terça-feira, dezembro 04, 2007

Um Jardim na Planície (7)

Interroguei-me tantas vezes sobre se devia mudar, que me esqueci de mudar fosse o que fosse. Mudar de casa, mudar de comportamento, mudar de atitude, mudar de emprego, mudar de relação. Mudar de vida. Curioso como agora, depois de tudo, me interrogo ainda sobre se pode o nada mudar. Ou será o nada isso mesmo, a ausência de qualquer mudança? A imutabilidade. É desnecessária e inconsequente esta interrogação: vou ter todo o Universo para obter a resposta.
Arrefeceu bastante. Talvez por estar deitado há já algum tempo, tenho muito frio – não que isso me incomode, apenas me assusta. Acho que a temperatura começou a baixar logo a seguir à adolescência, por altura daquele fim-de-semana em que, por ter sido apanhado, sem carta de condução, ao volante de um carro que não era meu, passei a minha primeira noite na esquadra. A revisão destes últimos anos foi um gelo.
Dói-me imenso a nuca.

À medida que grandes nuvens translúcidas se foram instalando no céu amarelo, a luz foi perdendo intensidade e alguns detalhes começaram a notar-se, ainda que sem permitir certezas sobre o que via. As calças aparentavam estar bastante sujas. A camisa também. Seriam marcas de relva, ou talvez… sim, devia ser isso. Cómico e sempre surpreendente como a nossa mente funciona – a minha, pelo menos: perante algo tão definitivo como aquele corpo inerte, ocorreu-me que seria dificílimo tirar as nódoas; que era roupa cara e que eu pouco a tinha vestido; que seria um desperdício não se aproveitar.
Agachei-me e pousei a mão nas minhas costas. Foi quase uma carícia, algo como “foi bom enquanto durou, pá”, em linguagem gestual. Apesar de parcialmente tapado pelo braço, pude ver os contornos familiares do meu rosto. A expressão era a de quem percebeu tarde demais que tinha cometido um erro fatal. Ainda assim, estava eu sereno. Apresentável. Podia ser encontrado pela pessoa mais sensível, que não ia causar grande impressão. Morreste como viveste, está certo, não há muito do que queixar.
A cada minuto que passava a luz perdia força. Era já possível perceber com clareza que as manchas na roupa eram verdes, umas, e vermelhas, outras. As nuvens tinham escurecido e ganho volume, tapando quase totalmente a luz do sol que, até há bem pouco tempo, quase nada tinha deixado ver, de tão intensa.

Trovejou e uma gota vinda do céu estatelou-se na minha têmpora. O impacto foi tremendo e julguei que me esmagava o crânio. O pânico apoderou-se de mim. Quis levantar-me, mas não consegui. Tentei mexer o braço, mas não fui capaz. A perna. A cabeça. Nada funcionava.
Água a cair. Gota a gota. Pareceu-me música. Não muito longe, um automóvel começou a trabalhar e arrancou a alta velocidade, projectando gravilha, que ouvi cair pedra a pedra. O derradeiro vestígio de temperatura abandonou-me e a noite caiu sobre mim com inusitada rapidez. Ainda vi, à minha volta, as sebes a convergir sobre mim, encarcerando-me. A última imagem que guardei foi a do banco de pedra, à minha frente, e a de um rasto de sangue que vinha dele até mim.

Sigo ainda o fumo, que se escapou abundantemente da chaminé, em golfadas sem cor definida. A paisagem não se alterou: a mesma ausência, a mesma tristeza – ou talvez ela não seja assim, e tenham sido os meus olhos que se tornaram cinzentos e eu me tenha tornado vazio; prenuncio do futuro, que ainda não cheguei não sei onde.


FIM

26 comentários:

RC disse...

Fim?

lélé disse...

Este sujeito foi atropelado? Atropelado pela vida, essa maluca? Morreu e anda pela terra de ninguém, sem saber de onde vem ou para onde vai?...
Este conto, Rui, tu desculpa lá, mas vais fazer-me um croqui, tá bem?

Afonso Faria disse...

Rui, este cheguei dificilmente ao "FIM". Vou retomar um dia ao princípio.
Acontece-me às vezes!
Um abraço

Rui disse...

Este ninguém percebeu. Não é fácil, sei disso. Para mais, quando está a ser publicado há quase dois meses. Não há quem consiga manter o fio à meada - que, ainda por cima, é um um emaranhado de fios a desfazerem-se.

Obrigado pela paciência.

Alberto Oliveira disse...

