segunda-feira, dezembro 04, 2006

K331 - Alla Turca (quarto andamento)

- Tu nunca falaste assim comigo, de uma maneira tão aberta… dramática, mesmo. Não te reconheço.
- Nem eu me conheço, por vezes. Nestes últimos meses, desde que saíste de casa, tenho pensado muito.

(pausa)
não digo que tenha mudado muito, que não mudei, mas tem dado para perceber algumas coisas… tenho-me percebido, o que é bom, acho eu.
- Tu sempre foste… como dizer isto?... quando nos conhecemos não simpatizei nada contigo; havia algo no teu olhar, na tua expressão, que me fazia ficar em sentido. Achava-te… estranho.
- Não tinha ideia, nunca me tinhas dito isso.
- Não? Ia jurar que sim. De qualquer maneira, foi algo que se foi esbatendo à medida que me fui deixando conquistar pelo teu sentido de humor, pela tua maneira de me fazeres sentir especial.

(sorri num misto de ironia e tristeza)
a mesma que depois me fez sentir tão mal.
- Portei-me assim tão mal contigo?
- Portaste João, e o simples facto de teres de me fazer essa pergunta, só me dá razão.
- Mais um vez, desculpa…
- Agora…

(suspira)
ao longo do tempo, tornaste-te uma pessoa diferente, pelo menos para comigo, uma pessoa fria… mesmo ao toque.
- Ao toque?
- Sim, mais frio, literalmente. Eu tocava-te e estavas frio.

(arrepia-se)
o teu olhar, às vezes… ficava parado, gelado. E eu ficava a imaginar o teu coração, assim, também gelado, parado… um bloco de gelo.
- Agora és tu que estás a ser melodramática, Ana.
- Talvez esteja, mas havia alturas em que estar contigo me causava temor… medo, ou o que quer que fosse… só sei que era algo mau, algo que me fazia mal, que me levou a… que me fez…

(parecia não falar já para o telemóvel, antes, pensava alto, como se estivesse a falar sozinha)
coisas que eu não julgava…
- Que coisas, Ana?

(pega num cigarro que faz rodopiar entre os dedos)
- Nada de especial… coisas em que pensamos, que acabamos por fazer sem que tenham a ver connosco.
(cala-se subitamente, como se tivesse percebido algo importante)
- O que me estás a querer dizer?
(senta-se, antecipando a necessidade de um maior apoio do que aquele que o encosto à cómoda lhe proporciona)
- Eu…
(senta-se inclinada para a frente; apoia a cabeça na mão)
sabes… também não sou… não fui… também errei… eu não devia estar com isto.
- Tarde demais!
- Sim, tens razão, agora é tarde.

(tossica, tentando livrar a garganta de algo que não existe)
tu magoaste-me muito, mesmo muito, fizeste descobrir em mim algo que eu própria desconhecia possuir: um ódio enorme… rancor… um ciúme…
(pausa, aguardando uma reacção)
nunca antes tinha sentido ciúmes de ti mas, quando percebi que me traias… João, fiquei tão… danada e enfurecida… Andei assim umas semanas, na esperança que aquilo me passasse, sei lá, mas a verdade é que não passou, aliás, piorava a cada dia… e foi nessa altura que comecei a pensar numa maneira de me vingar de ti.
- Ana…

(ia acrescentar algo que não consegue vocalizar)
- E um dia, vinguei-me.
- Não quero saber!

(levanta-se)
- Agora tenho que te contar.
- Para quê, de que adianta?
- Acho que o mesmo que adiantou teres-me contado o que contaste…
- Não, desculpa, tu apenas me queres magoar. É a maneira de te vingares outra vez.
- Não, não é.
- Até o posso merecer, sei disso, mas tu não és assim… não eras… para quê isso agora?

(fala depressa)
- Porque eu…
- Ficas a saber que eu tenho sofrido o suficiente, que me sinto uma merda, que tenho tido todos os remorsos do mundo.
- Escuta-me. Não te quero fazer sentir pior, apenas quero ser sincera contigo da mesma maneira que foste comigo. Sinto que te devo isso.
- Sentes que me deves magoar? Tu não me deves nada, Ana.
- Sinto que, por uma vez, devemos dizer tudo.
- Não, não quero saber!
- Foi esse o nosso problema, pelo menos, grande parte dele: não falarmos… tu não falavas e eu não perguntava, tu não perguntavas e eu calava-me.

(inspira profundamente)
os nossos temas de conversa passaram a ser o restaurante onde íamos jantar, que filme ir ver ao cinema, a festa do próximo fim de semana… enfim, vacuidades.
- Pode ser que tenhas razão…
- Eu tenho razão! Foi deixarmo-nos ir por esse caminho que nos conduziu aqui, a esta situação. Chega! Se estamos agora a conversar como não o fazíamos há muito tempo, que digamos tudo.
- Foste para a cama com outro…
- Sim, fui.

