segunda-feira, setembro 26, 2005

A Linha (parte II)

Lembro-me perfeitamente da primeira vez em que a vi. Era um dia ameno de Setembro, curiosamente, foi quase à hora exacta em que o Verão terminava.
Saía da secretaría da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, parou no último degrau e olhou em volta. Uma ligeira rajada de vento, como que anunciando a chegada do Outono, agitou-lhe os longos e ondulados cabelos castanhos.
É curioso como nos esquecemos de tanta coisa significativa nas nossas vidas, mas nos lembramos destes pequenos nadas, destas aparentes insignificâncias.
A verdade é que me lembro perfeitamente. Lembro-me até do local onde, por sorte, consegui estacionar, no parque do lado da Rua Dr. Roberto Frias, de como, ao chegar ao edifício da Administração, a vi.
Vestia um pólo azul-escuro e uns jeans algo coçados, calçava uns ténis castanho-escuro. Nunca tinha visto antes e nunca mais voltei a ver uma rapariga que ficasse tão bonita vestida de uma maneira tão casual.

Não tive coragem de admitir isto antes a ninguém, nem mesmo a mim próprio tal a enormidade do que me aconteceu, tal a dificuldade em explicar tal coisa mas, naquele momento, foi como se se tivesse estabelecido uma linha entre o meu coração e aquela rapariga. Algo que me unia a ela, alto forte mas, ao mesmo tempo, ininteligível.
Não percebi isso na altura, aliás, só há muito pouco tempo o percebi, mas apaixonei-me naquele momento.

Era o primeiro dia de aulas na FEUP e enquanto ela ali ficou, naquele degrau, a observar tudo à sua volta, certamente pensando na nova fase da sua vida que estava a começar, também eu fiquei ali parado, no meio do estacionamento, a olhar para ela.
Destacava-se de todas as outras; não por qualquer particularidade física mas pelo olhar. Apesar de poder parecer um pouco perdido naquele instante, senti naquele olhar determinação e confiança. Era seguramente uma mulher forte, que não se deixava intimidar, que não hesitava.
Tive a certeza que poderia ser amigo dela.

Uns anos mais tarde recordei aquele momento e constatei que não me tinha enganado, mas também que não tinha percebido a totalidade daquela rapariga, houve coisas que não vi naquele momento e com as quais acabei por ser confrontado.

Se eu acreditasse nessas coisas, diria que tinha sido o destino. Mas a verdade é que Mónica, assim se chamava, viria a ser da mesma turma do Gonçalo, o meu melhor amigo. Estavam ambos em Engenharia Civil, eu em Engenharia Electrotécnica e de Computadores. Depressa se criou uma amizade entre ambos e entre mim e Mónica.
Em pouco tempo tornámo-nos quase inseparáveis. Apesar da diferença de cursos, do pouco tempo há que ela nos conhecia, a verdade é que estudávamos muitas vezes juntos, saiamos juntos. Apoiávamo-nos uns aos outros.
Estabeleceu-se entre nós uma relação especial, uma amizade sólida, forte. Éramos os melhores amigos, praticamente como irmãos. Sim, irmãos…

