quinta-feira, novembro 20, 2008

Avenidas Velhas (6)

Aceitara de bom grado, juntamente com o convite para director da Faculdade de Letras, o pedido para ser regente de uma cadeira. Bem vistas as coisas, dar aulas era o que melhor sabia fazer. Adelaide, a sua assistente, sempre atarefada com coisas mil, sempre assoberbada com papéis e pastas, havia-lhe deixado, certa manhã, uma série de testes por si corrigidos e cujas notas o professor deveria validar. Ao abrir a pasta, no primeiro teste, o professor encontrou um post-it: “para prof fogg ver”. Adelaide tinha sido a sua aluna mais brilhante e convidara-a para sua colaboradora, ao regressar à Faculdade, quando soube que estava desempregada, a sobreviver dos biscates que, muitas vezes, os licenciados – e alguns mestres e doutorados – em Línguas Literaturas e Culturas (entre outros) vivem: traduções, revisão de texto, autores-fantasma. Confiava plenamente nela e nas suas avaliações dos testes, que sabia serem criteriosas e justas, ainda assim, fazia questão de dar uma vista de olhos por alguns, para se inteirar do valor das turmas. Era isso que estava a fazer quando a porta do seu gabinete se abriu de rompante, sendo projectada por cima do batente. Foi exercida tal força sobre a porta, que o puxador de dentro fez uma moça na parede. Ofegante e muito vermelha, Adelaide estava mais ruiva que nunca, enquanto procurava palavras. Sorriu um sorriso fugidio e rápido, antes de conseguir falar.

– Já vi que o professor já viu…

Ele respondeu-lhe que não havia razão para se preocupar. Ela explicou que não foi por mal. Ele anuiu e disse que até compreendia que o achassem emproado e um pouco snob. Ela falou dos muitos papéis com que anda sempre atrás, da necessidade de se organizar melhor. Ele referiu que não podia concordar com isso de o acharem salvador do que quer que fosse, que só com muito trabalho as coisas se faziam. Ela falou do imenso trabalho que fazia em casa, fora de horas, a rever e passar para computador, textos alheios. Ele afirmou, convictamente, que não era nenhum D. Sebastião, que nesse aspecto, a alcunha não aderia. Ela começou a falar do maior cuidado com que ia passar a encarar o trabalho na faculdade, mas interrompeu o raciocínio a meio.

– D. Sebastião?

– Não sou, assevero-lhe. Logo eu, que nos dias de nevoeiro fico em casa, a ler.

Adelaide quase riu, quando percebeu o significado que o professor tinha atribuído à sua alcunha. E depois falou-lhe em Phileas Fogg e naquilo em que se assemelhavam. O professor corou, primeiro, e depois foi ficando cada vez mais pálido, à medida que Adelaide, medindo as palavras o melhor que foi capaz, falava.

– … por exemplo, o professor dá sempre 37 passos desde a porta do gabinete até à sala de aula, 389 até à reitoria, bebe sempre o café exactamente à mesma hora, e mexe o açúcar seis vezes no sentido nos ponteiros do relógio e depois seis vezes ao contrário… podia dar-lhe mais alguns exemplos, mas… perceba, não é por mal, não é uma alcunha maldosa, antes pelo contrário, é com carinho que o professor é assim tratado por nós e até por outros profe… – calou-se, embaraçada com mais esta revelação.

– Sim, eu já sei que há professores a chamar-me isso. O que eu não entendo… como é que… mas vocês dão-se ao trabalho de contar… de me seguir?

– Agora já não! isto é… não, foi só ao principio. Alguém reparou e depois, durante uns tempos… só para confirmar. Houve mesmo apostas feitas… er…

– Apostas?!

– Pois… sim, do tipo, apostar que em determinado dia dava passos a mais, ou a menos. Cada passo valia um tanto. Coisas assim.

– Apostas a dinheiro?

– Sim. Mas foi por pouco tempo, porque começou a haver alunos que se atravessavam à sua frente de propósito, para o fazer desviar do caminho e depois havia discussões…

Continuava de pé, perante o tríptico, agora de cabeça baixa e olhos cerrados. Tinha os braços flectidos e os dedos de ambas as mãos entrecruzados, junto ao peito, enquanto murmurava a Oração de Thomas Merton. Ao terminar, benzeu-se. Sentia-se francamente melhor, quando rodou nos calcanhares para se ir embora. Surpreendido, deu por si a meio do altar e, ao levantar o olhar, sentiu um choque: perante si, espalhadas pelos bancos da assembleia, várias senhoras de idade estavam ajoelhadas, parecendo rezar. Todas olhavam para ele, não escondendo um misto de curiosidade e incredulidade nas expressões. Atrapalhado, quis sair dali depressa. Recuou alguns passos e foi bater em algo, que se desequilibrou. Na tentativa de impedir a sua queda, o professor virou-se por instinto e agarrou em algo que não identificou imediatamente. Deu então por si cara a cara com um homem triste, semi-nu, de cabelo preto, olhos pretos, corpo preto e muito frio ao toque; tinha uma expressão sofrida, de dor imensa, mas o olhar, contrastante, era firme e decidido, como se não quisesse estar noutro lugar. Segurava uma cruz alta e pesada, em ferro forjado preto, em que, particularmente alquebrado, um Jesus da mesma cor, estava crucificado. Teve que apelar a todas as suas forças para o não deixar cair.

