quinta-feira, setembro 08, 2005

A Boleia - 1ª Parte

Profissionalmente, era a pior altura do ano. Gostava do que fazia e da empresa onde trabalhava. Pela primeira vez em muitos anos de desacerto, tinha conseguido um bom lugar e logo numa empresa com bom ambiente de trabalho.
Mas as semanas que antecediam a data de conclusão do orçamento para o ano fiscal seguinte, era sempre uma altura de algum stress e que, por vezes, obrigavam a horário prolongado.
Era o que acontecia naquela sexta-feira. Para evitar ter de vir trabalhar no fim-de-semana, tinha optado por ficar até mais tarde.
A próxima quarta-feira era a data limite para entrega da previsão de custos do seu departamento e queria concluir essa tarefa o mais cedo possível.
Segunda e terça seriam apenas dias de revisão dos números. E também de um certo gozo. Gozo em apreciar a aflição dos responsáveis pelos outros departamentos, à medida que a data limite se aproximava e que não tinham a sua parte feita. Sentir a tensão nervosa – certamente por não ser a dele; ele, que tanta coisa deixava nervoso.
Nunca contava a ninguém que já tinha a sua parte pronta há vários dias, nem mesmo aos colegas com quem tinha uma relação mais próxima. Fingia sempre estar também pelos cabelos com o orçamento, dizia frequentemente que o dia devia ter 30 horas. Apesar de ter tudo pronto com antecedência, só entregava a sua parte no último momento, não fosse a administração no ano seguinte reduzir o prazo para a elaboração do mapa.
O nervosismo geral era tanto entre os colegas que nunca ninguém tinha reparado que, ao contrário deles, ele não fazia directas naqueles últimos dias.

Estava quase a dar por concluído o dia. Olhou para o relógio do computador, 23h05. Afastou a cadeira da mesa para se espreguiçar mas esta bateu em algo. Era a caixa de pizza que tinha encomendado para o jantar. Sentiu o gosto do sal nos lábios e tomou nota de um apontamento mental, “cortar nas alcaparras”.
Foi buscar água à máquina no corredor. Enquanto enchia o copo ouviu vozes. Afinal não estava sozinho, pensou. Afinal não era ele o único a querer despachar-se este ano, mais alguém abdicava de uma noite de sexta para dar um avanço ao orçamento. Quem seria?
Era uma voz feminina. Avançou um pouco mais e percebeu quem era: a secretária do “grande-chefe”, como por vezes chamava ao administrador. Hesitou. Ela era uma das coisas que o deixava nervoso.
Tinha mais 10 anos que ele. Já nos quarentas, era aquilo a que, muito resumidamente como só os homens sabem ser em relação a certos assuntos, se costumava chamar uma “gaja boa”. Ele não podia concordar mais.
Ao certo, ninguém sabia a sua idade. Aliás, pouco se sabia sobre a sua vida apesar de ser um tema algo frequente entre os colegas homens. Salvo melhor opinião, tinha-se por ser uma pessoa dedicada ao trabalho e ao ginásio – sim, que para ter um corpo daqueles era preciso dedicação ao ginásio.
Relações não lhe eram conhecidas e quem tinha tido “tomates” para a convidar para sair, tinha sempre trazido uma nega para contar aos amigos. Havia mesmo apostas feitas sobre quem seria o primeiro a conseguir sair com ela.
Entre os colegas era conhecida como “o bloco de gelo”, colegas homens e mulheres.
Paula Varela, o bloco de gelo. Aquela mulher tinha o dom de o tirar do sério. Não conseguia evitar ficar perturbado na sua presença. Na verdade, bastava pensar nela. Dava-lhe tesão. Soltava-lhe a imaginação. Entretinha-se algumas vezes - mais do que as que gostava de admitir a si próprio - a somar algumas características de Paula: secretária, aquele ar frio e distante, aquelas saias justas, aquelas pernas bem torneadas, aquele cabelo negro, os olhos castanho claros, os óculos Armani que lhe davam um ar ainda mais sofisticado, os saltos altos que insistia em usar (só para o torturar, estava ele convencido).
Não era muito, mas para ele era o suficiente para lhe dar muita tesão e fazê-lo sonhar acordado.

Agora, ali estava, à porta do gabinete do “grande-chefe”, sem se deixar ver, a ouvi-la falar com a mãe ao telefone. Estava a cancelar o pequeno-almoço que tinham combinado para o dia seguinte; tinha ficado a trabalhar até aquelas horas, ia chamar um táxi e ia para casa descansar sem ter de se preocupar com compromissos no dia seguinte, para mais, logo cedo. O pequeno-almoço teria de ficar para domingo.
Um pensamento súbito fê-lo estremecer: oferecer-lhe boleia até casa. Achou imediatamente a ideia absurda, ela nunca lhe tinha sequer dado confiança, nunca tinham tido uma conversa para além de assuntos de trabalho e, mesmo assim, sempre conversas breves.
Voltou para trás. Deu meia dúzia de passos e parou. “Que diabo, o pior que me pode acontecer é levar uma nega, não a vou convidar para sair, faço-me de surpreendido em a ver aqui a esta hora e ofereço-lhe boleia”.
Nunca tinha sido homem para grandes rasgos de coragem, especialmente quando se tratava de mulheres mas, naquele momento e até por ser algo inesperado, em que não tinha pensado com antecedência, sentiu a confiança necessária para tentar a sua sorte. Respirou fundo e deu meia volta.
Espreitou pela porta. – Ah, olá, boa noite… fui buscar água, vi luz, pensava que estava sozinho…”
- Olá – disse ela naquele tom distante, como só ela sabia fazer e que deixava toda a gente em sentido,– tive que ficar até mais tarde, mas o Dr. Já saiu e eu vou sair não tarda nada também. É só chamar um táxi.
A ele, pareceu que Paula nem olhou na sua direcção. Vacilou. Tinha avançado mas agora hesitava em fazer o convite. Os pensamentos entrechocavam-se na sua cabeça.
- Eu também fiquei… a adiantar algumas coisas para o orçamento. Mas também vou sair – bebericou um pouco de água - , se quiser eu posso dar-lhe boleia até casa, não me importo…
“Agora está feito, seja o que Deus quiser”, pensou.
Durante o que lhe pareceu ser uma eternidade, mas que na verdade tinham sido apenas breves segundos, ficou ali, à entrada da porta, como que suspenso, a segurar o copo de água com as duas mãos, nó da gravata descaído, botão do colarinho desapertado, cabelo em desalinho e um sorriso um pouco parolo. Se se tivesse visto, por certo teria tido vontade de se enfiar num buraco bem fundo e de só voltar anos depois.
Paula levantou a cabeça e olhou-o com um olhar penetrante, não distante como era habitual. Aqueles dois pontos castanho claros a fitarem-no por detrás das lentes fizeram-no engolir em seco.
- Está bem, agradeço. Quando sai?
- É só desligar o computador. Já tinha mesmo terminado. Podemos sair daqui a nada.
- Eu espero-o aqui, então.
- Volto já – disse ele, tentando reunir todas as suas forças nas pernas para que não o deixassem ficar mal. Receou que a ordem de movimento dada pelo cérebro não fosse obedecida.
Mas foi.

2 comentários:

Anónimo disse...

hum.... aposto que ela o vai convidar pra entrar até casa e pimba, hehehehehe :-)
Aguardo ansiosa as cenas do proximo capitulo.
Adorei Rui. Beijokas da Jaqui.

Anónimo disse...

It smells like teen spirit :))) Mto bem mesmo!
LD