quarta-feira, setembro 15, 2010

O Títere 2

Às dez da noite, aquela é mais uma das muitas partes da cidade em que toda a gente está apenas de passagem. Projectada a partir da entrada revestida a alumínio da “Pensão da Concha”, uma luminosidade torrada e cheia de dedadas, deixava a nu a falta de umas quantas pedras na calçada. A iluminação pública não chegava ao solo – de tão frágil, não conseguia cair; ficava, por um momento, a pairar junto às lâmpadas para depois ser levada pela aragem que soprava do rio. De mãos nos bolsos e o olhar cingido às crateras do passeio, reflectia sobre a necessidade ou não de ter trazido algo para oferecer a Cassilda; flores, ou…

Nada mais lhe ocorreu.

Apesar do desconcerto emocional, decorreram ainda duas horas, após o inusitado convite, sem que o sangue lhe tivesse dado tréguas. Aos poucos, e conseguindo encontrar algum aconchego no desconforto, acabou por serenar.

temos que te arranjar um nome,

Disse para o boneco. Sentado na cama, em frente ao reflexo de um homem nu e de uma criatura extraída à madeira, tentava ganhar algum tempo, para não ter de relatar o encontro, não fosse o convite apenas o produto da sua imaginação.

porque falas no plural?

Rodando a cabeça, a figura sentada ao seu colo fitava-o através de duas órbitas lascadas e já sem cor definida, de tão baças. Ao mesmo tempo, o queixo descaiu um pouco, revelando o que parecia ser uma cavidade sem fundo, ressequida e gretada. Talvez, em tempos, tenha estado vestido de marinheiro, ou com a farda de um colégio imaginado – a roupa que lhe haviam esculpido tinha-se tornado vaga e, sem cor, prestava-se agora a diversas interpretações. Talvez tivesse sido um palhaço.

eu respondo por ti,

Continuou o boneco,

tudo se resume à maneira como tentas escapar à solidão através de obsessões e de vícios e de como essas mesmas obsessões e vícios te deixam ainda mais só.

Deixou-o escorregar do seu colo. Na superfície polida à sua frente, viu com rara nitidez a imagem que a defrontava; não a reconheceu. Na sua cabeça, uma voz familiar fez ecoar a palavra salvação.

Era em redenção que pensava quando percebeu a presença de Cassilda, a seu lado.

deste bem com isto?

Caminharam em silêncio, embrenhando-se na neblina que subia do rio, até se deterem junto de uma loja onde, na montra, um casal de manequins pedia silêncio a quem passava. De perna cruzada e dedo indicador nos lábios, estavam sentados num sofá escarlate de aspecto antigo e usado, que lembrou a Avelino a casa onde crescera. Então, uma súbita neblina, mais espessa e mais da cor da cinza que a do rio, envolveu-o, deixando-lhe ficar uma vertigem quando se dispersou com a mesma furtividade com que chegara. Aquela era uma montra para um passado a que não havia absolutamente qualquer razão para regressar.

esta é a zona da cidade em que o abandono vive, sabias?

Cassilda sorria, por entre o fumo do cigarro que acabara de acender.

eu moro aqui perto.

Apontou sem direcção definida, com o queixo. O sorriso desfez-se e a sua tornou-se dura.

desculpa, estou a ser muito dramática. Dá-me para isto, às vezes. Digo umas coisas, assim muito… não sei… ponho um certo ar e… o que eu queria dizer é que esta parte da cidade, antes de o ser, era tudo areias movediças.

Atirou a beata para o passeio, soltando uma derradeira baforada para o ar.

não achas fascinante a ideia de estarmos a caminhar em cima de um chão guloso, que a qualquer momento nos pode engolir?

O seu rosto iluminou-se.

lembrei-me agora, soubeste da rapariga que foi encontrada morta lá perto da minha loja, naquele terreno baldio? Tinha dado jeito ao assassino que fossem areias movediças.

Arregalando os olhos,

credo, que coisa horrorosa que eu acabei de dizer, não te parece? Coitada da rapariga.

Retido nos manequins, Avelino manteve o silêncio.



e mais umas de Istambul

23 comentários:

Anónimo disse...

