quarta-feira, janeiro 16, 2008

Seis Estações Para o Destino (1)

No cais da estação de Metro, com as biqueiras sujas dos All Star milimetricamente perpendiculares à linha amarela, pensava nas traições que a idade lhe começava a infligir – aquela dor que se lhe enfiava na zona dos rins sempre que estava de pé, na mesma posição, mais que dois minutos era uma dessas traições. Cerrou os dentes com força. Se havia coisa que não apreciava, era traição.

O volume de voz da rapariga que, pelos altifalantes, mantinha os impacientes passageiros ao corrente das notícias de há dois dias, aumentou, anunciando, ainda antes do placard electrónico, a aproximação da composição ferroviária. Um sopro quente, com cheiro de carris soterrados, foi empurrado para a galeria do arquitecto Siza, precipitando os corpos, até então respeitadores, para lá da linha. Um senhor gordo e demasiado vestido, que transpirava abundantemente das patilhas, deu-lhe um encontrão, fazendo-o pisar o risco. Cerrou também os punhos com força – não apreciava traições nem desordem.

Foi encafuado não tanto por vontade própria, mas pelas circunstâncias, numa das extremidades da composição, junto à porta que só abre no trajecto inverso. De pé, que nem tentou procurar lugar sentado, tão grande era a ansiedade em aliviar o peso do corpo que sentiu nos companheiros de viagem. Teria de suportar os rins durante seis estações. Nada a que não estivesse habituado. Antes assim. Bem vistas as coisas, ia mais à vontade pé, que nunca sabe onde pousar o olhar quando tem desconhecidos sentados mesmo à sua frente. Encontrou conforto na máxima que lhe ocorreu naquele momento: suporta-se melhor o lombo dorido que o olhar perdido.

Sorria para dentro quando uma rapariga lhe chamou a atenção – não tanto ela, mas mais as calças que usava. Depois de matutar no assunto durante um momento, Frederico concluiu que começava a não ter também já idade para se recordar de algumas coisas que tinham tido importância na sua juventude. Começavam a ficar já longe demais, ténues vestígios que, amiúde e pelas razões mais estranhas, o faziam regressar ao passado. Viu-se no alto de uma comprida curva que lhe fez lembrar o dorso de um Dromedário. Subitamente, a curva estremeceu e ele desequilibrou-se, começando a cair em direcção a uma das extremidades. Tinha 35 anos e sentia-se velho.

O comboio chiou no aperto da curva e deu um solavanco tal que o arrancou do sítio e dos pensamentos cinzentos. Reconquistado o equilibrio, achou curioso o tipo de questões que com ele implicavam, mesmo quando se encontrava em sofrível situação de equilíbrio, entalado entre desconhecidos e em permanente esforço de contenção, tentando não tocar em alguém.

Do que ele não se tinha conseguido lembrar da sua juventude, eram as razões que o tinham levado a, no 10º ano, escrever a esferográfica numa mochila verde-tropa em que carregava um caderno e alguns livros para a escola. É que a rapariga sentada perto dele – e que teria a sua idade de então – tinha as calças de ganga todas escritas a esferográfica. Havia letras de todo o formato, tamanho e cores. Umas redondas, outras angulosas. Havia palavras isoladas e frases mais ou menos longas. Umas eram em português, mas a maioria em inglês. Havia filosofia e muita música. Um tratado de vida, concluiu Frederico, sem saber bem o que isso significava.

The only moment we were alone. First breathe after coma. Your hand in mine. Six days at the bottom of the ocean. Three Seed. Lets dance to Joy Division. The stylish kid in the riot. Cool kids wear Ray Ban. Poupar a vontade. Amar é metade de crer. Carpe Diem.

Havia mais, mas não conseguiu ler por impossibilidade de se aproximar.

Nos anos 80, pelo menos na sua escola, chegou a ser moda, mas hoje, depois de tanta coisa ter acontecido, pensava que a juventude já tinha encontrado outras formas de exteriorizar as suas crenças e angústias – coisas mais “radicais”, como tatuagens e piercings. Mas a rapariga ali estava, sentada perto dele, olhar vago e muito compenetrada na música que lhe chegava através de dois fios brancos, que desapareciam num saco que ela transportava ao ombro.

Faltavam quatro estações para o destino, o tempo possível para que Frederico se recordasse das razões que o tinham levado, há muitos anos, a escrever na sua mochila, que à superfície lhe era mais difícil divagar. Eram coisas que hoje lhe pareciam parvas – Up The Irons, Megadeth, peace sells but who’s buying, Hell Raiser, é proibido proibir… Carpe Diem, um clássico destas coisas –, mas que na altura lhe pareceram ser de rebeldia, anti-o-que-quer-que-fosse, muito anti-quem-mandava. Seriam as mesmas razões que levavam uma adolescente a escrever nas calças, hoje? Concentrou-se.