Todas as senhoras vinham já na sua direcção quando, por fim, conseguiu endireitar a cruz e o crucificado. Em passo incerto e com as pernas a tremer, passou por elas o mais depressa que lhe foi possível, não escutando sequer os comentários que faziam. A sua cabeça era um turbilhão e não conseguia pensar. O coração dava a sensação de lhe escapar para a garganta. Na rua, enquanto descia os degraus do adro, reparou num carro funerário que acabava de estacionar junto à entrada de uma das capelas mortuárias. O condutor saiu e foi juntar-se a um grupo de homens impecavelmente fardados de cinzento, que falavam alto e riam. Quis afastar-se depressa, mas as pernas não lhe obedeceram. Era como se estivesse a carregar a cruz, ainda.



Boomp3.com

15 comentários:

Maria Liberdade disse...

És um senhor a contar histórias...

Alberto Oliveira disse...

... há coisas do diabo (seja cego, surdo e mudo!). Pois não é que tenho na cabeça há um ror de tempo os tópicos de um texto onde o principal personagem é um professor cruxificado?! mas quando chegava aos finalmentes literários a coisa não andava nem desandava? Perguntei-me algumas vezes o porquê de tais dificuldades mas não havia resposta que me esclarecesse. Hoje ao ler este texto, percebi. Faltava-me o carro funerário e os gatos pingados. Porque na minha história, eu pretendia à viva força que Pilatos fosse um gajo que detestava lavar as mãos e que os centuriões romanos calçavam sapatos da Nike. Obrigado Rui por me ajudares a ver.

Legível.

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É fantástico observar a ginástica que certos tipos fazem para deixarem comentários enormes que expremidos não vertem líquido algum. Há pala deles, ninguém beberia sumo de laranja natural...

Alberto Oliveira (d´óculos escuros)

~pi disse...

mas que pesadelo!

e ainda por cima sem retorno

nem revisão possível

- que as pernas já não

obedecem...aai...

vi um filme que podia ter sido retirado daqui, infelizmente não me ocorre o nome,



~

Alberto Oliveira disse...

... eu ajudo pi: era "O Paralítico de Notre Dame".

Arábica disse...

Há cruzes nascidas para serem deixadas ao abandono do tempo...ainda assim, já todos reparamos, que nos tempos de crise que correm, há poucas disponiveis :)


Beijo, bom fim de semana

lélé disse...

Afinal, às pessoas mais previsíveis e rigidamente metódicas podem e acontecem exactamente os mesmos imprevistos que àquelas outras, que passam a vida a tentar ser diferentes... O sr Fogg não pode ficar triste por ser assim! Se estivesse constantemente a mudar, seria, na mesma, uma maneira de ser sempre assim!...

Devaneante disse...

Isto está cada vez mais interessante!...

Eyes wide open disse...

Como hoje voltei a ligar a lareira, lembrei-me de vir ver o que era feito destes senhores... e desta vez quem fica congelada sou eu... em suspense pelo desenrolar desta tua história :)

... tadito do professor.


(asterisco)

dona tela disse...

Venha conhecer os meus tios.

Muito obrigada pela atenção.

Leonor disse...

número de passos, sítio onde se põe os pés, desvios, contrariedades ... o que é necessário para, todos os dias, se atingir o destino!

Lyra disse...

Diante de alguém que constrói imagens e escreve tão bem, tem-se a sensação de que as coisas que permaneceram escondidas no caos emergem…

Decididamente gosto muito de te ler!

Um excelente fim-de-semana para ti.

Beijinhos e até breve.


;O)

Lyra

Arábica disse...

Passo para deixar um abraço


:)

Eyes wide open disse...

Caugh caugh caugh... e um postzito, não?!?!


;)


*

Desconhecida disse...

Continuo a gostar imenso das tuas histórias.

Um bom ano para ti.

Um beijinho

APC disse...

Extraordinária e muito bem posta em cena, a passagem das apostas!

E essa fuga da personagem para o próximo episódio, deixa-me desgostosa por saber que hoje já só terei mais um para ler. Vou lê-lo devagarinho, que é pata durar!

:-)