terça-feira, setembro 20, 2005

A Linha (parte I)

Era impossível não notar naquela figura ao cimo da escadaria. Talvez por estar a fazer um esforço por passar despercebido – estaria? -, mais do que propriamente pelo grande penso branco que tinha no nariz. Era evidente que tinha sido sovado.
Se atentássemos nos olhos daquele homem, não seria difícil perceber que procurava vingança. O facto de usar um chapéu de aba larga, mesmo por cima das sobrancelhas, acentuava-lhe os olhos raiados de sangue.
Agitou-se. O rosto permaneceu impassível mas os olhos fixaram-se em alguém. Percebeu-se que por baixo do comprido sobretudo que usava, se tinha mexido.
A sua espera tinha terminado. Observava agora um casal que se parecia despedir. Junto a eles um carro de bebé. Era só uma questão do momento certo surgir.

Grupos de barulhentos marinheiros circulavam por perto. O movimento era intenso. De repente, tudo se precipita. Um marinheiro grita e aponta para o cimo das escadas. O homem mantém o seu olhar petrificado mas agora move-se; de sobretudo aberto, empunha uma metralhadora. O homem do casal percebe o que vai acontecer, na sua ânsia de proteger a mulher e o bebé, faz o carro cair pelas escadas abaixo.

Mais homens armados parecem surgir do nada. Dezenas de pessoas correm em todas as direcções. O tiroteio é infernal. Trava-se uma batalha. A batalha final.

- Excuse me!!.
O anafado e carregado passageiro quase atropelou Luís. Não lhe acertou com a enorme mala que arrastava o mais depressa que conseguia, mas fê-lo regressar à realidade.
Aquele Excuse Me gritado aos seus ouvidos, fez desaparecer a figura de Elliot Ness que, de arma na mão, se preparava para enfrentar os homens de mão de Al Capone.

Union Station, Chicago. Ali, no meio da nave central da enorme estação ferroviária, era impossível não recordar a cena do tiroteio d’ “Os Intocáveis”, o filme de 1987 que Brian de Palma ali fimara e que conta a luta dos agentes do Departamento do Tesouro norte-americano contra o bando do famigerado mafioso.
Kevin Costner, Sean Connery, Andy Garcia e Robert de Niro tinham agora desaparecido entre a multidão e deu por si parado, no meio do grande átrio. Sentiu-se à deriva.

Era o primeiro dia de Primavera e estava muito calor. Olhando em volta, tudo lhe parecia decorrer muito lentamente, quase em câmara lenta. Até os ponteiros do enorme relógio que dominava o topo de uma das paredes do átrio parecia mover-se muito devagar. Aquela sensação de tempo dilatado perturbou-o.
Gordas gotas de suor escorriam-lhe pelas têmporas. Foi tomado por uma sensação de claustrofobia, como se as paredes estivessem a convergir sobre si. Teve de procurar onde se sentar.

Tinha acabado de chegar de Nova York no serviço Lakeshore Limited. Tinham sido mais de 18 horas de comboio.
Sabia à partida que tinha de estar preparado para aguentar muita coisa nesta sua viagem, mas aquela longa viagem tinha sido bastante penosa. Para além dos 110usd que lhe tinha custado o bilhete, estava agora a cobrar-lhe um outro preço, este bem mais elevado, o preço de uma noite muito mal dormida.

Tinha vindo para os Estados Unidos com o objectivo de deixar coisas para trás. Procurava nesta viagem, tantas vezes sonhada e outras tantas adiada, um novo começo. Queria reiniciar o computador interno. Novos programas tinham sido instalados e o reinício não podia ser feito no Porto.
Era-lhe por demais evidente que tinha de se afastar de certos locais, daquilo que eles lhe transmitiam. De certas pessoas também. Da simples possibilidade de se poder cruzar com elas. Só isso era suficiente para ter metido licença sem vencimento e partido quase de um dia para o outro.
Explicações não as deu. Às mil perguntas feitas por família e amigos, respondeu com evasivas. Apenas que era a altura certa para partir por uns tempos. Sabia que era mais que isso. À namorada tentou ser mais concreto, mais sincero. Não conseguiu.
Agora ali estava, a milhares de kilometros de casa. Num outro continente. Com um oceano entre ele e a sua vida. Precisava começar de novo mas ainda não tinha conseguido nada, apenas a sensação de que já tinha perdido algo.
Não ia ser fácil, estava bem consciente disso. A viagem até Chicago tinha sido uma prova disso. Apesar da secreta esperança que por vezes alimentava de que longe, as coisas começassem a ir ao sítio por si, as memórias tinham atravessado o Atlântico consigo.

Sentou-se numa cadeira que tinha num dos braços um pequeno ecran de tv. Era com certeza uma raridade, pensou. Em tempos, alguém se tinha preocupado com quem esperava pelo seu comboio. Agora, ninguém se tinha preocupado em tirar dali aquilo. É que nenhum televisor funcionava. Um pequeno autocolante envelhecido e à beira da queda, anunciava: out of order.
Havia uma fila de cadeiras que se estendia por uns 10 metros, cada uma com o seu pequeno receptor de tv. Apesar de nenhum funcionar, apenas o seu informava que estava out of order.
Naquela cadeira castanha e bastante maltratada, achou que poucas coisas ali estavam in order. Inclusivamente ele. Pensou em como seria bom conseguir dormir um pouco e fechou os olhos. A última coisa que viu foi o grande relógio no topo da parede. Marcava 9h55.

(NA: a cena do filme “Os Intocáveis” é retratada de memória, daquilo que me lembro daquela cena em particular. Não pretende ser um retrato fiel do que acontece. Apesar de alguma busca, não consegui encontrar a descrição da cena… e também não sou membro de nenhum clube de vídeo, o que inviabilizou o aluguer do filme).

2 comentários:

Anónimo disse...

Venha mais...
só uma nota de subjectivo interesse


Brain de Palma faz uma justa homenagem a Serguei Eisenstein

No filme de 1925 “O Encouraçado Potemkin” na famosa cena da escada como podes ver neste link:

http://www.klepsidra.net/klepsidra9/eisenstein.html

Anónimo disse...

... quero mais tb :D
LD