28 comentários:

Alberto Oliveira disse...

.... deixava-se ir sentado ao sabor dos acontecimentos que é como quem diz ao andar da carruagem que até tinha piada deixar-se conduzir quando era ele que todos os dias conduzia o carro na monótona peregrinação casa-emprego-emprego-casa. Sentia um prazer especial quando o combóio -por vezes um pouco violentamente, afrouxava a marcha, rodado chiando, até entrar na próxima estação. A escuridão cedia lugar à claridade artificial e à sequência da massa humana que aguardava o transporte. Desta vez a carruagem ficou completamente lotada e notou que algumas pessoas ficaram a gesticular por não terem conseguido entrar. Foi-as perdendo de vista com o retomar da marcha do combóio para o interior da negritude do túnel subterrâneo. Empurrados pelos que chegaram, um sujeito alto de sobretudo côr-de-camelo quase lhe enfiava um dos joelhos no peito e uma mulher de olhos enormes e um decote maior ainda, estava praticamente com o rabo colado na cara da jovem pálida vestida de negro, sentada à sua frente. No outro assento, deixou de poder distinguir as calças de ganga da rapariga estudante, profusamente legendadas a esferográfica, porque um tipo dos seus trinta e poucos anos, de All Star calçados, tinha conseguido ganhar um espaço à sua frente. Parecia pensativo e de vez em quando olhava para a rapariga perdida na música que lhe chegava de uns fios brancos que desapareciam num saco que ela transportava ao ombro.
Desviou a atenção do par e lembrou-se que tinha decidido ir até ao fim da linha antes de entrar nesta história. E agora?

lélé disse...

Por rebeldia se criam modas e por rebeldia se rejeitam essas mesmas modas. Factor comum: rebeldia. Factor quase comum: as modas (são intercalares)

un dress disse...

ainda há contestação?

ainda há ideais contrariados?

ou...ainda há ideais?

anti o quê?

como?

quem?





.li o teu incrível comment no legível! incro yable! :)


.beijO

ROSASIVENTOS disse...

nada a propósito. ou sim?




uma vez fui imortal




mas




morri dum tiro exacto





...

Eyes wide open disse...

:) e será que são...? Por vezes esta juventude de hoje parece tão diferente do que fomos... nós os cotas na vizinhança dos 35 ;)


*

mixtu disse...

esse gajo com 35 anos é um grande morcão...
ou entonces está com uma depressaõ que não vai haver supositorios que o safem...
yayyayaya

o gajo que convide a nina para uma dança ed salão,

yyaya

abrazo serrano

Vanda disse...

Muito bem escrito este retrato geracional.


Faz-nos pensar sem duvida nos jovens que fomos -sempre a querer diferente- e nos jovens de hoje - sempre a querer diferente.

Afinal qual a diferença?

É que os de hoje ainda não perderam a garra, a esperança :) e nós, muitas vezes, já seguimos sentados(cansados), (bem ou mal) acomodados,
na carruagem de destino (in)certo.


:)

Adorei:)

Beijinhos!

Vanda disse...

"Como se fosse possivel esquecer a vida inteira num momento" :)

anónimo disse...

e no metro o que os levará hoje a pôr os pés em cima dos assentos, será a falta de educaçã e civismo ou será rebeldia anti o quê?

anónimo disse...

serão, tavez, os malefícios da facilidade...

que não os deixa discernir da quanta felicidade.

~pi disse...

...ou é crer que é metade de amar!?

cada viagem daria um livro.

dos olhares cúmplices à reconquista do equilíbrio.

das dores de ir de pé aos ciúmes de quem vai sentado.

dos encontróes a constatação de que, nas horas de ponta, nas grandes cidades, somos levados aos empurrões para as diárias viagens de metro...

...como para as da vida em si mesma?

/ou seja, sem voto na matéria...



~

Vanda disse...

Vem ao Over urgentemente :)

RC disse...

Próxima Estação?

