quarta-feira, janeiro 23, 2008

Seis Estações Para o Destino (2)

Mais uma paragem. Duas pequenas multidões cruzam-se ao abrir da porta, numa sucessão de encontrões que a ninguém parece perturbar. Quem chega não tem onde se sentar. Nas expressões, vê-se instalar uma ainda maior pressa em dali sair. Mas o semáforo não passou a verde e ali ficaram todos, imóveis, muito ciosos do seu pequeno território, partilhando o mesmo ar saturado e a mesma impaciência. Frederico apreciou o tempo extra, que a resposta teimava em não chegar, mas um movimento feito por uma passageira, captado pelo canto do olho, chamou-lhe a atenção e distraiu-o do raciocínio que tinha eleito como passatempo. Um simples virar de página.

De pé, ao fundo da carruagem, entre os dois bancos, uma mulher lia um livro. Era uns anos mais velha, tinha a cabeça cheia de caracóis louros e o olhar escondido atrás de compridas pestanas, fiel à leitura. Usava a triskle celta num colar e vestia discretamente, em tons de Outono. Não tinha nada escrito na roupa nem havia nela o mínimo vestígio de rebeldia ou protesto, no entanto, algo fez com que Frederico a associasse à rapariga das calças escritas – talvez fosse por estar a ler aquele livro ou, simplesmente, por estar a ler um livro, cada vez mais um acto de rebeldia. “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe.

Um apito estridente soou, as portas da carruagem fecharam-se e o comboio reiniciou a marcha. Alegre, eu, por haver partido! Frederico, que havia feito um trabalho sobre ele na Faculdade, não conteve o riso e soltou uma pequena gargalhada, ao recordar as primeiras palavras do livro. Um rapaz com muitas borbulhas na cara, que estava ao seu lado, olhou para ele fazendo-o corar. Tossiu para disfarçar.

Talvez fosse o pequeno pingente, que lhe caia no peito, a ligação. Os olhos de Frederico ganharam um súbito brilho ao recordar a tatuagem que a sua amiga Lara tinha nas costas, logo abaixo do pescoço. Mais estilizado, era aquele mesmo símbolo que a mulher usava no colar. E ele até sabia o que significava, que Lara tinha feito questão de lho explicar durante um jantar de amigos: de origem celta, ligado à natureza, representa as três faces da mulher – a anciã, a mãe e a virgem – e é usado como talismã, atraindo as três principais qualidades femininas – intuição, ternura e beleza – ajudando a proteger dos males. Na altura a coisa complicou-se, quando Tomás, um amigo comum, interrogou Lara – em modos que pareceram a Frederico algo bruscos e que ele atribuiu a algum excesso de álcool – se ela sabia quem Simone de Beauvoir era e como é que alguém, em pleno século XXI, para mais uma fêmea, podia reduzir a mulher a apenas três facetas. Mais vale irem todas para casa passar a ferro. Lara, que não era de se ficar, tratou de contra-argumentar. Filipa e Teresa juntaram-se-lhe. Vendo-se em inferioridade numérica, sem apoio dos restantes homens presentes, Tomás subiu para uma cadeira falou brevemente em Betty Friedan e chamou-as de incultas, abandonando o tema feminismo para passar a atacar essas bruxarias em que vocês acreditam e com que, alegremente, pintam o corpo.

Frederico, a quem nada daquilo interessava, foi para a varanda apanhar ar com a secreta esperança que Filipa também fosse. Seria uma boa oportunidade para meter conversa com ela, que tema não faltava. Mas ela não foi e, semanas depois, ele continuava à espera de uma desculpa para lhe ligar. Mulheres, pensou ele com um suspiro. Com ar intrigado, o rapaz das borbulhas mirava-o pelo canto do olho.

Sim, mulheres. Frederico regressou à carruagem. Trazia conclusões: a leitora de Goethe, à sua maneira, discretamente, acabava também, tal como a rapariga, por proclamar parte das suas crenças, no fundo, parte daquilo que ela era. Talvez todos o façamos durante a nossa vida, de uma maneira ou de outra, pensou.

Olhou para si de alto a baixo. Virou-se para a porta e observou com a minúcia que lhe foi possível o seu reflexo no vidro. O que diriam de si aquelas roupas, o seu cabelo desgrenhado e a barba de três dias? Algo mais que ele não tinha gosto para se vestir e que frequentava um mau barbeiro? Estaria alguém a observá-lo naquele preciso momento e a tirar conclusões? Subitamente assustado, olhou na direcção do rapaz das borbulhas que, o mais depressa que conseguiu, desviou o olhar para a publicidade a um crédito telefónico, tentando disfarçar.

Frederico ia explicar-lhe o porquê de se estar a ver ao “espelho” – não podia deixar que o outro achasse que era vaidoso –, mas as portas abriram-se e o rapaz tomou a direcção da saída. Sucederam-se vários encontrões e vagos pedidos de licença. Muita gente saia ali, inclusivamente a rapariga das calças escritas e a mulher do livro. Frederico sentiu-se perdido e desorientado. Uma catadupa de decisões a tomar bloqueou-lhe as sinapses. Onde estava? Olhou para o apeadeiro. Alameda. Era também ali que saía. Tomou a direcção da porta, mas já ninguém saía, só se entrava e ninguém se mostrou solidário com os seus pedidos de passagem. Foi a custo – e à força de empurrões – que conseguiu sair no último momento, tendo ainda sido apertado pelas portas que já se uniam. (continua, ainda)


20 comentários:

Eyes wide open disse...

Hhhhmmm com tanto poder de observação, cá para mim este Frederico é o tal paquistanês que anda a abandonar volumes no metro em Telheiras... só ainda não percebi se o Francisco é o seu conterrâneo a actuar no segmento chaparro...

