quarta-feira, janeiro 05, 2011

O Títere 4

fazes o quê?

palhinhas.

A expressão dela impeliu-o a acrescentar algo.

exportamos para trinta e dois países.

Avelino estava à janela, a ver o dia tomar conta do cume distante de um monte. Sentia a cabeça cheia e o corpo vazio. O cheiro de coentros e salsa, plantados numa floreira, do lado de fora da janela, enjoou-o profundamente. Virou costas aos minutos finais da noite e deu por si sozinho.

Cassilda vivia num apartamento que recuperara integralmente, no último andar de um prédio antigo. Tudo o que era indispensável à confecção e ingestão de alimentos estava concentrado num dos topos de uma ampla divisão que, na outra extremidade, tinha uma peça de mobiliário que alternava a sua função entre sofá e cama. A decoração era mínima e minimalista.

Foi com alguma surpresa que Avelino percebeu que, fora a casa de banho, a habitação se resumia àquele espaço. Intrigou-o as várias gavetas junto ao sofá-cama. Aproximou-se e levou a mão a uma delas, detendo-se no último segundo, ficando a sentir o frio do metal da pequena maçaneta na ponta dos dedos. Sentia muito mais ao imaginar o conteúdo do que a desvendá-lo.

Manteve os olhos cerrados até o som de água a correr o ter trazido de volta. Tremia ligeiramente, quando Cassilda apareceu.

isto está um bocado desarrumado, não repares.

não digas disparates.

oh! deixa-me dizer disparates.

Avelino ficou sem saber o que responder.

Entretanto, ela entregou-lhe uma chávena de chá.

é chá verde com cafeína, ajuda-me nas directas.

nunca bebi.

e que mais coisas nunca fizeste tu?

Aproximaram-se os dois da janela, Avelino com os lábios colados à chávena, na esperança que isso justificasse a ausência de resposta. Colocou-se atrás de Cassilda, inspirando longamente o ar por cima da cabeça dela. Ficaram em silêncio, de frente para a neblina que se sumia na luz do sol. O céu parecia um chão acabado de varrer.

já viste o céu? Parece que esteve a ser limpo.

Gracejou ela.

cirrus radiatus.

diz?

as nuvens, chamam-se cirrus…

como é que tu sabes de nuvens?

não sei… há muita coisa que eu não sei… nem sabia que sabia de nuvens.

não é conhecimento que… caia do céu.

Virou-se, sorrindo. Ele deu um passo atrás. Quem era aquela rapariga? Porque reparara nela? O que queria dele? Porque o tinha convidado para sua casa, assim, sem mais? Como é que ela o tinha descoberto a observá-la? Já o tinha lá visto várias vezes, senão não o tinha convidado para aquela festa. Porque não dissera nada antes? Porque não o fendera, lhe chamara nomes? De que tanto sorria ela? Todas as perguntas lhe surgiam ressequidas e lascadas, com o sabor do fel. Uma imagem baça e gretada, com tanto de familiar como de indesejada sobrepunha-se a tudo, não o deixando raciocinar. A avalanche de perguntas continuava a tombar do alto de si.

Sacudiu a cabeça como se se quisesse livrar de algum insecto que lhe tivesse ficado emaranhado nos cabelos.

estás bem?

sempre gostei do céu, desde miúdo,

tu és obsessões e vícios, que sempre te deixam mais só.

Era ainda aquela voz, dentro dele.

não preciso pensar de emprestado, eu sei pensar por mim.

Disse ele, zangado.

eu não…

Mais do que qualquer outra coisa, Cassilda estava verdadeiramente intrigada. Foi interrompida.

nasci e cresci numa grande casa, com um grande jardim, com os meus pais, mas eles não me deixavam sair, brincar fora, porque podia acontecer… tudo e eu ficava a ouvir os outros miúdos a brincar ao longe, do outro lado do muro do jardim, mas… não era por mal, eles não faziam por mal e a culpa é minha. O muro nem era alto, podia saltá-lo sem custo, mas nunca o fiz. Jamais seria capaz de fazer isso aos meus pais.

deve ser…

Cassilda ia dizer “triste”, mas não disse.

havia as nuvens, mas já nem me lembrava de como gostava delas.

ainda tens muito tempo para brincar. Olha, esta noite, por exemplo. E no futuro…

o futuro há-de chegar!

