quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Quem Mais Ordena

O comando é dele. E não o larga. Nunca. Desde que lhe instalaram em casa um serviço de televisão com Gravador Digital de Vídeo que, mais do que a maneira como vê televisão, foi a sua vida que mudou.

Já não vê emissões em directo. Grava para poder passar à frente aquilo que não lhe interessa, tudo o que já sabe e já viu. Uma hora de noticiário tem agora dez minutos. Publicidade? Algo do passado. Um jogo de futebol deixou de ter intervalo, arremessos de linha lateral, jogadores a serem assistidos no relvado, passes lateralizados no meio campo defensivo; agora, tudo é futebol de ataque, embora continue, as mais das vezes, mal jogado. Noventa minutos de martírio condensados em trinta e cinco minutos de martírio!

Quando tem de ir à casa de banho, leva o comando. Se põe a mesa para o jantar, ao lado da faca, substituiu a colher da sopa pelo comando. Ao deitar, dá as boas noites à mulher e um beijo ao comando, que pernoita na mesa-de-cabeceira.

Ninguém pode tocar no comando sem autorização prévia – que apenas é dada depois de devidamente justificado o uso a dar-lhe. Sem que o confesse a quem quer que seja, foi para não lhe mexerem no comando que acedeu, ao fim de dez anos, a que se comprasse um segundo televisor lá para casa.

No outro dia, no cinema – filme da preferência da mulher –, deu por si com suores frios, um aperto no peito e uma comichão horrível nas pontas dos dedos das mãos. Não por causa das pipocas selvaticamente mastigadas à sua volta, mas por não ter como fazer o casal protagonista da fita deixar-se de lamechices e passar rapidamente à cama e depois ao genérico final. Lamentou as pessoas que não conseguem apreender enredos cinematográficos à velocidade de 2x… ou mesmo de 4x, arte que ele tem vindo a aperfeiçoar sem esforço de maior.

As reuniões de trabalho passa-as a sonhar com o comando, a imaginar colegas, directores e temas em fast forward. Com grande satisfação, descobriu na última reunião que se tiver na mão o comando do ar condicionado, lhe custa menos a passar o tempo – constiparam-se metade dos presentes com as mudanças de temperatura.

Esta manhã acordou eufórico. Tinha descoberto que podia fazer avançar os pesadelos e pausar os sonhos eróticos.

Passou a dormir com o comando debaixo da almofada.



paralelo à cidade



18 comentários:

S disse...

Essa comichão na ponta dos dedos, eu conheço... dá-me quando preciso de fotografar.

;)

Anónimo disse...

Obrigada pelo sorriso =)

Azul disse...

Olá Rui. De repente, este texto mexeu com os meus dedos de psicanalista ortodoxa, do mais ortodoxo que há! Sendo assim, obrigou-me à interpretação clássica dos Meninos com o pénis na mão, em masturbação contínua, para atalhar as frustrações da vidinha que não têm e que, obviamente, não os satisfaz e etc e tal... Veja lá bem o que o raio do serviço Meo ou lá o que é, veio fazer à malta! Qualquer dia já nem é preciso f*****! O comando faz tudo sozinho e é mais do que suficiente para a alegria geral!

Beijocas pa si. Gostei de o ler, como de costume! até breve. Azul.

~pi disse...

belo que dói de névoa s,

[ lisboa a sangue frio,

bem, quanto ao comando, é o comando, há que comandar alguma coisa, avida,

pois não se vê?

quanto ao cinema, então... nem se fala,todos conhecemos a história, é só confirmar, que a paciência tem limites!!





beijo





~

Arábica disse...

Dá também para eternizar os momentos ao rubro do Glorioso e deletar os outros...?

Beijinhos e bom fim de semana :)

S disse...

Ena, cabeçalho novo?
Só eu não tenho coragem de mudar o meu...

Rui disse...

ss,

Não é que o teu esteja a precisar, que está bem assim.

No meu caso, decidi há tempos aproveitar umas partes de fotos que tenho para cabeçalho. Ontem, talvez por causa do bath in blete, mudei.

AGD disse...

... ou então, a velocidade 4x chegou ao cabeçalho.:)

Unknown disse...

A velocidade é aliciante e alucinante.

Condicionar a vida à imagem e ao gadget que a controla, mesmo em ficção, pode ser limitativo, de certa maneira.

Claro que a ironia é um dispositivo indispensável ao nosso quotidiano.

Saudações

via disse...

as novas gerações nascerão com dedos mais fininhos, mais adaptáveis e grandes olhos, de qualquer modo, teclando, clicando,ligando.

papel químico disse...

o comando manda :)
http://photos1.blogger.com/blogger/6007/3271/1600/comando.jpg

Alberto Oliveira disse...

Esse gajo da tua história, por acaso não é o comandante dos Comandos da Amadora?

Agradeço-te a dica para título do meu próximo post "pausar os sonhos eróticos mas tenho de a rejeitar. A nossa comum comentadora Azul é bem capaz de me psicanalizar ortodoxamente e lá se me vai a reputação hard core p´ró maneta.

PS: Que tal o "apoio moral" desta noite? Para o ano é que é: voltamos ao lugar que é nosso por direito próprio. O segundo.

Rui disse...

Legível,

Acho que esses comandos já saíram da Amadora - aquilo agora é só a Academia Militar.

Não te queres meter pelo imenso campo de milho que é o erotismo e, por mim, lamento, que sempre queria ver como descascavas essa maçaroca. Ainda assim, permito-me outra dica: a fábula da Águia e do Lagarto.

E obrigado pelo jeito.

Alberto Oliveira disse...

... ora bem. Já não passo por lá desde o tempo do Neves. Que é como quem diz: parei no tempo da distribuição de milho aos pombos...

Por falar em milho: a última vez que fui ao cinema (o último do Woody Allen)encontrava-se sentado numa cadeira à minha frente um chavalo que deu cabo de dois coisos (não me ocorre o nome daquela cena) de pipocas dos grandes, antes do intervalo. Pensei cá para comigo: se fosse directamente da maçaroca, teria o mesmo ritmo? Daí que não quero fazer figuras tristes...
Creio que essa fábula já não era editada há uns anos largos...

Somos umas botas largas...

Rui disse...

Eu passo lá à porta de quando em vez, que uma pessoa pode sair da Amadora, mas a Amadora não sai da pessoa...

Se voltares a encontrar o chavalo, recomenda-lhe o artigo a que o link ali em baixo vai dar. Está em camone, mas percebe-se bem.


http://www.timesonline.co.uk/tol/life_and_style/health/article7043136.ece

lélé disse...

O conto de cima ainda não entendi (sou de raciocínio lento, muito lento ou parado), mas penso que este captei... Fala-se, também, do TGV, não é verdade? E depois, do AVC, que também é super rápido e, com um bocadinho de sorte, vai-se desta para melhor enquanto o diabo esfrega um olho, o que significa que não vê e, portanto, é uma morte santa... Só por esse motivo, "em busca duma morte santa", é que posso entender a obsessão de andar cada vez mais depressa... Ah, e outra coisa... Como toda a gente gosta muito de sacudir a água do capote, ainda dizemos que o tempo é que voa!...

Rui disse...

Lélé,

Devíamos todos aprender a voar. Cada um à sua maneira.

lélé disse...

Sim, sim... Por algum motivo inventaram os anjos com asas!...