(senta-se à beira do sofá)
- Pronto, já sei.
(di-lo sem conseguir esconder alguma irritação)
- Foi a maneira que encontrei para te magoar, na altura. Achei que merecias.
- Não te julgava capaz de tal.
- Nem eu. Senti-me tão mal depois. Senti-me tão… como se fosse uma dessas tuas amigas…
- Sim…

(ia acentuar a sua concordância com a observação dela, mas calou-se)
- Aconteceu uma única vez, se é que saberes disso adianta alguma coisa.
- Não adianta.

(após breves segundos de silêncio, percebe algo que o paralisa)
mas não foi só isso, pois não?
- Não, não foi.

35 comentários:

joaninha disse...

e agora? como se reage a isso?

eu não trairia mas acho tb que nunca iria perdoar que me traissem... não gostava nada de estar numa situação dessas... deve ser um enorme mau estar :S

já estou viciada e a espera do próximo andamento ;)

beijinhos

C. J. disse...

O pior é que a vongança dela nao termina por aí, li o texto (todo) e até agora 5 *****! Agora fiquei como que suspensa, que acontecerá depois? Hmmmmmm, go on, dramaturgo, go on! Abraço

Anónimo disse...

Hhmmmmmm (suspiro profundo)!
Já não te lia a uns tempos Rui mas confesso que não esperava este desenrolar....
Consigo relacionar com a Ana de certo modo....
As vezes em alguma altura, de alguma forma, deixamo-nos cair em algo que não sabemos explicar...algo que não nos faz feliz! Entendo a vontade de vingança dela, desejar que o outro sinta o mesmo desprezo, se sinta a mesma merda que ela se sentiu....
Mas ai e que esta o erro...não desejar vingança mas sim o melhor, o universo encarrega se do resto e se tiver de haver castigo...que seja!
Enfim...mais uma vez, brilhantemente elaborado cheio de conteudo!
Beijos gds

Alberto Oliveira disse...

- ... mas não foi só isso, pois não?
(voltou a perguntar João na secreta esperança que não tivesse havido mais nada)

- Não, não foi.
(respondeu Ana, num tom de voz desafiador e olhar vingativo)

Vindo do fundo da plateia envolta em escuridão, destacou-se a figura de Alcides que subiu ao palco em direcção a Ana. Agarrou-lhe os braços e declamou a deixa:
- O que pretendes mais deste homem? que se torne um farrapo humano?! Não te permito mais conversa sobre o assunto, ouviste?!

- Mas... quem pensas que és?! Tu que nem constas no cartaz como figurante? Desanda!!
(e empurrou com violência Alcides, que apanhado em contra-pé se foi esparramar próximo de João)

- João! tu não queres ouvir o que ela diz ter para te contar. Já não te interessa, é história passada. Tens é de pensar no teu futuro, rapaz! E para lhe cortares o discurso sabes bem o que tens de fazer. Diz-lhe outra vez que lhe queres devolver o piano que o pano cai já aqui. Eu seja ceguinho!

(e não é que foi verdade? O pano caiu -desta vez naturalmente e Alcides leu perfeitamente os comments sobre este quarto-acto em andamento...)

APC disse...

Olha, Rui (isto é sério; olha lá o meu ar, lol): eu tou completamente vidrada nesta novela cénica, posso jurar-te! Acho demais o tema trivial em que a focaste com uma tal dimensão que nada mais é trivial; magníficos os diálogos, a forma natural como surgem e a expressividade com que os acompanhas. O óbvio que é para quem "lê" as realidades alheias que apenas para quem as vive é cego; e o inverso também: aquilo em que só entrando na alma das personagens poderemos saber.
Para além disso, as afinidades sentimentais e sensoriais com o multi-pluri que nos vais fazendo passar à frente dos olhos serão sempre algumas para quase todos, e a tua escrita alimenta.
Parabéns (nunca digo disso, mas hoje vai ter que ser) e um abraço de 'até já'! :-)

APC disse...

E um grande sorriso para Alcides, o grilo falante! :-*

Anónimo disse...

Incrível como existem homens que traiem mas, pronto, é só sexo e elas até são prostitutas... mas basta acontecer o contrário para lhes dar um treco...
E a atitude perante a traição feminina é completamente diferente.

Aguardo pelo proximo.

Isa disse...

ai credo... vá, anda Rui, conta o resto...

Anónimo disse...

Ai de ti que te lembres de deixar a história a meio!

Deixo aqui o meu aviso! =P

Isto é mesmo viciante, bom trabalho =)

Teresa Durães disse...

Fedegundes irritado salta também da cadeira e vai ter com Alcides

- Mulher de um raio, não vês que o homem é um estupor???? Afinal ela só teve um caso comigo durante os últimos cinco anos! E eu quero ouvir o que ela tem a dizer sobre o assunto! Quero ouvi-la a pronunciar o quanto me amou, o quanto a consolei enquanto a besta do marido saltava para cima das outras e o piano estava esquecido lá em casa! Por isso, vai colocar o panop, senta-se e vamos ao quinto andamento!