E um dia percebi-o. Interroguei-me se seria isso que eu queria, ser só um bom amigo da Mónica. Se, quando eu pensava no quanto gostava das sardas que ela tinha no nariz e nas maçãs do rosto, da piada que achava à covinha que ela tinha no queixo, se isso não seria algo mais do que uma boa amizade.
Dei por mim a sondar o Gonçalo sobre um possível interesse dele na Mónica. Lembro-me do quanto fiquei feliz por me ter dito que não, que só tinha olhos para a sua vizinha do 5º esquerdo e de como ela o tratava mal.
Durante grande parte do segundo semestre, perguntei-me várias vezes se me estaria a apaixonar por ela, se não estaria apenas a confundir uma forte amizade com amor. Não sabia e tive receio de tentar saber. Receei que se tentasse saber acabasse por perder a namorada e também a amiga. Fingi a mim próprio que não era nada.
Nem com o Gonçalo fui capaz de falar. Nem no dia em que me perguntou porque andava estranho, porque os andava a evitar.
Consegui convencê-lo de que era um disparate achar isso. Nunca tinha estado tão bem e para não deixar dúvidas, pouco tempo depois apresentei uma namorada. Era a rapariga que trabalhava na papelaria perto da Faculdade, a Cláudia. De tanta vez lá ir tirar fotocópias percebi uns olhares de interesse por parte dela. Sem grande convicção, um dia convidei-a para sair, aceitou e nessa mesma noite “começamos a andar”.
A Mónica felicitou-me, deu-me os parabéns. Observei-a atentamente tentando descortinar algo na sua atitude; acho que tinha a secreta esperança de conseguir ver alguma tristeza no seu olhar, uma ponta de mágoa. Isso teria sido o suficiente para me dar a coragem que me faltava para lhe dizer que aquele namoro era uma brincadeira, que eu gostava era dela. Mas nada. Não vi nada e convenci-me que tinha feito bem.
É hoje mais do que evidente que ela não me iria dizer que eu estava a fazer um disparate, que largasse a rapariga e ficasse com ela. Nunca o diria. Se fosse ela a aparecer com um namorado eu também não diria nada.
O Gonçalo achou muito estranho aquele namoro; como é que eu nunca lhe tinha dito nada? Ficou algo sentido, pelo menos achou que era mais meu amigo que eu dele, disso tenho a certeza.
O namoro não durou muito, claro. Com ele consegui várias coisas: magoar a Cláudia, que não merecia nada disto; afastar a Mónica; afastar o Gonçalo e ficar com muitos problemas de consciência.
Cada um de nós se embrenhou nos estudos e deixámos o tempo correr.

Com o final das aulas a Mónica foi para Valença, a sua terra, o Gonçalo para o Algarve e eu fiquei no Porto. Consegui um trabalho a ajudar um topógrafo e tentei esquecer.
Não consegui.
Os primeiros tempos do segundo ano do curso decorreram em aparente normalidade mas a nossa relação já não era a mesma. Já não riamos à gargalhada com os disparates uns dos outros, já não íamos tanto ao cinema nem ao teatro, já não almoçávamos sempre juntos na cantina da faculdade.
Fiquei a saber que a Mónica tinha começado a namorar com um rapaz em Valença, ao que parece, um GNR lá colocado. Uma amiga comum achou que eu devia gostar de saber. Não gostei, mas achei normal, claro que sim, o contrário é que seria estranho. Nunca abordei o assunto com ela nem ela comigo.

Decidiu-se, com outros colegas da faculdade, passar a passagem desse ano numa discoteca de Santo Tirso.
Às primeiras horas de 1994, quando começou o “Purple Rain” do Prince, uma música que eu sabia ser das preferidas dela, senti que os astros se tinham alinhado e que essa conjugação astral jogava a meu favor.
Ébrio, não me lembrei na altura que não acreditava nos astros. Sem pensar duas vezes, convidei a Mónica para dançar. Eu, que durante toda a minha vida pensava em tudo duas e três vezes, ali estava, corajoso. Era agora ou nunca.
Não fomos para a pista, ficámos ali, num canto, sozinhos. Ela encostou a cabeça ao meu peito e disse-me, “sinto o teu coração”. O alinhamento cósmico era total. Beijei-a e disse-lhe que a queria.

3 comentários:

Anónimo disse...

:) gostei.... por vezes fico na dúvida se são apenas histórias tuas, ou se as viveste mm...
keep up the good writing ;)
LD

Anónimo disse...

E ela e ela o que disse, aposto que acordaste nessa altura, os meus sonhos tambem são assim acordo sempre na altura melhor,:(
vá anda,quero saber se dançaram aquela dos Foreigner ( I Want To Know What Love Is ) com tanta demora ainda sonho com a Lurdes Damasio.

Anónimo disse...

... os actos de coragem é que traçam as linhas da nossa vida sem existir o sentimento de arrependimento por não termos tentado. Gostei muito Rui. Beijinho :-) da Jaqui