segunda-feira, novembro 10, 2008

Avenidas Velhas (5)

A criança apareceu-lhe descalça, envergando uma túnica, que mais não era que um trapo grande. Trazia uma romã, que lhe estendeu. Ele não aceitou logo, surpreendido com a oferenda. O Menino Jesus – pois só podia ser ele, aquela criança –, disse-lhe: Granada1 será a tua cruz.

O professor observava a cena de pé, junto ao altar, com as mãos atrás das costas, como o homem a quem a criança interpelara. Conhecia resumidamente a vida de João de Deus – o nascimento em Montemor-o-Novo, em 1495; a ida para Espanha, onde foi pastor, soldado e vendedor de livros; a conversão pela palavra do Beato João d’ Ávila; o envio para um manicómio, onde o tentaram “curar” através do chicote; a dedicação aos pobres; a morte aos 55 anos –, mas há tantos anos a frequentar a igreja com o seu nome, nunca antes tinha prestado genuína atenção aos painéis que, atrás do altar, ilustram os momentos fundamentais da vida do santo.

Havia quebrado a sua rotina das tardes de sábado – descer a rua Guerra Junqueiro, demorar-se exactamente cinco minutos junto à entrada do Metro da Alameda e voltar para trás, pelo mesmo caminho – na firme convicção de ir para casa. É como se fosse um dia de intempérie, paciência, suspirou. Ainda atravessou parte da Praça de Londres mas, ao ver que a vizinha Jacinta estava à porta da loja a mudar a disposição de alguns vasos, deteve-se, ficando muito direito na sua aflição de decidir rapidamente o que fazer. Percebeu que ela não deixaria de estranhar o seu inusitado regresso a casa e que não resistiria a perguntar-lhe qual a razão – o que considerava ser uma violação intolerável da sua privacidade. Arrepiou caminho e atravessou para o lado oposto da praça. Sem conseguir tomar uma decisão sobre que direcção tomar, subiu os degraus da igreja, empurrou uma das portas, genuflectiu e benzeu-se.

Uma imensidão de envelopes para recolha de donativos e pequenos recortes coloridos com uma oração haviam sido espalhados pelos bancos, dando um aspecto peculiar à assembleia, que estava despojada de fiéis. Olhou em redor e tossicou. Apenas o eco lhe respondeu, tossicando. A solidão em que se encontrou, fê-lo avançar, pela primeira vez, até ao tríptico.

PER CHRISTUM CUM CRISTO ET IN CRISTO.

Uma teia de aranha sustinha-se entre os dois primeiros painéis. Um andaime salpicado de tinta e cimento estava encostado a uma das paredes da nave lateral direita, a seguir ao confessionário. Duas velas apagadas, ao lado do Santíssimo, contrastavam com dez acesas. O menino que segurava a romã. A vida de João de Deus. Pormenores.

Reparava agora naquilo em que antes nunca tinha reparado. Reflectia sobre o que nunca tinha reflectido. Apesar da crescente sensação de angústia, não conseguia retirar os olhos da romã, na mão da criança.

Desde o descuido da sua assistente na Faculdade que não conseguia deixar de pensar naquilo que ele era e naquilo que os outros julgavam que ele era.


* * *

Oferecendo a retaguarda ao sol, como se estivesse a ser impulsionado pela sua luz, contornava lentamente as árvores do separador central da Avenida de Roma. Observava o vulto difuso que, à sua frente, rastejando pela calçada, lhe adivinhava os movimentos.

Quando ficou viúvo, tinha sido a caminhar e a dormir que passara o tempo. Nos primeiros meses, a cada noite, sonhava sonhos maiores; cada vez mais inquietos, cada vez mais terríveis e mais esgotantes. De dia, sentia necessidade de fugir das memórias da noite e ia para a rua andar, a cada dia, uns passos mais. Até que num dia de Maio, saiu antes de o sol nascer e só regressou a casa, noite alta. Caminhava a passo largo, de enfiada, com urgência, o olhar fixo na curva do caminho, que o destino era em frente.