Sara MM disse...

uff! que lufada de ar fresco!
ou pesado... sei lá! :o)

adorei! como sempre.

só acho uma coisa incorrecta. é que
as meninas de hoje podem até ter todos aqueles pensamentos anti-qualquer-coisa, mas não sabem concerteza "o que é" Joy Division...
ora pensa lá bem.



eu ultimamente no metro não tenho reparado em nada disso... com os meus all star nada alinhados com o risco amarelo, tenho aproveitado para ler. muito. e ai! que saudades tinha de ler!
voltei a ler! ainda nem acredito! já lá íam 2 anos!

e numa ou outra frase lembro-me de ti.
"bem podia ser uma frase do rui", "nos malefícios esta estória daria ainda mais voltas", "ele teria uma maneira mais louca para escrever isto", e... "raios! tem mesmo de mandar cá pra fora um livro!", "e agora que troquei os blogues pelos livros (porque além do metro, tb uso o meu sofá no final do dia - depois de ela adormecer, claro)! ía logo comprar um livro dele e ficava na lista de espera, que afinal só tem 3... ou passava à frente dos outros..."


BJss*4

Leonor disse...

Mas que flashback às viagens de comboio dos meus tempos de faculdade ... Só lhe falta o 38 apanhado em Alcantara e que demorava heternidades a chegar à cidade universitária ...
Eu nessa época já não usava a mochila de lona, mas as contra capas ods cadernos eram um sem fim de frases, letras de músicas e citações.
Que bela viagem ...

Anjo De Cor disse...

Acho que todos temos um rebelde dentro de nós, que em certas alturas se manifesta mais que outras ...
Creio que nada tem a ver com a idade, mas sim com a maneira como vemos a vida e as situações nos afectam ...
Serei uma eterna rebelde ou não?!
Beijinhos Rui ;)
SS

Anónimo disse...

Excelente introversão de um citadino a caminho dos quarenta! Gostei especialmente das frases 'filosóficas' em língua inglesa que compunham o tratado de vida, até porque há dias andei a olhar de uma certa maneira para as formas de expressão dos mais jovens de agora. Ao mesmo tempo fico a pensar sobre o que é mais fácil de suportar, se o
lombo dorido se o olhar perdido.
:)

Claudia Sousa Dias disse...

Olá Rui!

Também sinto o mesmo, do alto dos meus 36 aninhos.


Na época de que falas eu não escrevia nos jeans mas fazia pinturas rupestres no rosto, verdadeiros tratados da arte de combinar as cores, inspirada nas paisagens das linhas do horizonte: pôres do sol dourados, nuvens rosa, e cinza e aul violácio, emuitas outras.

Maquilhava-me de forma tão sofisticada quanto as modelos da vogue.

As minhas colegas pasmavam. Até que uma delas vou-se para mim: acho que fazes figura de ursa...na tua idade ninguém deve pintar-se assim...

Hoje a M., a minha melhor amiga,contempotrânea da outram, mas não com a mente cúbica, diz-me: "quem me dera saber pintar os oplhos como tu. desde o liceu..."

Hoje, quando visto aquele vestido longo preto com uma RACHA que vai quase até à cintura o meu pai, diz...

"Já tens 36 anos, não tens idade para usar essas coisas..."

Lembro-me de uma certa fábula de LaFontaine...


:-)


Um abraço.


CSD

Bloga Comigo disse...

Talvez tenha vindo para ficar se quiseres blogar comigo. Eu quero blogar contigo.
Bjos

Bloga Comigo disse...

Talvez tenha vindo para ficar se quiseres blogar comigo. Eu quero blogar contigo.
Bjos

~pi disse...

sentir

re s sentir



.carpe diem

.é proibido proibir

sei lá...

talvez ainda tudo ao mesmo tempo

possa fazes sentido! :)

ROSASIVENTOS disse...

a felicidade maliciosa...

ai esta ideia é tão, mas tão,

intensa!...



:)

Sofia disse...

Começa bem esta viagem! Vamos ao resto. ;))))

[A] disse...

Sr. Rui assim de imediato apresentam-se-me duas observações:

1ª- esse Frederico parece mais ter 53 anos; eu que tenho 37 ainda escrevo nas calças coisas igualmente contestatárias:
-make the dinner, do the dishes!
-take kids to school,they need education
-sexy as an housewife
...and so on

2ª- desconhecia (juro!) que os homens também padecem de dores nos rins, sobretudo aos 35!

Rui disse...

Caríssima letra primeira entre parêntesis rectos,

O Fredy tem as suas coisas, pois tem. Cada um com a sua.
Gostei tanto das contestações que metes nas calças, que fiquei cheio de vontade de ter umas - teria de ser a parte and so on, claro... ou é contestação ao homem?

Pois fica sabendo que a dor nas cruzes dá a muito bom gajo. E antes dos 35.

Com essa do Sr. é que me lixaste...

[A] disse...

Pois que se registe que só trato por "Senhor" aqueles que realmente merecem a minha estima e consideração.

Anónimo disse...

Passa lá pelo meu estaminé e já vês como trato os restantes...

Rui disse...

Registo com um sorriso escancarado.