Avelino tinha aceite o convite para a acompanhar ao emprego e caminhavam em silêncio, como que esquecidos um do outro, na direcção d’ “O Reino do Aço Inoxidável”. Cassilda acendeu um cigarro, mas logo o atirou fora. Eram os únicos naquela rua, onde nem o sol tinha ainda chegado. Fazia ali mais frio, mas não foi por isso que ambos estremeceram. À sua frente, um descampado surgiu de entre os prédios, atrás de uma vedação amolgada e já quase toda caída. Pararam os dois, não por causa do outro. Restos de uma habitação adivinhavam-se por entre a vegetação alta, que o descuido tinha deixado tomar conta do lugar.

foi aqui…

Apesar do sangue à flor do rosto, Avelino estava particularmente inexpressivo. Nada disse.

Cassilda estava pálida e, pela primeira vez, a privação do sono tomara-lhe conta do semblante.

Respiravam ambos ao mesmo ritmo, com alguma ansiedade mal disfarçada.

anda.

Cassilda estendeu-lhe a mão e incitou-o,

anda, vem.

Avelino sentiu o frio daquela pequena mão e, ao mesmo tempo, uma força de que não suspeitara. Passaram por cima da vedação, de tijolos, restos de azulejo e muito lixo, para ali varrido pelo vento, até que Cassilda se deteve numa pequena clareira. Olhou-o com aquele sorriso a que ele ainda não se habituara e apertou-lhe a mão, quando falou,

ali à frente.

Avelino sacudiu a cabeça num não que não era de recusa, apenas de incompreensão.

aquele muro, ali, para tu saltares.

E apertou-lhe novamente a mão, num incentivo decidido e gelado.

Avelino olhava, mas não via o muro, não via a habitação em ruínas, não via os tijolos, os azulejos, o lixo, as ervas daninhas, o boneco no chão do seu quarto, encostado à parede. Não via sequer Cassilda. Via nuvens a passar por cima de um jardim mal amanhado e ouvia uma brincadeira, ao longe.

Depois, apertou ele a mão daquela rapariga que o ali trouxera.


(e acabou-se)

7 comentários:

Rui disse...

3 meses para isto!
eu sei, digo o mesmo.
não é que haja necessidade de explicações, mas sempre quero dizer que isto quando começou não era nada para acabar assim. nem quando ia a meio era para terminar assim. era para terminar como? de tantas maneiras que assim é que acabou... por acabar. não era melhor, nem pior, apenas diferente.
3 meses e depois, em 3 horas (pouco mais) escrevinhei esta última parte. tanto, para tão pouco.

um abraço a todos.

AGD disse...

E um abraço daqui para a Cassilda e para o Avelino.:) (nomes destes, não é em três meses ou 3 horas que os ouvimos assim de repente!;))

Manuela C. disse...

Rui, não te menosprezes... Este texto e os anteriores têm um sentido, só há que o encontrar...
Há malucos para tudo e normalmente nem são anormais... pode ser um sentido... O aço inoxidável quando aquece é pra valer... pode ser outro... E por aí fora...

(em 3 meses e não em 3 horas, não escrevi coisa alguma... aliás, há mais de 3 meses e nem eu, nem muita gente!...)

(e tu escreves muito bem e, mesmo sem encontrar um sentido, os teus textos deixam-me sempre os sentidos todos confundidos...)

(Acho que acabei de perceber porque não encontro o sentido!...)

S disse...

Ainda ontem li o teu fim, e fui para casa a pensar nele. Deu-me um sabor de fim cinematográfico em que o espectador é que decide afinal o que acontece ao personagem.
:)

Rui disse...

kaku,

se os vir, abraço-me a eles como se fosse um coelho.


Lélé,

não é menosprezo, é outra coisa qualquer cujo nome ainda não encontrei.


ss,
escrever um filme é coisa que me faria rir até mais não.

S disse...

Rui, rir é bom.
;)

Leonor disse...

estou como os outros... é sempre bom vir aqui ler, nem que passem meses!

Bom ano Rui!