~pi disse...

cir cuit ar

a nu

a

ci da de



~

dona tela disse...

Assim é que eu gosto. Bons programas.

As minhas cordiais saudações.