segunda-feira, janeiro 17, 2011

O Fantasma Precisa De Um Sorriso


O fantasma é incapaz de pensamento abstracto. Apenas consegue elaborar em ideias densas e profundas – coisas que se vejam. Desprovido de massa encefálica palpável, muito pensa ele – intrigado até à medula – em como tal é possível. Aliás, sente incomensurável frustração ao não conseguir entender como é que ele próprio existe.

Se, num determinado momento, o seu sentido critico lhe garante que os fantasmas não existem, logo no momento seguinte a realidade se sobrepõe, pois ele ali está, a pensar nisso. Leu Descartes, leu António Damásio e jurou não voltar a ler sobre o assunto: prefere os momentos físicos aos metafísicos.

De uma coisa o fantasma tem a certeza: não quer ser daqueles que existem para atemorizar as pessoas. A princípio, julgou ser essa a sua missão – a de todas as almas do outro mundo, afinal – mas começou a questionar-se quando percebeu estar não numa mansão antiga ou local histórico, mas sim num moderno edifício de escritórios, onde ninguém notava as portas que extemporaneamente ele fechava, ou as gavetas que, sem mais, abria. Se por alguém ele passava, deixando a pairar um uivo arrepiante, nem uma cabeça se virava, nem uma interrogação naquelas mentes se formava.

Ali, no frio daquelas existências contidas entre paredes ocas e tectos falsos, por entre máscaras de orgulho que nunca caem, o assustado é ele, que aquelas criaturas humanas, percebeu ele, para sobreviverem, têm de ser assustadoras – até mesmo com elas próprias. Assim, só sai de madrugada, fintando as sonolentas rondas dos Seguranças. Percorre o espaço à procura do que se entreter, mas tudo ali é privado, contido, fechado, espartilhado; nada é acessível e ele é uma quimera que foi criada com educação suficiente para saber não se intervém naquilo que é dos outros.

Até que um dia, numa arrecadação onde se resguardou para meditar nos espíritos que todos os dias por ali se consomem, e se terá sido ele assim também, um dia, descobriu enfiados numa caixa, os restos de uma festa antiga, a caminho do lixo. Enfiou-se debaixo de uma toalha de mesa e de uma cabeleira de cor garrida e atrás do desenho de uma cara que era a sua. Numa ginástica que não foi fácil nem rápida, lá conseguiu compor uma existência mais evidente e, agora, quando a noite chega e o último sobrevivente se convence a deixar as instalações, o fantasma vai colocar-se à janela, na esperança que uma alma piedosa lhe sorria de volta.


6 comentários:

tb disse...

Já me tinha interrogado várias vezes onde terias arranjado uma assim tão janota foto de perfil.
Hoje desvendaste o mistério e já posso dormir descansada. :)
Gostei imenso do teu texto. Sabes às vezes também me sinto assim como esse "teu" fantasma. :))))
Um beijo (ou mais)

R. disse...

Fabuloso e produtivo regresso, Rui! Já lhe sentia a falta :)

S disse...

ausenta-se uma pessoa por um dia e quando regressa, eis que lhe surge ao caminho um fantasma. Ele não sabe, mas eu já lhe retribui o sorriso.
:)

lélé disse...

O conto está uma delícia.
Temos medo dos fantasmas, mas acho que é só porque eles têm sido constantemente culpabilizados pelas piores acções, ainda que nunca ninguém tenha prendido um fantasma ou provado que ele enriqueceu à custa de vigarizar os outros, os não fantasmas... Um sorriso para esses fantasmas?... Vejamos... Acho que o "Esgar" (PR) tem boa experiência no assunto, por exemplo...

Fá menor disse...

Hoje somos cada vez mais esse fantasma, invisível para certos grandes olhos cegos de poder.

Anónimo disse...

Maravilhoso.