Escrita deliciosa. Assim em pequenas garfadas que sabem pela vida mas que nos deixam ainda com fome :)

Anónimo disse...

Just in case...

http://www.escritacriativa.org/

soube ontem que estão abertas incrições para o campeonato nacional de escrita criativa.

Rui disse...

Olá.

Obrigado pela lembrança. Vou espreitar isso, quem sabe.

Se fosse de escrita destrutiva, safava-me melhor (piada minha).

S disse...

Esta Cassilda é uma personagem interessante, estou curiosa com o que vem a seguir...

Alberto Oliveira disse...

... o Avelino não sabe com quem se foi meter. Esta Cassilda tem a escola toda e há muito que deixou as bonecas...
A história tem um ritmo cinzento de tal ordem que um brincalhão profissional é capaz de perder o sorriso até ao Natal.Esperemos que a termines antes que para desgostos verdes já chegam os da tal quadra.

Alberto Oliveira disse...

... por motivos de ordem espiritual, durante esta semana não me encontro visível. Quem me quiser contactar, fale com o ajudante do adjunto do meu secretáro.

Rui disse...

legível,

entrei em contacto com o ajudante do adjunto do teu secretário, mas não consegui falar com ele: tudo o que me pareceu escutar foi o som de feridas a serem lambidas. Não faz mal, encontramo-nos no retiro.

S disse...

hehehe... rui, também não deixas escapar uma. Já pareces uma certa vermelha que eu cá conheço!
:)

Rui disse...

ss,

há que aproveitar enquanto as feridas não são as nossas. enquanto elas saram, uma pitada de sal nas alheias vai servindo de consolo.

ó cruel prazer!


(diz a essa certa vermelha que largue as companhias do lanche e pense na bola)

Rui disse...

elas, as nossas

Arábica disse...

Movediça Cassilda.

:)

Alberto Oliveira disse...

Rui

Os gajos estão a cumprir ordens. Hoje vão à tomada de posse do Leão II*...

*2º lugar for ever.

ss

Noto um certo sorriso cúmplice com os da electricidade...

S disse...

legivel,
foi preciso um certo coelho para me descodificar essa piada...mas enganas-te, não sou simpatizante do 'dito' clube e nem tenho títulos da EDP...infelizmente!
:)

(agora é que o Rui me proíbe aqui a entrada)

Rui disse...

ss,

a entrada neste espaço apenas tem uma característica: está a norte de escassa, de resto, sintam-se à vontade. mi caja de comentários es su caja de comentários.

Alberto Oliveira disse...

ss

Fiquei elucidado... No "Fantasias" acabei agora mesmo umas rimas com um coelho na cartola. Isto há cada coincidência...

Rui

Isso é em espanhol, argentino ou uruguaio? De qualquier muodo mutchas graxias.

Rui disse...

legível,

quando o escrevi, era em paraguaio que estava a pensar...

de nada

S disse...

agora vou afogar-me no moscatel... que vocês hoje deixaram-me a cabeça em água.
:)

Rui disse...

roxo, de preferência


:)

Alberto Oliveira disse...

Rui,

só hoje é que li o e-mail. Tentei telefonar mas já seria tarde.
Mandei pela mesma via resposta positiva.

R. disse...

Gostei da alusão aos vícios como escape e, simultaneamente, prisão da solidão. De facto, há que quebrar algumas correntes do hábito, sob pena de se ficar por muito tempo agrilhoado... ~
Seja como for, as possibilidades que se afiguram para estes dois são múltiplas. Vejamos o que reservam os próximos capítulos (escritos ou imaginados)...

Arábica disse...

Não sei como hei-de fazer para abrir a história da Cacilda e do Avelino ao meio. Mas é urgente um par de patos.

:)

Manuela C. disse...

Não percebi nada da história... mas concordo com o primeiro comentário do Legível... E também consigo perceber imagens muito bonitas na tua escrita...
(À PJ dava imenso jeito um baldio com areias movediças, para solucionar mistérios como, por exemplo, o do caso Joana...)

via disse...

adorei as fotografias de Istambul!