terça-feira, julho 20, 2010

A Festa

Desconhece que o pincel de cerdas densas, planas e arredondadas que tem na mão se chama Fond de Teint, mas sabe bem que permite, como nenhum outro, que uma quantidade exacta de pó seja aplicada no rosto, dando um efeito de pele nua e lisa. Sabe também que a aplicação, para que produza o efeito desejado, deve ser feita do centro para fora, em movimentos circulares.

Inês faz hoje 9 anos e encontra-se na divisão húmida e a cheirar a fritos que, nos dias de jogo, serve de cozinha improvisada ao campo de futebol cinco de um dos muitos Clubes Recreativos da cidade. Está de costas para o espelho que momentos antes colocara no ângulo certo, sustido entre os azulejos bolorentos da parede e a bancada gordurosa, em inox. Uma mala está aberta atrás de si, em cima da bancada. É de cartão e tem mais do dobro da sua idade – mais de setenta, em anos de mala de cartão. Lá dentro, em absoluta desordem, podem ver-se todo o tipo de pincéis, frascos de vários tamanhos e formas, embalagens redondas, quadradas e rectangulares, esponjas, escovas, pinças, vários lápis grossos, tudo numa profusão de cores intensas. Era como se, possuidora de um qualquer antigo segredo sobre como dominar os elementos, aquela rapariga tivesse conseguido tomar posse de vários arco-íris, guardando-os na mala, onde eles, certamente devido ao cuidado distraído no seu manuseamento e transporte, se haviam misturado, espalhando-se por todo o lado, dando mesmo origem a cores e texturas nunca antes observadas. No chão, uma outra mala aguardava a vez de revelar os seus segredos. Era em tudo diferente da outra: enorme, nova, sem sinal dos anos nem do uso.

Sem olhar para trás, Inês vai tirando da mala pincéis, lápis, escovas, um frasco, depois outro, tudo numa sucessão de gestos seguros e lestos. Se, ao olhar alheio, pode parecer que o caos reina na mala, aquelas pequenas mãos desmentem-no, sabendo o sítio de tudo. Em poucos minutos, disfarça as imperfeições e rugas, cobre olheiras, uniformiza o tom das pálpebras, aplica gloss nos lábios e, à volta deles, como que desenha uma segunda boca, muito grosseira e quase sem forma, aplicando generosamente batom de um vermelho muito vivo. Aplica depois sombra azul-escura junto das pestanas, esbatendo em direcção ao exterior, para assim obter um efeito esfumado. Sobre as maçãs do rosto, coloca um nada de blush. Sorri, quando dá aquela parte da tarefa por concluída. Entreabre a mala que está no chão retirando uma cabeleira feita de grandes caracóis da cor do fogo e um disco preto, de feltro que, com uma pancada seca e certeira, transforma num chapéu alto. Veste a cabeleira, ajeitando-a várias vezes e depois, despreocupadamente, coloca a cartola por cima dos caracóis, de lado, sem quase a enfiar na cabeça. Um segundo sorriso surge-lhe nos cantos dos finos lábios, rasgando-se quando, ao se virar para o espelho, a sua obra ganha distância e lhe chega reflectida.

A impaciência juvenil dos convivas entra então pela única janela daquele camarim improvisado. A festa de aniversário já devia ter começado. Não a sua, mas a de uma rapariga, muito provavelmente da sua idade, que não conhece e que nunca mais voltará a ver. É sempre assim e não se importa – aprendeu a não se importar. Até porque depressa mete conversa com toda a gente, conquistando não só os convidados jovens, mas também os seus pais, muito à custa não só do sorriso que naquele momento lhe molda a expressão, como do brilho que, incessantemente, lhe nasce no olhar.

– Está perfeito – diz-lhe o pai, mirando-se ao espelho. – Não sei como consegues.

Ela limita-se a encolher os ombros, vaidosa.

Agachando-se, o pai verifica o conteúdo da mala grande: lenços, cordas, jogos, um baralho de cartas gigante, sacos de pano, argolas, um pequeno trompete, apitos, um ramo de flores de papel, varinhas, muitas outras bugigangas. Erguendo-se, inspira fundo o ressentimento que não consegue deixar de sentir por fazer a filha passar tanto tempo a conhecer novas pessoas, que nunca lhe permite fazer amigos. Conforma-se com o argumento que é a única maneira de passar tempo com ela e ganhar a vida, ao mesmo tempo.

