segunda-feira, outubro 01, 2007

Há Magia no Chiado (4)

Foi vai já para duas mãos cheias de anos, mas lembro-me bem. Dizia assim: Você Numa Palavra. Não que ligue a esse tipo de análise instantânea como as mousses, mas a curiosidade apanhou-me distraído e acabei por gastar quinze minutos da minha existência a preencher o questionário da revista – o de sempre: uma situação é colocada ao leitor, que depois deverá seleccionar a opção de resposta que mais tenha a ver consigo; somam-se os pontos e consulta-se a tabela junta. A originalidade deste passatempo (que outra coisa não podia deixar de ser) era o resultado ser apenas apresentado numa palavra, mais exactamente, um adjectivo.

Não lhe dando importância, a verdade é que nunca mais esqueci o resultado, embora seja coisa em que faço por não pensar, talvez por receio de concluir que é verdade: resignado. Segundo a tabela, era isso que eu era.

Tudo isto me veio à ideia quando me vi assim reflectido, naquele mágico fim de tarde no Chiado. O toque nas costas – mais um empurrão que outra coisa – foi tudo menos amigável e deu o tom ao dialogo que se seguiu. Vá, vamos lá a mexer, foi a primeira coisa que me disse. Voltei-me e, para meu espanto, tinha perante mim mais uma figura da nossa praça. Vá lá, para casa que o jantar já deve estar na mesa, insistiu. Demorei algum tempo a perceber o que tudo aquilo significava: primeiro, porque não o reconheci imediatamente, depois a surpresa de ter o Luis de Matos a dirigir-me a palavra com maus modos, e por fim, ver o meu reflexo nos seus óculos espelhados.

Bem mais alto do que eu, mirava-me como o Golias deve ter mirado o David. Atrapalhado com tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo, só me via a mim, minúsculo nas lentes dele. Nada de importunar o artista, siga mas é o seu caminho. Eu, que nunca antes tinha sequer estado perto de gente conhecida, naquela tarde, em poucos minutos, era já a segunda vez que me cruzava com alguém conhecido da televisão e das revistas – e ambos pareciam decididos a implicar comigo, que me sentia cansado e só queria chegar a casa.

Luis de Matos, nem mais. O nosso Siegfried. O nosso Roy. O Copperfield lusitano. O homem que atravessa paredes de canecas, faz desaparecer elefantes e adivinha o Totoloto, estava a empurrar-me. Sendo grande mágico, é também a medida da nossa pequenez enquanto país: em 1995 acertou na chave do Totoloto com uma semana de antecedência, mas vejam lá se ele acerta na do Euromilhões. Uns poucos milhares de Escudos? Não custa nada. Uns milhões de Euros? ‘Tá quieto. É a cruz que teimamos em carregar: pobrezinhos, mas honrados. Parece-me mal e tenho para mim que ele devia tentar, quanto mais não fosse, para mostrar mais uma vez a essa Europa aquilo de que o tuga é feito – nem que fosse numa semana em que não houvesse jackpot, para ser mais fácil, que ninguém lhe levava a mal por isso.

Oh amigo, siga o seu caminho, e mais um empurrão. Vejo-me diminuído no reflexo, mas reparo que estão lá dois de mim. Foi o suficiente para sair do estado de torpor em que me encontrava. Resignado, eu? O sangue ferve-me num repente e já o estou a empurrar também. Que é, pá, há azar? Aos impropérios e interjeições que se seguíram, vou poupá-los, mas ainda vos digo que ele depressa percebeu que tinha mais a perder do que a ganhar em continuar a troca de insultos com um zé-ninguém em plena via pública, e acabou por se acalmar. A intervenção de Larry Porter também ajudou, ao se meter entre nós e ao dizer ao amigo mágico que eu não o estava a importunar. Eu só quero ir para casa, pá; se falei aqui com o seu amigo é porque me pareceu conhecê-lo – e estava agora ainda mais convencido disso, que na troca de encontrões, acabei por ver que ele tinha uma cicatriz na testa, tal como eu suspeitara.

