segunda-feira, janeiro 18, 2010

Chrome Maxima II 90

Entrou uma única vez numa loja de artigos chineses, há algum tempo já, quando eram ainda novidade. Disseram-lhe que encontraria lá as caixas plásticas fundas, compridas e baratas de que precisava. Queria-as para nelas guardar – e, por fim, depois de muitos anos, finalmente juntar num sítio – as muitas dezenas de cassetes que acumulara na juventude, quando ainda não se sonhava com a possibilidade de armazenar compactamente música em espirais acrílicas ou em suportes digitais. Discos em vinil e cassetes ocupam espaço, um bem escasso, que se paga caro.

BASF, TDK, Maxell, de 90 minutos, principalmente. Música. Muita música. Rock, hard rock, rock progressivo, rock FM, metal, new age, punk, psicadélico, synthpop, electrónica, alguma pop. Gravações péssimas, a maioria, com muito locutor de rádio a surgir inesperadamente, a meio da canção, com publicidade e interferências provocadas por deficiente sintonização. Cassetes-cemitério: de uma época, das rádio-pirata, de noites roufenhas e impregnadas de estática, de uma certa maneira de fazer rádio, de uma forma de sentir música; de um tempo já não recuperável, mas do qual, tinha a certeza, alguns vestígios ainda perduravam nos muitos metros daquelas fitas estafadas e coçadas, à beira do rompimento ou do embrulho suicidário nas ineficientes cabeças dos leitores, razão pela qual há muitos anos as não escutava – também porque não gostava de admitir a si próprio que não queria arriscar perder para sempre o que naqueles invólucros se encerrava da pessoa que ele tinha sido, e que ainda era, porque acreditava convictamente que cada pessoa é o somatório de muitas coisas, sendo uma das parcelas a música que ouve.

Sabia que se seguisse aquelas fitas, seria conduzido a recantos do seu espírito que apenas elas sabiam localizar e queria preservar isso. Talvez um dia houvesse uma boa razão para regressar a esse labirinto.


Certa vez, comprou uma aparelhagem sonora para melhor condizer com a nova mobília e decoração do seu quarto – que baptizou de “existencialista pós-moderna”. Tarde demais percebeu que, ao se ter visto livre da antiga aparelhagem, tinha perdido a última possibilidade de resgatar o conteúdo das cassetes ao pó do esquecimento. Tal como os computadores já não se fabricam com drive de disquetes, também os actuais sistemas de som já se esqueceram dos suportes em banda magnética.

Não pensou muito nisso. Achou por bem convencer-se que era até melhor não haver mais como cair na tentação de perder tempo a recordar uma altura da sua vida que, vistas friamente as coisas, nem era particularmente merecedora de revisitação, por escassez de acontecimentos meritórios. E os anos foram avançando, na sua habitual tranquilidade insatisfeita.

Até ao dia em que mudou de casa.


Mudar de casa, inevitavelmente, e por mais cuidados preventivos que se tenha, implica lidar com cotão. Implica sacudir a memória. E nada nos prepara para aqueles objectos há muito esquecidos, mas que continuam a habitar o fundo das gavetas e das prateleiras que, sem aviso prévio, se libertam da clausura para nos confrontar, por vezes, com as nossas fragilidades.

À medida que ia esvaziando as gavetas menos frequentadas, enchia, quase na mesma proporção, sacos de lixo. Tinha prometido a si próprio que casa nova tinha de ser sinónimo de vida nova. Nada de carregar pesos mortos. Ao mesmo tempo que se multiplicavam os sacos de lixo, colunas de cassetes cresciam em altura e formavam já uma pequena muralha, o que não deixava de o surpreender: tinha perdido a noção da quantidade que armazenara ao longo dos anos. Como ver-se livre delas não era uma opção, valeram-lhe as caixas baratas, espaçosas e com tampa, que encontrou na loja de artigos chineses; ideais para a função.

Ao despejar a última gaveta, não só percebeu que não estava livre de percorrer o enigmático caminho em direcção ao passado que as suas cassetes encerravam, como teve a certeza que o iria caminhar mais cedo do que tarde. Escapando incólume ao tempo, por baixo de uns blocos de papel reciclado que lhe tinham servido para reciclar alguns poemas imberbes, estava o seu primeiro walkman.

Sem pressa, deixou os sentimentos saudosistas – que lhe custavam sempre a suportar por lhe parecerem lamechas demais para alguém com a pele grossa como ele – para uma altura em que não tivesse mais que fazer. Talvez até se esquecesse de toda aquela palermice.


Mas não esqueceu. E foi sem drama que, num dia em que o vento trazia gordas gotas de chuva em torvelinho, resolveu ir dar uma volta ao som dessa banda sonora antiga.