Fechada a mala, pega nela e sai para o recinto desportivo, acenando e cuspindo confetti em todas as direcções. Um bruaá imberbe eleva-se, ensurdecedor. Ouvem-se vivas e palmas. Na cozinha húmida e a cheirar a fritos, a rapariga arruma tudo na pequena mala de cartão, aparentemente, sem critério e sai também. Dois adultos bebem cerveja pela garrafa, despreocupadamente. Ela aproxima-se, sorrindo, e diz:

– Olá, chamo-me Inês e sou a filha do palhaço.





(Lisboa é uma Estrela e a Estrela é um jardim)

18 comentários:

Rui disse...

Este espaço continua em acções de limpeza e higienização.

Obrigado pela paciência.

S disse...

Gostei deste regresso. As tuas histórias já começavam a fazer falta.
:)

S disse...

tens Lisbao escrito em vez de Lisboa...
;)

(também já dei uma 'cuscada' nas tuas fotos, ficam a faltar as outras...)

Rui disse...

Não conheces a maravilhosa cidade de Lisbao? Eu também não. :)

Obrigado.

Patrícia Siciliano disse...

Fico muito feliz que, entre uma limpeza e outra, dês com os costados por aqui e nos conte alguma história.

Obrigada.

Anónimo disse...

Ainda não li, mas já me sinto contente por saber que existe um novo texto :)

Manuela C. disse...

(Não sei como é que podes limpar uma coisinha tão limpa como este espaço, que, aliás, é um espaço super acolhedor, onde se está muito bem!)

A história está o máximo! Eu já estava aqui a pensar com os meus botões que não gosto que garotas pequenas se pintem como senhoritas e, de repente, zás... uma espécie de safanão, como que a dizer que as coisas não são sempre o que parecem, que é preciso alargar horizontes...
Muito lindo este conto, muito terno e encantador.

R. disse...

Muito bonito, Rui. Pude ver a menina, o seu desembaraço, os seus gestos, o seu sorriso... Um "caleidoscópio" de palavras. [A 'manutenção' tem compensado ;)].

via disse...

tive que ler algumas vezes para perceber que se tratava da mesma Inês, parecia pose de mais velha, faz lembrar o Fellini, parabéns!

Plasticine disse...

E o caos da mala talvez seja a única maneira de se organizar no caos de pessoas que por ela passam.

tb disse...

Lisboa uma estrela onde as estrelas são jardins onde os teus olhos vão espraiar.... Gostei das fotos e do conto, tão bem contado.
beijinho

Alberto Oliveira disse...

... há tanto tempo que não ponho os pés num circo que já nem sei o que é um palhaço. Fiquei a saber (pelo teu conto) o que faz a filha dum palhaço.

E mais não acrescento que ainda não estou a cem por certo(?) na blogo-esfera e de palhaçadas já chegam as da primeira jornada.

P. Pato disse...

Voltei de férias e resolvi dar aqui um saltinho.
"Apaixonei-me" pela filha do palhaço.

Obrigada pelo conto. :)

S disse...

E onde estão esses pratos novos?
Deixas aqui o pessoal à fome!
:)

Rui disse...

Olá, olá.

Debati-me ali com o header: ainda não há pratos para servir, há livro de reclamações, e o IVA ainda é o do antigamente. Mas acabou por ficar este. A ver se ponho o avental e meto as mãos aos tachos.

Alberto Oliveira disse...

... "aquilo" ontem é que foi uma festa! Ainda dizem que o futebol já deixou de ser o espectáculo que era, que não há golos, etc, etc.. Gandas maldizentes!
Cá para para mim o Europeu que agora se joga, devia ter sido organizado por Portugal e pela França para deixar as melhores selecções para o fim.
Por falar em fim: o piloto automático tem uma finalidade. A de deixar a defesa portuguesa dormir um bocado de vez em quando. Ontem até se aproveitaram bem do dito cujo.

Rui disse...

se no outro dia foi uma festa, amanhã antevê-se um festival.

abraço esférico

Paula Crespo disse...

Gostei da história. Desta e de outras por onde, entretanto,passei os olhos. Vou passá-los mais vezes, certamente.
Quanto ás operações de limpeza: como não conheci o espaço anteriormente não dou pela diferença; apenas posso dizer que me parece um recanto muito simpático. Parabéns.