quarta-feira, janeiro 14, 2009

Avenidas Velhas (8)

Sentiu que estava descomposto, que a camisa lhe saía das calças e que o casaco não lhe assentava bem nos ombros. Instintivamente, fez algo que nunca antes tinha feito perante outros: levou a mão à braguilha, para confirmar que estava fechada. O sangue afluiu-lhe à cabeça, como se tivesse sido injectado do exterior. Ao mesmo tempo, um intenso calor envolveu todo o seu corpo. Tomando consciência do despudor seu acto, procurou refúgio atrás do quiosque abandonado, junto da igreja. Necessitava como nunca de um momento só para si, imediatamente, e ir para casa não era opção. A vizinha Jacinta jamais o poderia ver naquele estado de confusão.

Preparava-se para respirar fundo, na protecção daquela gaiola esquecida em plena cidade, quando deu de caras com uma mulher de idade, imóvel, atrás do quiosque. Vestia, a despropósito para a altura do ano, uma gabardine que já perdera a cor e uma boina vermelha, de lã. Calçava umas galochas da cor dos limões que não são amarelos nem verdes. Surpreendido, o professor hesitou sobre o que fazer. Deu dois passos à frente, parou e depois rodou sobre si próprio, como que à procura de uma saída de emergência da Praça de Londres. Reparou então que uma ténue nuvem de fumo se elevava de um dos lados da mulher, subindo até à altura dos ombros dela e desaparecendo em seguida.

Ela olhava-o de lado, sobrancelhas franzidas, com uma expressão dura, que lhe acentuava as rugas e os sulcos que lhe percorriam as faces, como meridianos. A mensagem era clara e ele percebeu-a: estava a invadir propriedade privada.

O professor pareceu encontrar a saída nuns degraus que, um pouco mais à frente, se afundavam no passeio – o acesso ao parque de estacionamento subterrâneo – e tomou a sua direcção. Deteve-se antes de os alcançar. Retirou um lenço do bolso do casaco e limpou as gostas de suor que se acumulavam na testa. Passou-o em seguida pelo rosto e olhou para trás. Como uma figura de cera rude, em exposição, a mulher permanecia imóvel, com o olhar em cima dele, a enxotá-lo dali.

Percebeu-a indigente, sem-abrigo. Quis vê-la melhor e voltou-se, mas ela tinha desaparecido. Quem lá estava agora era ele, difuso, imperfeito, abandonado, nos vidros imundos do quiosque. O reflexo interpelou-o.

– Tens medo do quê, de quem? Porque te escondes?

Começou a responder.

– De também eu ser como essa mulher, de…

Calou-se.

A nuvem de fumo tinha voltado. Saía de um sujo e enferrujado Termo, decorado com pequenos quadrados que, em tempos, tinham sido vermelhos e pretos. A mulher e o quiosque faziam outra vez companhia um ao outro. Ela já não olhava para ele. Servia-se do que seria um chá, ou talvez café.

Ficou ali algum tempo. A sombra projectada pela igreja tinha-o absorvido e a mulher seguido o seu caminho. Atravessou novamente a praça e dirigiu-se ao caixote do lixo preso ao poste de iluminação, junto da Mexicana. Sentia-se estranhamente confiante – o suficiente para não se importar que o vissem a remexer no lixo. Espreitou pela abertura e viu o papel. Por sorte, uma casca de banana tinha-o evitado por pouco. Retirou-o o colocou-o no bolso, ainda amarrotado. Colocou-se então, hirto, ao lado do poste, certificando-se que o seu ombro direito estava paralelo a ele. Depois de uns segundos em que permaneceu imóvel, começou a descer a Rua Guerra Junqueiro.

Não é fácil contar enquanto se caminha. Como já antes sucedera, teve que fazer um esforço suplementar de concentração para não se baralhar na contagem. Queria dar o ar mais natural possível ao passeio; que aquele fosse apenas mais um, mas a verdade é que se preocupava a cada passo que dava – este foi muito longo… este demasiado curto?! – e isso distraía-o e baralhava-lhe a sequência. Quando sentiu que estava prestes a perder o rumo da contagem, parou. Retirou a folha do bolso, alisou-a o melhor que conseguiu e, com a Mont Blanc que sempre trás consigo, escreveu três algarismos no canto inferior esquerdo da página. Procurou acalmar-se. Libertar o espírito de todos os pensamentos, pelo menos, até chegar ao fundo da rua.

Havia muitas pessoas na rua, principalmente ali, junto à Zara. Reparou que a maioria eram mulheres e que quase todas transportavam, para além da sacramental mala a tiracolo, um saco com compras. Um grupo de ciganas aproveitava a concentração feminina naqueles metros de calçada, para apregoar em surdina malas e carteiras Louis Vuitton. Verdadeiras, menina; isto veio da França, de umas caixas que caíram de um camião deles; acredite, menina, isto é de qualidade, ora apalpe.