Aconchegava-se a si próprio nos dias húmidos e cinzentos e encontrava conforto nisso. Gostava de passear nos dias assim. Vestiu o impermeável com capuz, as galochas verde-sapo, certificou-se que tinha nos bolsos algumas cassetes e saiu de casa. Já na rua, acabou por dar alguma solenidade ao acto de colocar os auscultadores nos ouvidos e de carregar no Play, tal a rigidez de gestos e a compostura com que fez tudo. No walkman, uma das cassetes que recordava ser das mais emblemáticas.


O som de violinos invadiu-o, brevemente, logo acompanhado por uma voz feminina tão ausente mas tão familiar, num sussurro mal contido. “the stars that shine and the stars that shrink, in the face of stagnation, the water runs before your eyes…”

Caminhava pela chuva distraído de tudo o que o rodeava. Ainda sabia a letra. Arriscou um verso ou dois, em voz alta, mas não conseguiu acompanhar o frenesim em que a música se havia tornado. Afinal, não se lembrava das palavras todas, somente de algumas frases. “russian roulette”… “skating bullets on angel dust”… “dazzle… it’s a glittering prize”. Todo ele sorria enquanto repetia incessantemente o refrão, acompanhando com um movimento cadenciado da cabeça, quando sentiu o que deve sentir alguém que é atropelado por um veículo a alta velocidade. O seu rosto foi rasgado por um esgar de incompreensão.

“… pára a bola no peito, e atrasa para Ricardo Gomes que levanta a cabeça e lateraliza para Veloso… 52 minutos de jogo e o Benfica vai batendo o Steaua de Bucareste por duas bolas a zero. É Diamantino quem tem agora a bola e…” Passou a fita para a frente. “… o barulho é ensurdecedor, nas bancadas os adeptos abraçam-se… vejo Toni a ser abraçado por Mozer, Rui Águas…” virou para o lado B… experimentou outra cassete… experimentou todas as cassetes, avançando as fitas, escutando aleatoriamente as gravações.

O dano não era físico, mas sentia o conjunto das suas faculdades intelectuais seriamente danificado. Queria racionalizar a experiência a que tinha sido sujeito nos últimos minutos, mas nenhuma consideração coerente lhe ocorreu. Estava sentado, cabisbaixo, num banco de jardim. Continuava a chover. Ninguém se encontrava por perto, caso contrário teria por certo pedido à primeira pessoa que por ali passasse que lhe confirmasse se eram realmente relatos de jogos do Benfica e da Selecção, o que estava contido naquelas gravações.


– Porque é que nunca disseste nada? – sentado à sua frente, o irmão olhava para o lado, enquanto tamborilava nervosamente os dedos no tampo da mesa. Depois, encolheu os ombros e comprimiu os lábios. Ficou assim alguns segundos.

– Não havia razão nenhuma para te ter contado. Era puto, sei lá…

– Mas todas as cassetes? Relatos de futebol?

– Todas, que exagero – não viu, mas sentiu o olhar do irmão mais velho a dardejar na sua direcção. – Foram muitas, isso é verdade.

– São imensas horas!

– Foram imensos anos.

Fez-se silêncio durante algum tempo.

– Tens a mínima noção do que aquilo representava… do significado… das recordações… olha, esquece...

O irmão não tinha noção nem percebia o porquê daquele drama, tanto tempo depois. Esquecer era tudo o que mais queria.

16 comentários:

S disse...

Ainda bem que não tenho um imão mais novo... ou talvez não... há coisas que deviam ficar apenas na memória.

hazey jane disse...

ainda as tenho por aí. guardei-as religiosamente durante tanto tempo, e principalmente com tanto cuidado. eram difíceis de arrumar. nenhum carpinteiro ou designer tinha bem a noção da importãncia delas. ou pelo menos não os que entraram em minha casa. ficavam empilhadas, às vezes deitaditas de lado. por vezes ficavam umas para trás e outras para a frente (eram fundos os quadradinho, e muitas elas). tantas com os locutores da rádio a interferir. outras tesouros de pedacinhos colados por mãos atentas e amigas, feitas em muito tempo e à custa de muito rec. tantas vezes para a frente e para trás para perceber bem a letra daquele pedacinho... lembro-me bem do barulho que fazem quando batem umas nas outras. da fragilidade da fita que me fazia ter tanto medo por elas. oh... recordação boa...

lélé disse...

"Ó pai, o que é o comunismo?"
"Anda come e cala-te!"

Ou então, "o que é meu é meu e o que é teu é nosso"...

Em qual das duas se enquadraria o irmão?

Por acaso, também gostava de encontrar o "walkman", que usava para adormecer... que, também por acaso, era um bom pedregulho, mas funcionava bem...

P disse...

Gostei! Vou passar a passar por aqui.
E obrigado pela visita. Volte sempre que quiser.

Alberto Oliveira disse...