Luís de Matos fez-me ver que, nunca tendo eu saído do país – com a honrosa excepção de ter ido uma vez a Ayamonte, não havia ainda ponte no Guadiana – pura e simplesmente não podia conhecer o Larry, que nunca antes estivera em Portugal. Pela televisão, contrapus. Impossível, rebateu o mágico, ele nunca apareceu na nossa televisão. Eu calei-me que, por não os ter, não me lembrei do cabo nem da parabólica. A tudo isto o visado respondia com o sorriso amarelo de quem está numa situação desconfortável. Com a mochila onde tinha guardado os artefactos da profissão, às costas, parecia um miúdo no primeiro dia de aulas, numa turma em que todos os colegas se conheciam. Ia fazendo festas à coruja que, de olhos fechados parecia dormitar no seu braço, e dizia: no problem, lads, that’s quite alright, e virando-se para mim, acrecentou: really, i never been here before. Estive quase para lhe dizer quem eu achava que ele era, mas o medo do ridículo não me deixou falar e acabámos por ficar uns minutos na conversa.

Já a sorrir, o Luís explicou-me o que era o festival Lisboa Mágica e os seus planos para o futuro. Larry, por sua vez, contou como não tinha ainda tido tempo de visitar a cidade, como estava a achar as pessoas muito simpáticas e que ia aproveitar para ficar uns dias por cá, para jogar golfe, a sua nova paixão, depois de ter deixado de praticar o seu desporto favorito. Football, disse eu. Oh no, Quid… Nesse momento, a coruja abriu os olhos e bateu as asas, soltando um grito que fez parar o Chiado. Curling, acabou Larry por dizer, i just love to sweep the floor, e estampou um sorriso ainda mais amarelo que o anterior. Eu ia falar de vassouras, mas ele levantou-se rapidamente e disse que tinha de ir, que a mulher e os dois filhos estavam para chegar à estação de comboio. Estendeu a mão e eu agarrei-a, sacudi-a, e não a larguei. Disse-lhe que teria todo o gosto em o acompanhar a Santa Apolónia e, de caminho, parávamos para comer qualquer coisa na “Taberna do Menino Jesus”. Pork sanduíche, very nice!, e pisquei-lhe o olho. Larry não conseguiu evitar um esgar e, educadamente, rejeitou a oferta da sandes e da boleia, até porque, disse ele, a estação era já ali perto, no Rossio. Impossível, expliquei eu, que essa estação estava fechada há muitos anos para obras. No trains. Ele soltou a gargalhada mais bem disposta que ouvi nos últimos anos. Don’t worry, it’s a special train.

* * *

Ao passar pelo Luís de bronze, encolhi os ombros na sua direcção: ou estavam todos doidos ou estava eu. Ele manteve-se impávido, sereno e cagado de pombo.

Demorei-me uns segundos a ver as cabines do elevador da Bica, já meio encobertas pela escuridão, cruzarem-se a meio da calçada, e comprei um pacote de manteiga no supermercado vizinho. Encontrei lá a Dona Alzira, a minha vizinha de baixo, e ajudei-a a trazer o saco das compras. Falámos da carestia de vida, de como os políticos são uns bananas, que só querem dar cabo da vida das pessoas e de como as paredes da nossa rua estão todas conspurcadas com desenhos estúpidos, feitos por gente estúpida. Depois mudei de roupa, fiz um chá de camomila e uma torrada, que comi devagar, à janela das minhas águas-furtadas, a ver as luzes acenderem-se pouco a pouco, do outro lado do rio. Ao colo, o livro de aventuras que estava a ler e que olhei com desconfiança, não fossem essas mesmas aventuras estarem a dar-me a volta ao miolo. Ia pegar nele quando, pelo canto do olho, me pareceu ver a silhueta de uma coruja a fazer um voo rasante aos telhados que cobrem a encosta até, à frente da minha janela. Estiquei o pescoço para fora, mas já só ouvi um piar a desvanecer-se ao longe.