O professor lembrou-se de uma conversa que escutara, um dia, na sala de professores: que os ciganos tinham um tal pavor a sapos e rãs, que havia lojas a colocar nas montras e nas portas, imagens dos batráquios, com o objectivo de afugentar a indesejada venda ambulante das ciganas. Fazia aqui falta, considerou.

Uma voz sumida e atrapalhada pelo catarro, chegou-lhe pelas costas. Um homem muito magro e torto, encostado a uma muleta, olhava para ele. A íris dos seus olhos não tinha cor.

– É para comer, acredite – só então se apercebeu que o homem tinha a mão estendida e, apenas num segundo momento, que a mão se estendia na sua direcção.

– Peço perdão, fala comigo?

– Qualquer coisinha. Pode ser a moeda mais pequena.

– Queira desculpar-me, mas não tenho nada para lhe dar.

O outro não arredou pé.

– Por caridade – disse, acentuando o tom de súplica.

O professor deu um passo à frente e depois recuou o mesmo passo. Queria sair dali, mas não se sentiu capaz de reiniciar a contagem. Tinha parado para se concentrar e não o conseguira ainda. Virou costas e nada disse. O pedinte deu um passo ao lado, na direcção de uma idosa que, desafiando o relativo calor daquele final da tarde, subia a rua dentro de um casaco de peles. Os dois grandes sacos de papel que transportava faziam-na avançar com dificuldade.

– A senhora dê-me qualquer coisinha para comer…

– Vá importunar outra. Deixe-me passar! – atirou-lhe ela com voz esganiçada e sem deter o passo.

– Isto está cada vez mais difícil – disse o aleijado para o homem que estava sentado no degrau que dá acesso a uma instalação eléctrica, entre as duas portas da Zara. À sua frente, no passeio, tinha estendido em cima de um plástico, vários livros. Sem esperar pela resposta, o pedinte colocou-se à frente de duas senhoras que tinham abusado da maquilhagem.

– Boa tarde minhas caras senhoras, queria pedir-vos…

Por esta altura, o professor tinha retomado o passo, rua abaixo.

Duzentos e oitenta e dois, duzentos e oitenta e três, duzentos e oitenta e quatro…

12 comentários:

Arábica disse...

Rui,

realmente tu és mestre em surpreender-nos...tu e o professor, pela rua abaixo, duzentos e oitenta cinco, duzentos e oitenta e seis... :)


E isto realmente, está cada vez mais dificil!

Um abraço

Devaneante disse...

É curioso já algumas vezes dei por mim a contar passos...

Onde será que a contagem vai terminar?...

Maria Liberdade disse...

Será que na contagem se esbarra com o recém encontrado escritor que procura nos outros, algo que acrescenta em si. Ou segue o seu mapa, para lhe encontrar o segredo?

Arábica disse...

Rui

já lá deixei as respostas, a todas as pertinentes questões sobre sonhos.

:))


Beijos

lélé disse...

Afinal, diz-se que, e parece não ser mentira, de génio e de louco todos temos um pouco... Depois, é claro, há alguns que abusam!...
Ao ler esta parte do conto não consegui deixar de fazer uma associação com o filme "Melhor é impossível"!

Barroca Louca disse...

Já tinha saudades de te ler.
Muito bom mesmo.

Paulo Tomás Neves disse...

Vim ver, li, gostei, fiquei cliente, vou voltar :-)
Bom fim-de-semana

JPD disse...

Olá Rui

Gostei do texto pelas seguintes razões:

- O cotraste entre o professor alheado e sobressaltado 1º/ com as calças abertas; sem sentido prático, viu-se "grego" para o gesto simples de as fechar; 2º/ o contexto: pessoas muito pobres e outras hedonistas a consumir frívolamente; 3º/ os alheamentos: o do professor sem ligar à terra; a da mendiga junto ao quiosque irremediavelmente miserável.

- Bem escrito

Se alguma música se pudess ouvir, haveria de ser «Ruas da minha cidade/...»

Um abraço

~pi disse...

sinceramente esperei que

em qualquer momento

caísse para trás com um

avc

(ou outras letras quaisquer,,,

mortais.





beijo e saudades :)





~

Eyes wide open disse...

:) hhhmmm cheira-me que estiveste sentado na esplanado do Surf a desenhar esta cena... para a próxima anda mais uns passinhos e vai provar uns maravilhosos bolinhos ao Astro :)


*

Alberto Oliveira disse...

"... duzentos e oitenta e cinco, duzentos e oitenta e seis...


... oitocentos e noventa e sete!" Tinha chegado junto da Fonte Luminosa e a água a correr deu-lhe uma vontade louca de urinar. Deu graças por ter a braguilha aberta...

~pi disse...

...a contar mais um pouco,

a-trein-ar,



beijo




~