terça-feira, fevereiro 26, 2008

Sentidos Únicos

Tem um trabalho ingrato: apagador-chefe, na Imensa Autoridade dos Caminhos da Vida. Compete-lhe eliminar os vestígios das estradas caminhadas pelas pessoas que não querem voltar atrás.

Só apaga a pedido e quando aceitou tal emprego, julgou que iria ter uma vida regalada de pouco ter que fazer. Quem é que não quer – nem que seja por um instante, para apenas matar saudades ou recordar algo – guardar o caminho que o trouxe ao sítio em que se encontra?

Por má estrada que fosse, por irregular que fosse o piso, sempre foi onde se deixou algo nosso, pedaços daquilo que somos. Podemos até nem querer voltar para trás, mas havemos sempre de querer saber o caminho. Nunca se sabe para onde vamos a seguir e, às vezes, pode ser útil amanhã o que não nos faz falta hoje.

Assim tinha avaliado a coisa. Mas a verdade que encontrou muito o surpreendeu: não havia mãos a medir, a toda a hora recebe pedidos para obliterar trajectos. Sem nunca conseguir evitar o espanto com tanta vontade de esquecer, lá vai ele, empurrando o carrinho de mão, a pá e a vassoura.

Tem um trabalho ingrato porque lhe custa recolher os despojos de vidas vividas. Cada objecto caído, cada memória abandonada, como se fossem partes de corpos, em nada diferentes de um braço, uma perna, um coração. Também eles necessários para viver.

Decididos a serem esquecidos, recolhe corpos mutilados, vidas mutiladas. E sente a sua definhar.

Talvez seja por isso que, ao contrário das ordens que tem, não incinera nada no fim de cada dia. Guarda tudo o que encontra no armazém dos fundos: tem esperança que um dia lhe apareça alguém, arrependido, à procura do caminho apagado, e ele possa depois ajudar.

13 comentários:

Devaneante disse...

Um visionário este nosso amigo apagador-chefe...

Excelente, como sempre. Um abraço.

ROSASIVENTOS disse...

a tarde inclinou-se toda a tarde para o mar.

Vanda disse...

Rui, soberbo!


Se precisares de ajuda...conta comigo como voluntaria :)

Claudia Sousa Dias disse...

É o trabalho do escritor...


CSD

un dress disse...

ai...

acendedor de candeeiros

apagador de

memórias...


sem mãos a medir.

príncipe de trevas emprestadas.

armazéns de gestos.

eu tu ele e os outros.




beijO

~pi disse...

de facto, nunca consegui usar bem a borracha apagadeira...

nunca.

os vestígios da apagação eram sempre mais dramáticos que as

formas apagadas.

aí sim, desisti
e agora

bem, agora, deixo ficar assim...
e queres saber que me parece...mais saudável!!?




~

Titá disse...

Simplesmente genial...uma metáfora da vida.

Um beijo

Alberto Oliveira disse...

... não é exactamente uma perna ou uma coxa que procuro, eventualmente perdidas nos caminhos de vida que tenho percorrido. No armazém do apagador-chefe -que pela descrição dos "artigos" deve estar cheio de lamentos do género "ai se eu soubesse o que sei hoje!" ou "fui por maus-caminhos, mas o que eu dava para voltar atrás!", o que eu gostaria de encontrar e não de apagar, era a fé. Sim, leram bem: a fé. A fé na esperança, que é verde e conduz ao caminho de Alvalade. Porque a vou perdendo encontro após encontro... perdido ou mal trilhado.

lélé disse...

O apagador-chefe é um lírico!... A máquina humana não traz marcha à ré!...

Sandra disse...

Adorei! Como as palavras podem trazer imagens tão claras!

beijinho

tb disse...

grande armazém dos fundos... :)
ainda bem que as repetições não se avivam.
Gosto da forma como passas os pensamentos para o teclado :)
beijinho

segurademim disse...

... e porque haviam de querer voltar para trás, então não é para a frente que é o caminho???

diz-lhe que a Ordem dos Psicólogos está quase a sair e que vai ter em breve consultas de borla

Azul disse...

fabuloso o texto e a ideia que passa. fabuloso, repito. sendo psicóloga clínica de profissão, este texto arrebata-me não por isso, mas porque antes de tudo, sou gente que, ao contrário da maioria (será?), sempre lutou dentro de si para não apagar um traço sequer do seu percurso. Adorei mesmo! Um abraço para si Rui. Até breve. Azul.