Ao apanhar o livro do chão, reparei que no lugar do bilhete de cinema que servia de marcador, estava um envelope lacrado. Na frente, em letras grandes e estilizadas – com aspecto antigo e distinto – uma frase: Always Believe.

(fim)

30 comentários:

mixtu disse...

o luis... boa gente, simpático e excelente como profissional...
um modelo a seguir...
ayamonte, sem ponte... yaya, espero que tenhas trazido caramelos
yaya

abrazo para a jangada, eu vou a meio da minha leitura saramaguiana

Boop disse...

Resignado... mas encantado!

;)

a_mais_fofa disse...

Acho que não havia melhor conselho para acabar em beleza!
Adorei!

Titá disse...

Vinha aqui perguntar-te o que tinhas então tu visto naquela janela....mas deliciei-me nas tuas palavras.

Podes até ser resignado, mas sabes encantar e transmitir magia.

Obrigada por este momento.... no meio da confusão e da sobriedade deste Outono repentino, deu para voar um pouco.

Um beijo e um bom dia para ti

Titá disse...

Estou certa de que serão outras coisas também interessantes...irei concerteza descobri-las, pois faço intençoes de continuar a visitar este espaço....
:-)

Vanda disse...

Magia tens tu que me continuas a dar o prazer de te ler :)

E os miudos? E os pais dos Miudos? :)

Beijinhos

Van

joaninha disse...

gostei!!!! é fantastico...

Leonor disse...

Delicioso.
Se resignado és, recebeste a mensagem certa.
Acreditar sempre, acreditar sempre que podemos ter melhor e nunca conformar com a aproximação. Isto de viver entretantos (algo em que sou especialista) torna-se dificil se não acreditarmos no melhor que pode vir e fantasia-lo e colori-lo e aproximarmo-nos dele, sempre.
Um beijo
Este blog é tesouro de histórias.

un dress disse...

belo e mágico quotidiano!
:)

/conheço muito bem a d. alzira aliás...

almays believinG.



beijO

Sara MM disse...

devias escrever um livro...

e com muitas centenas de exemplares logo na 1ª edição :o)


bjss

Sofia disse...

E como diria alguem, eu acrescento, "Nothing is impossible!"

Gostei destas alucinações Rui. Só tu mesmo!

Este fds vou pra esses lados. Se der, dou-vos um toque.

bjs

Gi disse...

Continuo a perder-me no meio da confusão de coisas simples que tu crias :)

Um beijinho Rui

Alberto Oliveira disse...

... a Dona Alzira?! mas péra aí... é aquela mulher baixinha de nariz arrebitado que "fez" quinze marchas da Bica e mais seis (uma transferência que deu que falar na altura, corriam os anos sessenta) da Madragoa? É que se é essa, está tudo explicado. O Luis de Matos, quando esteve a ensaiar o truque de fazer desaparecer a quarta ponte sobre o Tejo aconselhou-se muito com ela. Sim, da quarta ponte sobre o Tejo. Não me digam que não se lembram?... O homem conseguiu essa proeza (se bem me lembro em 85)de fazer desaparecer a tal quarta ponte (que nunca mais apareceu... ) e anos mais tarde fez aparecer a terceira ponte sobre o Tejo. O tipo é mesmo muito bom. A Dona Alzira também era muito boa... para os pobrezinhos e para os mágicos. Agora nem por isso; não quer nada com uns nem com os outros, até porque esteve metida em problemas com a polícia judiciária por causa do desaparecimento da ponte. O Matos, esperto, raspou-se para as Ilhas Fidgi onde fez desaparecer uma série de coisas. Dizia-se que era óptimo a fazer desparecer marisco e frutos tropicais. A Dona Alzira lá conseguiu provar a sua inocência, deixou as marchas de Santo António e agora quem a quer ver é ir ao Terreiro do Paço, onde se deixa enlevar pelo ritmo das marchas militares tocadas pela banda da Carris. A última vez, estava acompanhada pelo Larry que olhava derretido (género Vaqueiro da Margarida) para ela. A diferença de idades não é problema para ele. Também não é problema o pé de meia que a Dona Alzira tem no banco... A coruja?! qual coruja?!

vida de vidro disse...