- MARIAAAA!! anda cá que está aqui um homem muito mais morto que vivo!
- Já vou homem! Mas olha que estava agora mesmo a preparar o peixe-assado no forno para o almoço. Nem na cozinha posso estar descansada, com franqueza!
- Então, que te parece? é ele, não é?
- É pois. Que nunca lhe vi a cara, mas posso jurar que é ele... e já lhe viste a pulsação?
- ´Tás doida, mulher?! Ia lá agora ver isso ao homem. Pensas que sou o quê? algum vira-casacas?! Vai mas é a casa e liga para o cento e doze e diz-lhes que temos um morto no quintal.
- Nossa Senhora! Como é que o homem teria morrido... E logo aqui ao pé das galinhas e dos patos.
- Ora, caiu-lhe a noite em cima sem apelo nem agravo, foi o que foi...
- Bom, vou telefonar. Mas não se perdia nada se lhe fizesses a respiração boca-a-boca...
- Desanda mulher! É o que dá, ver essas porcarias na televisão

................................

- Ó amigo! Oiça-me com atenção. Eu não estou nem morto... nem vivo, percebeu?
- Mas... você fala!! E agora a minha mulher foi chamar o cento e doze pois pensávamos que estivesse morto de facto... Não percebo nada disto!
- Foi o que eu também disse num comment "ali em cima". Até parece que sou bruxo...

Eyes wide open disse...

Mas depois de ler este, fica-se com a vontade de reler tudo ininterruptamente... copia-se, cola-se, ordena-se, imprime-se e coloca-se na mala para ler, e reler e voltar a ler... e deseja-se que se soltem os fios, se dissolva o emaranhado, que a planície se vista de cores e sabores, que se reconstrua o jardim, que se iluminem os olhos, e que o futuro leve bem longe...


*

un dress disse...

também sinto as trovoadas nas têmporas.

e a chuva na cabeça. a noite.
o corpo fragmentado.

e as cores alteradas.

nor,malmente aí já passei a fase rem...


:)


beijO ~

Anónimo disse...

Fico a observar as golfadas de fumo e os sinais de sangue. Não me parece uma paisagem exangue, apesar do vazio anunciado e do prenuncio de fim. Para mim é uma viagem introspectiva em que as estradas não têm sinalização, mas há um horizonte e, para lá dele, um rio transbordante.
:))

mixtu disse...

o questionar do futuro
que chega ou não...

preso ao passado, quando o futuro tem o tamanho da vida...

mudar, por vezes nem vale a pena mudar se as temperaturas são baixas :)

ninguém percebeu?1
já agora... todos os pastores o perceberam.,,

abrazo europeo

Isa e Luis disse...

Olá,

fica no horizonte a esperança que algo aconteça para finalmente ficarmos cheios de luz.

Beijos meus

Isa

~pi disse...

foi quando te passaste.

quando morreste.

/uma morte em tudo igual à vida.

e foi apenas um súbito instante de indefinição das cores dos fumos.

i s s O.

~pi disse...

so....be welcome!

Gi disse...

Por vezes penso Rui. Penso como será esse novo caminho rumo ao desconhecido. Se somos nós que mudamos ou se o que muda é a percepção que temos das coisas.

Estive ausente uns dias do blogue e das caixas de comentários. sabes que mais? Valeu a pena esperar.



Beijinhos . Obrigada

Titá disse...

Tive que voltar ao principio.
Impressionante!
Continua...por favor

Gina disse...

Oi amiguito!

Nao sei se vou conseguir publicar isto, ja tnh tentado e nada.
Vim dar-te um beijinho de saudades e prometer k vou voltar a ler-te k isto anda mt atrasado, rsrs.
Bjinhos

Gina disse...

yuppiiiiiiii então nao é que consegui rsrs

Licínia Quitério disse...

Acabou? Não. Eu vou continuar a pensar em tudo o que por aqui fizeste passar.

Um grande abraço, Rui.

Sofia disse...

olha ja acabou....deixa-me ler...

Sofia disse...

Já o li 2 vezes. Ohh Rui, o homem morreu? Ui q grande alucinação!

Explicas-me?

un dress disse...

vinm ver se havia ressurreição

ou arco-íris no fumo...





:)

Inês Diana disse...

Tinha tantas saudades de te ler... faz tempo que me perdi por aí, numa nuvem...

Beijo para ti, Rui :)

Titá disse...

Vim cá na esperança de encontrar mais escrita...

Assim, deixo um beijo

Kalinka disse...

Olá Rui
...descobri-te só hoje; acho que escreves muito bem, vou voltar para te ler com mais calma.

Todos os dias do ano (não só no Natal...)deviamos pensar nas nossas «deficiências»:

"Mudo" é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia.
"Paralítico" é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de sua ajuda.
"Diabético" é quem não consegue ser doce.
"Anão" é quem não sabe deixar o amor crescer.

Beijos cheios de calor num dia gélido.

Gi disse...

Rui

Vim ver se o passeio continuava por outros caminhos ... leva-nos até lá. Dá-nos isso de presente antes do Nstal :)

Beijinhos

mixtu disse...

fim da felicidade ou dos maleficios?
yaya
abrazo monarquico e europeo

peter pan disse...

alucinação???!!!!
descrição do sonho após o acordar?
e as cenas dos próximos?
para quando? agora ficamos assim???
para quando? vá lá...
para quando? já?
estou à espera, moço!
agora que regressei...