Perdeu trinta quilos em menos de um ano, disse-lhe o cardiologista, antes de o avisar que de nada lhe valeria deixar o tabaco se não se alimentasse minimamente. Ele não tinha dado pela perda de peso, nem mesmo quando as roupas lhe deixaram de assentar. Nessa altura, não reparava em detalhes, que os detalhes só atrasam e demoram. Até que um dia se cansou de andar.

Certa manhã, acordou e deixou-se ficar na cama. Até ao dia seguinte. Pensou na vida e concluiu que não tinha aprendido nada durante as caminhadas e que gostava menos de quem era naquele momento, do que antes. Pior que isso, não conseguiu descortinar futuro algum para si. Passou a ficar em casa, a passar para o papel as perguntas que vinham ter com ele.


1 romã, em castelhano






11 comentários:

Vanda disse...

Este teu personagem, misterioso caminhante é um sabio...sem perguntas não vamos a lado nenhum, pois não? :)


E sem respostas às perguntas? :)


Beijos

Maria Liberdade disse...

Este passeio lembra-me os meus há muitos anos atrás... Descia a Av Igreja e ia pela Av de Roma até ao fim da Guerra Junqueiro. E porque na altura não havia Metro para minha casa, bem tinha que fazer o mesmo caminho em versão ascendente, já só até à EUA onde apanhava o autocarro.

Esse caminho era cheio de sonhos. Sonhos de uma vida que teimava em não chegar.

As tuas personagens lembraram-me o meu caminho. Olhando para trás foram tempos bem mais dificeis.

Leonor disse...

o pior é se, depois da casa, já não sai do quarto, ou da cama...

e as respostas apareceram por lá?

Eyes wide open disse...

Temos uma veiazita de Dan Brown...

;)


*

lélé disse...

Também há o João de Deus, poeta e autor da Cartilha Maternal, não há?
Mas qual foi o descuido da assistente na Faculdade?
E ele gosta menos do que o que é do que do que foi, porque está triste e sozinho, ou porque sempre foi assim como é, mas só agora reparou nisso?

Devaneante disse...

"Gostaria mais do que era naquele outro momento, dentro de casa, do que do que era antes?"

... certamente uma das muitas perguntas que, mais tarde ou mais cedo, lhe baterá à porta...

ROSASIVENTOS disse...

agora folha agora[esquecer perder-se de entrar,

Eyes wide open disse...

Estava aqui a pensar... enquanto o vento sibila lá fora, e o fogo na lareira crepita... que estes senhores devem estar a passar um frio imenso durante todos estes dias à espera lá pelas Avenidas Velhas (aquela igreja é geladíssima...). Não será já hora de o autor os descongelar...?

;)


*

~pi disse...

o teu texto é, ao mesmo tempo

uma profecia e uma revelação.

um processo de auto-revelação.

o teu texto é uma foto gra fia

co tí nua



e belas, belas fotos atrás,





BEIJO

Carla disse...

Passei para desejar

_________________Paz
_______________União
______________Alegrias
_____________Esperança
____________Amor Sucesso
___________Realizações Luz
__________Respeito harmonia
_________Saúde solidariedade
________Felicidade Humildade
_______Confraternização Pureza
______Amizade Sabedoria Perdão
_____Igualdade Liberdade Boa sorte
____Sinceridade Estima Fraternidade
___Equilíbrio Dignidade Benevolência
__Fé Bondade Paciência Brandura Força
Tenacidade Prosperidade Reconhecimento
_______________!!!!
_______________!!!!
_______________!!!!

beijos

APC disse...

E dantes? Como era antes de ser viúvo, vazio e fóbico? Teria rido, teria brincado, sonhado, amado?...

"genuflectiu (...) [e]tossicou", coitado. Deve estar mesmo doente!

Joke! ;-)