terça-feira, fevereiro 02, 2010

O Milagre

Como sempre acontece, ia nervosamente ao volante quando fui confrontado com o primeiro protesto, de surpresa. Sem nada se ver que explicasse tamanha balbúrdia sonora, tudo era buzinadela mais a intermitência do helicóptero pesado a acompanhar. Seria o Fim dos Tempos anunciado por um coro de claxons cansados e roucos? Cheguei a convencer-me que sim.

Já estava a dar inicio ao processo de conversão rápida às principais religiões (que nunca se sabe o que nos espera no fim daquele níveo túnel), quando me passa à frente dos olhos a Pantera Cor-de-Rosa. E, atrás dela, o Popeye, depois a Branca de Neve (sem os anões), um polvo gigante, um pirata com ar de quem tinha sido pirateado, duas roulotes de colesterol (bifana, courato, hambúrguer e prego), uma de farturas e outra de pipocas, mais uma secção (parte de uma curva apertada) de montanha russa e um carro de bombeiros em perseguição de um barco a remos. Tudo aquilo me começou a parecer familiar e o vago sabor do algodão doce apoderou-se vagamente de mim.

Querem ver que a luz ao fim do túnel é a da Feira Popular?, pensei eu de mim para mim.

Enquanto a totalidade da procissão pesada, atrelada e rebocada, não controlava a rotunda, ali fiquei, no limbo entre o estar acordado e o estar a sonhar. Foi então que A vi. Apesar de lhe conhecer bem o olhar piedoso e a expressão sossegada que, no entanto, parece dizer tu-brinca-mas-um-dia-vais-ver-como-elas-te-mordem, nunca A tinha visto a vir na minha direcção, altiva, poderosa. Atrás da redoma de vidro, junto à oliveira, ninguém imagina (bom, eu nunca tinha imaginado) o impacto que Ela consegue ter. Para mais, junto a si, estava Lúcia do Coração Imaculado, Jesus crucificado e mais algumas santidades. Era de noite e estava nublado, mas os meus olhos foram em direcção ao céu, convencido que o sol iria aparecer e, tal como na naquela manhã de 13 de Outubro de 1917 na Cova da Iria, giraria sobre a minha cabeça. Bem pensado, bem acontecido: um poderoso e frenético jorro de luz branca invadiu-me a viatura. “Padre-Nosso que estás no céu, rogai por mim pecador, agora e na hora da minha… espera aí, é Padre-Nosso ou Pai Nosso”?

As buzinadelas continuavam ensurdecedoras, mas já não vinham dos manifestantes dos carrosséis, que já lá iam à vida deles. Do milagre, nem vislumbre. Atrás de mim, olhar esgazeado e cabeça pendurada na janela do carro, uma automobilista tinha perdido a compostura e, enquanto fazia sinais de luzes, mandou-me avançar e depois à merda.



(a inspiração e a explicação, encontram-na aqui)

12 comentários:

Maria Liberdade disse...

Eu tive o (des)prazer de os ouvir como pano de fundo enquanto estendia roupa...

S disse...

E então?...
É Padre-Nosso ou Pai Nosso?

(Eu não estendia a roupa, mas quis-me parecer que ao sair de uma exposição de fotografia ao som das buzinadelas, o mínimo que podia fazer era registar o momento).

;)

Rui disse...

Aceitam-se esclarecimentos.

Arábica disse...

Padre em castelhano não significa Pai em portugês? Não sei esclarecer. Quiçá é correcto de ambas as formas. E não é à toa que trago o castelhano para o comentário :) está este post à altura de almodovar. :))

Como estava vestida a Santa?

Abraço :)

Rui disse...

arabica,

não viste a Senhora no link? não fui só eu que a vi no protesto (ou procissão).



(a despropósito: lá no caralivro, publiquei a explicação que te estava a dever)

lélé disse...

Eurodisney, Cova da Iria, contos de fadas, milagres... Andar de carro aí por esses lados é perigoso!...

Alberto Oliveira disse...

2 (dois) pontos nos iis:

1 -Padre é pai e pai é padre, embora alguns padres em situações de aperto costumem utilizar a expressão "vai chamar pai a outro".

2 -Via santa, sim senhor. E uma luz(?)iluminou todos os fins de túneis deste país, inundados de descrentes. Também Queiroz se sentiu tão iluminado que afinfou amigavelmente duas peras num pobre jornalista carente de fruta. Se estou a fazer bem as contas, Pepe está à frente da lista (por KO técnico), Sá Pinto e Queiroz empatados No que ao Patrício se refere, a luz banhou-o de tal modo que ficou incandeado. Sorte(?) a dele que amanhã não tem de ir à Luz. Na parte que me toca - por causa das moscas - vou a Fátima, pedir que o David Luis continue a calçar aquela bota.

Arábica disse...

Ai nossa senhora dos túneis de luz nos valha!! :))

Unknown disse...

Gostei da narrativa.

Trata em simultâneo -- Muitíssimo bem -- a questâo dos feirantes de diversão e das suas reivindicações e a alucinação das caravanas, experiência que todos vivemos enquanto crianças, após o desmontar da feira.
O exagero alucinatório está muito bem desenhado e cheio de ironia.

Um abraço

Alberto Oliveira disse...

... o João tinha a lição bem estudada e quanto mais cedo melhor. Ontem o Luis até podia jogar descalço que ninguém dava por nada...

Tens "lá" a tal pergunta.

mixtu disse...

a Senhora...
a procissão...
manifestantes...
num olhar gazeado...

o que não é o teu caso... yayaya

abrazo serrano a caminho de...

Alberto Oliveira disse...

... para me safar do ar gélido que se faz sentir na Lisbia, vim até Liverpool. Aqui sim! um man pode andar na rua que ninguém lhe atira à cara com cenas do género "´tás verde!! é do frio ou da relva escorregadia?" ou "é pá! não há ninguém que te ponha a vista em cima, nunca sais do quarto!"
De resto, turisticamente falando, algumas desilusões: no The Tavern Club só se falava de futebol e quando me preparava para esticar as pernas e dar pão aos esquilos no Goodison Park, foram-me avisando que o sítio era a "residência" de uns tarados que se preparavam para bater nuns ceguinhos que vinham em excursão a desde Alcochete...