quarta-feira, agosto 03, 2005

Taxismos - A Viagem

São muitas as maneiras de fazer sinal a um táxi para parar. As coisas com que nos acenam. Até com o pé já me fizeram sinal.
Desta vez foi com uma radiografia. Ia eu na lateral da Av. da República a chegar ao Campo Pequeno, quando vejo uma radiografia a acenar por entre os carros estacionados.
A princípio nem vi a mão que a segurava, pensei que lhe tinha dado o vento e que vinha na minha direcção.
Quando parei, vi que havia uma clínica mesmo em frente.
A radiografia estava na mão de uma senhora que tinha a outra mão dada a um rapaz. Ele não parecia ter muita vontade de entrar no carro.
Atrás de mim a fila aumentava e as buzinas impacientes começaram a fazer-se ouvir. Fiz sinal que ia parar mais à frente, na entrada de uma garagem e avancei.
Pude ver pelo espelho que a senhora da radiografia tentava convencer o rapaz a vir para o carro. Não era mãe dele, percebia-se isso. Parecia puxar por ele, mas jamais seria capaz de o mover. Ele devia ter 1,80m e pesar uns 100kgs. Arrastá-lo seria tarefa para 4 ou 5 homens. Aparentava ter 25 anos. Estava algo agitado.
Aos poucos, a senhora foi conseguindo trazê-lo até ao táxi. Saí para lhes abrir a porta.
- Já me contas, no carro. Não podemos fazer o senhor estar à espera.
- Se tivesse tempo…
Acabaram por entrar, fechei a porta. Era um dia muito quente e havia pouca gente na rua.
- É para a Rua Dr. Almeida Amaral, se faz favor – disse-me a senhora, soprando o cabelo que lhe caía pela testa.
Sou um bocado fala-barato com os clientes. Acho que não é defeito, é feitio, até porque percebo rapidamente quando os clientes não estão dispostos a aturar-me e sei quando devo calar-me.
Desta vez não abri a boca nem para tentar iniciar conversa. Nem sequer olhei pelo espelho. Não sei explicar porquê, mas senti que não devia falar.

- Se tivesse tempo contava-te uma história – disse o rapaz após vários minutos de silêncio. Contava-te a história da viagem que nunca fiz e que, ao mesmo tempo, já fiz vezes sem conta. Achas possível que eu esteja cansado de uma viagem que ainda não fiz?
- Vais desculpar-me mas não percebi nada.
- Tenho que decidir que viagem é essa. Ah, se eu tivesse tempo… tanta coisa que eu tinha para te contar, os sitos onde estive, as pessoas que conheci, as fotos que tirei. São todas a preto e branco, sabes?
- As fotos da viagem que ainda não fizeste!?
- Essas mesmo, tenho-as todas aqui, na cabeça, tu sabes…
- Na cabeça, sei sim. Mas conta mais – a voz dela saía arrastada, parecia cansada.
- Eu gostava, mas não tenho tempo, não tenho! Foi uma viagem e tanto, nisso tens de acreditar! Parece que foi há muito tempo e no entanto… sabes que parti apenas com uma pequena mochila?
- Uma mochila cheia de sonhos, aposto.
- De ilusões…
- Então e os sonhos?
- Os sonhos estavam à minha espera, no destino, no fim do arco-íris.
- Mas que poético. Não te sabia tão poético. E conseguiste lá chegar, ao fim do arco-íris?
- Mas eu ainda nem comecei a viagem e já queres que a termine?
- Está bem, pronto. Fala-me da mochila, o que leva ela?
- Não tenho tempo, já te disse. Quem sabe um dia te conto essa minha viagem. E olha que vale a pena, vi tanta coisa, tenho tantas fotos, a preto e branco. Prefiro a preto e branco, é mais triste. Esta é uma viagem triste. Tem de ser.
- Mas tem um arco-íris.
- O sonho, lembraste? É o sonho. É uma viagem com um sentido. Sem rumo, mas com um sentido.
- Se tu o dizes, eu acredito. Não entendo, mas acredito.
- Não queres é entender. Mas um dia ainda nos encontramos lá, e olha… não tenho tempo, não tenho! Se tivesse explicava-te como é que a minha viagem tem sentido.
- Estás a contar-me uma história sem sentido de uma viagem com sentido.
- Mas porque me chateias? Tenho uma viagem por fazer, muito para recordar.
Ao entrar na rua Dr. Almeida Amaral, a senhora mandou-me encostar.
- Não precisas ficar nervoso, eu percebi. Deixa-me só pagar ao senhor. Vamos já para o quarto, dou-te a medicação e deixo-te em paz com a tua viagem.
Fiz o troco e saíram os dois, de mão dada. Fiquei a vê-los entrar no Hospital Miguel Bombarda.
Ainda o ouvi dizer: - Um dia, quando tiver tempo, mostro-te as fotos da minha viagem. São todas a preto e branco, sabias? São mais tristes… um dia encontramo-nos lá.

3 comentários:

Anónimo disse...

São-me familiares estas viagens...uma vez...
Ao fundo ouço uma voz também muito familiar
- Filhooooooooo já tomaste o comprimido ?
- Tomo já, não me lembro se é o vermelho se é o azul, que se lixe,
Um, dó, li, tá
Cara de amendoá
Um soleto
Coloreto
quem está livre livre está.
Fiquei sussurrando repetidamente toma já, tomo já, tomo já, e tomei.
Onde é que eu ia mesmo?

Anónimo disse...

O que é um sonho, uma fantasia? senão "a história da viagem que nunca fiz e que, ao mesmo tempo, já fiz vezes sem conta."
Adorei.
LD

Anónimo disse...

excepcional como sempre!!!!

boa escrita.

beijos ss