segunda-feira, dezembro 17, 2007

Francisco e o Caleidoscópio

Gingando pela Rua Augusta, ao som de Lou Reed, ainda e sempre na sua, mas já sem o mesmo speed, segue o seu caminho. Com o leitor de mp3 na algibeira, Francisco o, em tempos, freak da Cantareira. Distraído a tentar perceber as novas tecnologias, vai os esses, rua acima – algo que lhe ficou dos muitos chutos nas retretes e das trips de heroína – com os seus inseparáveis sapatos bicudos e joanetes.
Agora, a noite vem e ele ainda atina. Não é já o maior da Cantareira, ainda tem borbulhas, mas não usa patchouli, nem brilhantina. A cólica, o escorbuto e a caganeira, são uma memória – embora ainda presente e sofrida. Vinte seis anos depois, ainda domina a cena e continua a farejar a judite em cada esquina. A vida, essa, complicou-se e não tem apenas um problema: se antes era o ácido com muita estricnina, agora são os inúmeros créditos a que tem que fazer face todos os meses.
Da Cantareira à Baixa, da Baixa à Cantareira, conhecia os flipados todos de ginjeira, mas agora está em Lisboa, chegou ao Rossio e a ginjinha está fechada por ordem da ASAE. Desconsolado, reparou num tipo que, a seu lado, contempla também a porta fechada da tasca. É um intelectual de ar estafado, um homem de faces cavadas. Na noite, topou imediatamente Francisco. “Por certo, no Bairro Alto”. Como que saindo de um sono profundo, o homem tomou a direcção do Jardim do Regedor.
No silêncio dos seus cansados ténis claros, seguiu em passos largos de dança. Francisco foi atrás. Aquela figura atraía-o. Teve a sensação que o conhecia. Talvez fosse aquela dureza como rocha, que lhe vinha do olhar, através dos óculos. Achou-o fã da violência: vestia cabedal, que era, afinal, napa preta. Parado no tempo!? Não conseguia afirmar, mas percebia nele fome. E agora, quem sabe, não seguia o caminho da fábrica ou do estaleiro. Francisco acelerou o passo e tocou-lhe no ombro. Quando o outro se virou, pareceu-lhe que tinha vestido a pele de um animal em fuga. Estava agressivo, o que, afinal, era a reputação ideal.
– Calma, carago! – Deu um passo atrás ao enfrentar o olhar do outro. – Eu só queria falar…
– Falar o quê? – Respondeu após um breve silêncio e depois de ter mirado o seu interlocutor e quem por eles passava.
– Acho que te conheço.
– De onde?
– De sítio nenhum, antes, de um tempo. – O outro pareceu ficar curioso. – Do inicio dos anos oitenta. Da noite. Do começo de uma mudança. Da música.
– Talvez… é possível. Eu andava por aí, nessa altura. E musica, sempre.
– Percebi isso. É que eu, também. Acho que nós acabámos por resumir bem o sentimento de uma geração – O que quer que fosse essa coisa que tinham em comum, o outro reconheceu-a em Francisco.
– Sim, talvez…
– Havia uma angústia que começou a ser gritada…
– Gritada. – Interrompeu. – