terça-feira, setembro 07, 2010

O Títere 1

Cheira a tira nódoas e trabalha numa fábrica de palhinhas. Se até há pouco tempo estes dois factos eram o que de mais significativo se podia dizer da sua existência, há agora a acrescentar o interesse pelo ventriloquismo e pela nova empregada de uma loja por onde ele passa no caminho que faz entre o trabalho e casa.
Forjar os objectos que permitem a ingestão de alimentos através de sucção, não deve ser actividade menosprezada. Só ele, tem a seu cargo dez máquinas, que produzem vasta e versátil oferta: palhinhas de inúmeros tamanhos, cores, feitios e funcionalidades; desde clássicas a articuladas, telescópicas e, recentemente, umas que o marketing baptizou de sensory por, supostamente, activarem as papilas gustativas, acentuando assim o sabor dos alimentos.
O cheiro que exala não se explica. Quem com ele tem de conviver – os colegas de trabalho – nunca o viram sujar-se no refeitório, durante as refeições, muito menos utilizar tira nódoas, mas todos concordam que o fedor que dele se desprende é a limpeza a seco que faz lembrar.
A tudo isto ele é indiferente e jamais fala sobre o seu trabalho ou sobre cheiros, nas escassas ocasiões em que se faz escutar. Ultimamente, ocupava parte importante do tempo livre com o bonifrate que adquiriu em segundo braço, num sítio de quinquilharia e restos. Na diminuta e árida divisão de casa em que se entrega ao sono, sentado à beira do colchão, em frente a um espelho de corpo inteiro que encostou à, de resto nua, parede, treina a arte da manipulação da voz, a falar com o boneco. Mas, nas últimas duas semanas, começou a pôr de lado algum desse imenso tempo desimpedido, para se dedicar à observação disfarçada, através de um canto da montra, da nova agente comercial d’ “O Reino do Aço Inoxidável”, loja especializada, onde não entram óxidos, e que vende para toda a cidade e concelhos limítrofes.
Reparou nela por mero acaso, que não é sujeito para desviar o olhar para os lados quando é em frente que quer ir. A verdade é que algo o incitou para aquela figura esguia e sorridente, que se movimenta com elegância e destreza por entre o atravancado desânimo das bancadas, armários e estantes em exposição. Ainda deu meia dúzia de passos a caminho de casa, mas acabou por voltar atrás e, o mais desapercebido que se conseguiu tornar, deixou-se ficar a olhar para ela. Desde esse dia, ao regressar do emprego, estaciona-se no mesmo canto do vidro, a contemplá-la, atrapalhado consigo próprio, com tanta sensação nova, tentando fazer sentido de tão estranho mistério em que se acha.
Nos fins-de-semana, o encerramento da loja não lhe impede o voyeurismo: se fechar os olhos com força, consegue vê-la ainda com mais nitidez, e então, deitado no chão glacial de uma qualquer divisão de sua casa, todo nu e quase imóvel, entrega-se ao consternado prazer de um priapismo que chega súbito e poderoso, e que, durante trementes horas, se impõem a todas as outras faculdades.

Absolutamente convicto da sua invisibilidade, foi com terror que a viu sair da loja, lesta e decidida, dirigindo-se a si, sem lhe dar tempo para se afastar ou sequer mascarar volumes embaraçantes.
Queres ir a uma festa?
Assim, sem mais! Ele, com o olhar desorbitado, engasgou-se e foi acometido de um ataque de soluços. Continuou ela,
eu e uns amigos vamos a uma festa de não aniversário.
Ainda soluçoso, lá conseguiu fintar a atrapalhação o suficiente para perguntar,
festa de não aniversário?
A rapariga respondeu com outra pergunta,
não te parece uma boa ideia para uma festa?
Num instante ficou marcada hora e local de encontro.
Depois de ter regressado à loja, voltou a sair,
chamo-me Cassilda.
Com a queda livre das ideias a provocar-lhe a intermitência das pálpebras, sussurrou,
Avelino.


(é suposto isto ter seguimento)

entretanto, umas fotos de Istambul, enquanto se tenta esquecer o acabado de ler

10 comentários:

S disse...

é suposto, não, tem de ter seguimento, olha agora iniciar assim uma história destas sem lhe dar um fim...
eu quero saber o que aconteceu na festa de não aniversário, entre a Cassilda e o Avelino.
:)

Alberto Oliveira disse...

... se dentro de um mês eu não souber o que se passou na festa de não aniversário, entre a Cassilda e o Avelino armo aqui uma cena das antigas.

Já chega de pôr água na boca com a Inês, a filha do palhaço e com... o... os outros todos, prontos.

Manuela C. disse...

Eu estava convencidíssima que um tipo imaculado e com cheiro a tira-nódoas e essas coisas todas se tinha embeiçado por uma reluzente e também imaculada máquina robotizada... Depois aparece a Cassilda e só me ocorre: "Lá me enganou ele outra vez!" (Neste caso, ele és tu, entenda-se e o engano é meu, ora bem!...)

R. disse...

Com ou sem seguimento, valeu bem a pena lê-lo. O conteúdo é criativo e bem humorado, mas a forma é... supina! :)

Abraço!

R. disse...

PS: Sei de quem esteve em Istambul há pouco tempo e apreciou muito. Pelas tuas fotos, dir-se-ia que não te terá desiludido também... ['just guessing';)]

R. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
segurademim disse...

coitado!!
veremos como se vai safar na tal festa

a Cassilda, desenvolta e sem mais aquelas, percebeu - "ah, o que tu queres é festa...", já te trato da saúde, vais ver

Alberto Oliveira disse...

... se hoje o árbitro fosse palestiniano...
No próximo domingo bem podia ser um israelita...

Portugueses é que não porque qualquer um deles tem (pelo menos) dois ou três clubes da sua simpatia e nunca se sabe para que lado estão virados...

Rui disse...

Ontem lá fui, a cavalo na Coca-Cola - pudera. À entrada, perguntaram-me se eu era do Hamas; quando respondi que era dos da casa, o Prosegur ficou verdadeiramente desconfiado e fartou-se de me apalpar - só me largou quando lhe confessei o paradeiro do único terrorista que conheço: àquela mesma hora, estava em Manchester. Ainda fui a tempo de me mandarem calar.
Havias de ver o Manel Alegre aos pulos, de dedo em riste: "a mim ninguém me cala", dizia ele. Vim-me embora e deixei-os a falar sozinhos.

R. disse...

:)))

[ainda bem que foste a tempo, não fosses passar por delator :)]