Resignado? Hmmm... inspirado, isso sim. Que vento de magia passou por aqui! E dentro do envelope? :)
Nunca pode ser resignado que sempre acredita... em quê, já não sei! :))**

Eyes wide open disse...

Correndo o risco de me repetir... a tua imaginação é das mais prodigiosas das que me têm sido dadas a observar por aqui.


**

lélé disse...

... e assim de repente, voltei a ler a "história interminável"!...

Um verdadeiro festival de ritmo, humor e fantasia, este teu conto!

redonda disse...

:) Gosto muito de como escreves :)
Fazes-me rir :) E este conto está fantástico num duplo sentido, pela forma como está escrito e pela magia no Chiado :)
um beijinho e bom fim de semana :)

Margarida Atheling disse...

As palavras mágicas, na vida, são mesmo essas: always believe. :)

Bjs

Afonso Faria disse...

sabes, uma viagem sem viajar nem sempre é bem conseguida! Tenho por vezes dificuldade em "deixar-me ir".
O curioso é que conseguiste que eu fosse...ficando! (estalaram os dedos...magia). Um abraço

APC disse...

Espectacular, esta fantasia redigida com perfeito esmero!

Que bela ideia essa, do Rossio a fazer as vezes da Estação de King Cross!... Que belas ideias todas!, dos nomes, aos diálogos, ao secretismo com que cada personagem se defende, ao mistério que perdura, à passagem para o real:

"Demorei-me uns segundos a ver as cabines do elevador da Bica, já meio encobertas pela escuridão, cruzarem-se a meio da calçada, e comprei um pacote de manteiga no supermercado vizinho. Encontrei lá a Dona Alzira, a minha vizinha de baixo, e ajudei-a a trazer o saco das compras. Falámos da carestia de vida, de como os políticos são uns bananas, que só querem dar cabo da vida das pessoas e de como as paredes da nossa rua estão todas conspurcadas com desenhos estúpidos, feitos por gente estúpida. Depois mudei de roupa, fiz um chá de camomila e uma torrada, que comi devagar, à janela das minhas águas-furtadas, a ver as luzes acenderem-se pouco a pouco, do outro lado do rio."

Desculpa-me destacar um pedaço tão longo, mas amei esta passagem! :-)

E agora adeus. Já tou atrasada para os meus treinos semanais de Quidditch. Tu eras gajo para gostar! ;-)

Anónimo disse...

Fazemos a nossa magia =)

Gi disse...

Tens lá um Selo ( e antes selo que parecê-lo ... :) ) "Este blog vale a pena conferir" se quiseres passar pela recepção para o levantar, agradecia :)

Beijinhos

segurademim disse...

... então o luisinho anda aos empurrões no chiado?!

fizeste muito bem em dar-lhe um safanão! que é que ele pensa? vá mas é dar largas ao mau feitio pró monaco

no próximo ano vai desfilar na avenida, será o padrinho da marcha dos trombudos em trotinetas douradas

mixtu disse...

e eu continuo a acreditar...

abrazo europeo

LUA DE LOBOS disse...

mas como eu continuo a gostar de te ler:::)))
ainda continuo à espera::::
um xi muito apertado
maria de são pedro

Cleopatra disse...

Vim aqui pela mão da Maria de São Pedro.
Como gostei!...
E vou voltar!

APC disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
APC disse...

É só para dizer que já vi que estão ali quatro maravilhosos jardins à espera de leitura, e que, no próximo intervalinho que eu tenha entre coisas chatas, será esse o prazer a que me entregarei. E é para breve. O abraço, esse é que é para hoje! :-)))

Anónimo disse...

Aldina Maria Carvalho Monteiro diz que Luis de Matos o mágico lê os pensamentos na tv por trás. Deixa de me perseguir....

Anónimo disse...

Francisco Dias espetou a pilula injectavel para me fazer mal e crescer a barriga de noite.