;D


*

Sofia disse...

E quem vai ele seguir? A jovem das calças ou a mulher do livro?

;)

bjs

lélé disse...

Como seriam entediantes as viagens, se os Fredericos não tivessem uma mente tão activa!... Diz-se que, antes de morrer, revemos a nossa vida em formato 8mm, mas parece que não é só no derradeiro momento que tal acontece!

mixtu disse...

ai o gajo das borbulhas...

pois, ele... muito mal falariam dele...

gostei da menina, o ler...
a simbologia...

gostei, gosto delas sossegadas,
yaya

abrazo serrano

Anjo De Cor disse...

Adorei as fotos de Barcelona, excelentes amigo ;D
é um destino que espero vir a visitar um dia.
Beijinhos e bom fds.
SS

Alberto Oliveira disse...

... não havia a mínima dúvida que o tipo dos All Star era um narcisista dos antigos pois qualquer superfície espelhada lhe servia para se mirar longamente, passar com a mão pelo cabelo e pela barba, com olhares de inequívoca aprovação. Mas foi precisamente aí que as coisas se começaram a complicar: o sujeito voltou de repente a cabeça e os seus olhos cravaram-se nos dele como que a pedir explicações e não fosse o número de pessoas que se entrepunham entre ambos, juraria que ele avançaria na sua direcção. Ainda mais depressa que se leva a contar, as portas da carruagem abriram-se e a decisão tinha de ser imediata. Mandou às urtigas a ideia de sair na última estação e porque estava mais próximo da saida que o outro, levantou-se num ápice (trazia sempre com ele o ápice para se levantar primeiro que todos os outros espectadores´nos jogos de futebol, assim que os árbitros apitavam para dar por terminados os jogos) e deixou-se levar pela multidão para fora do combóio... sem olhar para trás. Estava na estação da Alameda...

un dress disse...

a festa do vento - nome mais bonito!

e barcelona- sinto um aperto a ver fotos de barcelona:)


amanhã venho às letras...





abraÇo.beijO

Azul disse...

Olá Rui. Cheguei aqui pela porta do legível, pelos vistos, amigo comum. Curiosamente, creio já ter cá passado outrora e vá-se lá saber porquê, dessa vez não me prolonguei. Contudo, ao ler agora o seu último post, não posso deixar de lhe agradecer pela leitura boa que me proporcionou e pelas referências literárias a que alude: Werther, reli-o há pouco tempo pela 5º vez; Simone de beauvoir foi tema do últime magazine literaire de janeiro (pelo centenário de seu nascimento); as mulheres, tema da minha perdição ... enfim. Resta-me agradecer-lhe pelo bom espaço de escrita que aqui tem. Voltarei certamente. Visite-me, tem a minha porta aberta para um chá. Um abraçoa e até breve. Azul.

www.cemtruques.blogspot.com
www.cemtruquescarmim. blogspot.com

~pi disse...

das vidas que vivemos a pensar.

das vidas que também caminhando

tocando e correndo não vivemos.


às vezes saímos à justa na porta

suposta

outras vezes

nem por isso

e por isso enganamos o engano até amanhã.


um amanhã prolongado para sempre...





~

mixtu disse...

por pouco que ele não saia...

será que o destino lhe queria dizer algo

acrescentos excelentes do amigo legivel, tal como os teus no blog dele

abrazo serrano

Anónimo disse...

estes instantes de fuga à realidade são tão...equilibradores, não são? é que a seguir, la seguem os fredericos na sua vida previsível!

Gi disse...

Não sou a Adozinda da história do legível mas também sou ávida de saber :) . Conta aí porque é que o Frederico se olha tanto ao espelho. Receia ser parecido com algum governante e ser atacado a qualquer momento?

Beijinhos

un dress disse...

tantas estações!

gostaria que fossem três apenas.

e que no final tudo não passasse
de uma.


sem desorientações.

com um mínimo de perdas:

segura

pequena

incondicional.




.abraÇo.beijO ~

Margarida Atheling disse...

Tu escreves muito bem. Já disse isso muitas vezes. Mas este conto está a ser particularmente bom de ler. :)

Bjs

Sandra disse...

Adoro ler-te. Que delicia!
bjs

segurademim disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
segurademim disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
segurademim disse...

Barcelona é um espanto.
Este ano não posso deixar de ir a Dublin.
Viajar ou andar de combóio (cá dentro) pouco importa. O que interessa é a cabecinha que se tem.

Os caracóis dão sempre jeito.

Anónimo disse...

às vezes, olhar para o lado e descobrir o acaso de um livro nas mãos de alguém que não conhecemos. e é como se o livro fosse um link que acorda a curiosidade. o que fez o Frederico? agora foi a minha curiosidade que despertou. que decisão tomará ele, já na Alameda. volto, para saber. :)

Claudia Sousa Dias disse...

Se calhar nem mesmo a leitora de Goethe saberá o que o símbolo celta significa na íntegra...certamente que a feminilidade dela não se esgota naqueles três atributos...

Quanto ao facto de me julgarem ou não por aquilo que estou a vestir, a mim ou a qualquer outra pessoa, isso é inevitável e por isso é-me completamente indiferente. Visto-me da mesma forma que escolho os livros que leio. Para satisfazer o meu apetite insaciável pelo belo, por simples fruição estética e para dar largas à fantasia e expandir a minha cristividade sob a forma da livre expressão da minha forma de estar interior...

É tudo.

E, poderá não parecer muito educado, mas tenho o hilariante, para os outros, hábito de me ver ao espelho sempre que tenho vontade. Apesar de não ser nenhuma estrela de cinema.


CSD