Alberto Oliveira disse...

Para apc:

Até pensei que me fosses pedir um autógrafo ao camarim...

Para teresa durães:

Tens a certeza que apanhaste a deixa certa?! Mas é um prazer contracenar contigo...

Para rui:

E para quando um casting neste espaço... teatral?!

Alcides Grilo Legível

crispipe disse...

pois....parece que trair é mais fácil do que ser traido.....acreditamos muito nos outros ou em nós mesmos????

sotavento disse...

Diz-me uma coisa, tu fazes escutas telefónicas? É que aposto que essa conversa aconteceu mesmo e não foi uma vez só!...
Quanto à arte de nos deixar pendurados, nem me pronuncio!... :)))

Anónimo disse...

Não deve ser fácil, imaginar as cenas desta forma, tendo em atenção aos gestos, às mudanças de tom de voz. Parabéns!

Rui disse...

Caro Legível e amigos contracenantes nesta mal amanhada encenação,

O casting será realizado, mas não para esta peça em cena, que é curta no que a personagens diz respeito. Um dia destes fabrico uma espécie de guião para cinema e encho aquilo de cromos. Aposto que a malta gosta mais de filmes.
Vai é ser um casting self-service: quem estiver para isso, agarra-se à personagem que mais lhe aprouver e não a larga.

Depois é conseguir as câmeras, as luzes e alguém gritar ACÇÃO!!

Luiz Carlos Reis disse...

Rui,


O show tem que continuar...Abrem-se as cortinas e...Aplausos para o teu belíssimo espetáculo!

Amplexos!

Sofia disse...

Ora bem, se é assim e podemos escolher os papeis, Ruizito, posso ser o piano???????

;)

bj

segurademim disse...

... o que terá sido mais???

já mudei de lado. primeiro estava do lado da Ana, agora estou-me a passar para o João

ai, ai, ai, bem podia estar calada, o que será que vem para aí?humm... vinganças de mulher ... vai ser lindo vai

beijo Rui (chega-lhes!)

[A] disse...

Ana?!
Manifesto-me!

Anónimo disse...

E eu a seguir o espectáculo...
Aplausos até acabar o intervalo. :)
Abraços

APC disse...

Abram allas prá Turka (Turkaaa!) com seu piano velho!... //musicól

[Ok-ok, volto mais tarde! :-X]

a_mais_fofa disse...

Bravo, bravo...

Na minha cabeça as imagens sucedem-se... Tão fácil de ler... Tão bom de ler!
Continua!

Titá disse...

Genial!
Um tema, momento dificil sempre e no entanto, foste capaz de o descrever com sentimento e despertaste uma curiosidade e uma vontade enorme de continuar a ler.

Continua, por favor.

Um beijinho
T

Anónimo disse...

Não foi só isso? Então que mais? Ai, que tu matas-me do coração! :)
Homem, eu acho que tu escutas às portas de muita gente que eu conheço. Talvez por isso e pela forma como escreves, nos prendes desta forma às tuas palavras. **

Anónimo disse...

E agora?

Farinho disse...

Então, agora ficamos assim em suspanse, estou ansiosa pelo resto, que venha rápido, para poder matar a curiosidade.

Beijocas curiosas.

ah e tal disse...

ela deve estar grávida...pronto estraguei tudo não foi rui?

bjs
p.s: muito porreiro!

ah e tal disse...

e fartei-me de rir com a versão do "legível"....

919 disse...

há gente com pouco sentido de oportuidade!... então isso é conversa que se tenha por telefone, ainda por cima depois de terminada a relação?... bem, talvez seja o passo necessário para uma outra relação mais sólida, mas foi pena a perda de tempo!... a parceria com o Legível e com a Teresa é excelente!... até consigo imaginar a Ana e o João, de mãos dadas, sentados lá no centro escuro do palco (onde ainda não sabemos o que está... talvez um sofá para estas eventualidades?...) a assistir ao despique...

Ahlka disse...

Mais um andamento e mais envolvimento, mais tensão...
Captaste bem a psique humana :)

Paulo disse...

O erro dos Portugueses ao longo da história tem sido o de subjugarem a sua vocação romântica por um racionalismo de empréstimo que vão buscar além-Pirenéus...
Mas ok, na boa..até ao andamento seguinte.
Abraço
Paulo

Lara disse...

Rui
Já pensaste passar isto tudo para papel, ou seja escrever um livro?

É o que me á cabeça ao ler os teus textos!
está excelente!

beijooo

Isa e Luis disse...

A felicidade genuina faz sempre bem.
Bom Natal!
Abraço
Luis

Anónimo disse...

A curiosidade trouxe-me aqui, e gostei do que li, mas confesso que tenho que ir ao inicio. O conto realmente prende.
Voltarei.
Abraços.
Eärwen

Anónimo disse...

Estou amando este conto, está parte em especial ficou fantástica.
Parabéns