... esquecer tudo era o que mais queria que não lhe saia da cabeça como é que se fez àquela bola com o pé que tinha mais à mão e nem a cabeça lhe valeu de nada. Desalentado pelo efeito que o esférico tomou, limitou-se a seguir-lhe o percurso até entrar na baliza à sua guarda. O que se passou a seguir - do final do jogo, do balneário,do caminho até casa - não se lembra de nada rigorosamente. A primeira memória, é a do gesto automático de ligar o gravador de chamadas e de escutar um coro de vozes que mais pareciam um rugido «Liedson resolveu! Liedson resolveu!»

Eyes wide open disse...

Também ainda as tenho :) Quando me mudei, olhei para elas e arranjei-lhes uma caixinha ikea para dormirem descansaditas. Fizeste-me lembrar o dia em que, devia eu ter para aí uns 14, 15 anos (no século passado, portanto) e o meu pai me ofereceu um aparelhagem novinha como prenda de Natal. Fomos ao Palmeiras Shopping, e o dono da loja (um tipo novo, 30 anos talvez,)ao mostrar-me as aparelhagens que tinham, proferiu a seguinte frase: "Ó menina, não vale a pena dar um dinheirão por uma aparelhagem com leitor de CD's. É que os CD's são uma coisa tão cara que jamais vão conseguir ganhar mercado ou competir com o vinil...". Ou seja, Alcochete, jamais...

*

(bom fds)

via disse...

só me ocorre dizer e gostei do texto, que por mais que tentemos guardar as memórias a vida, nas suas múltiplas faces, encarrega-se de as apagar, as que permanecem não precisam de cassetes. racionalmente claro, emocionalmente é doloroso perder testemunhos.

Maria Liberdade disse...

Inspirou-me sorrisos e recordações... lembrei-me das minhas caixas compradas no já não existente Carrefour e que serviram para temperar vários kilos de cabrito no primeiro ano em que fiz o Natal na minha casa.

Lembrei-me de como, passado o evento, se transformaram em caixas de arrumação de cassetes. E porque a arrumação na minha primeira casa era efectivamente escassa, ficaram depositadas de baixo da cama.

Tendo dado muito jeito para a colocação dos pés aquando da amamentação do meu primeiro filho, ao ponto de uma tampa se partir.

Das cassetes guardo a saudade de saber ainda quem me ofereceu ou gravou cada uma delas e de ter algures na minha casa de campo umas quantas gravadas dos telefones toca e afins, muitas com a fita colada com fita cola por terem quebrado...

E digo-te mais cheguei a ter um daqueles de bobine...

Arábica disse...

Rui, não sei se percebeste -ao escrever- os quantos contigo se iam sentir, sentar, identificar e todas essas análises pós modernas sobre o olhar -desconfiado- dos que fomos...que música falaria desses que somos nós? que crises existenciais se guardariam -anónimas e invisiveis aos olhares dos irmãos, dos pais, das mães- nas fitas castanhas acinzentadas que corriam, percorriam o nosso tempo? Tenho o primeiro gravador de música, dos antigos, de bobines largas e amareladas de tempo e pó, aqui ao meu lado. Não funciona. Mas não faz mal. Sei que algures entre o primeiro minuto e o último, se guardam fragmentos dos primeiros doze ou treze anos da minha vida.
No silêncio do presente, às vezes fecho os olhos e julgo ainda ouvir o som seco da patilha do stop.

Rebobine-se, de quando em vez, a vida :)

Gostei muito de te ler.
Beijos

Cassandra disse...

Gostei muito. Também gastei as almofadas do meu primeiro walkman. Ainda guardo algumas cassetes e vinis religiosamente... mas são poucos. Escreves muito, muito bem.
Deixa lá... ao menos eram relatos do Benfica ;).

Rui disse...

À Cassandra e a todos,

É este ano, é este ano!!


E obrigado.

~pi disse...

ensarilhei-me aqui,

memorizei as cores de cor

enrosquei-me nas letras

e por fim,

a dor meci~

revolvida

estancada e suturada

uma ferida

de neve: quase, quase inexistente agora

[ arde-casa-caixa

leve leve

leve,,,





~

mixtu disse...

tenho cá por casas algumas dessas cosas...
o que vale é que não tenho nenhum irmão para me moer o juízo...
yayya

abrazo serrano

Alberto Oliveira disse...

Ao Rui:

É este ano que vais finalmente fazer a tal viagem ao Alasca? Ou comprar aquela casa no monte alentejano que tens debaixo d´olho há montes de tempo?

Rui disse...

Legível:

Ao Alasca ainda não, mais tarde, quando me apetecer cruzeiros. Nem monte alentejano - quem me dera. Tenho gostos/desejos mais simples: lá para Maio a ver se subo às costas do Marquês.

Leonor disse...

memórias e identidades perdidas é do que mais se apanha com uma mudançazinha de casa... e para quem não é capaz de deitar nada fora, a coisa fica preta...

mas às vezes os irmãos encarregam-se dessas miudezas... (e eu tenho 4, sei bem do que falo)

ps - eu votava no Alasca... se é para sair, então que seja para longe!

Boa semana!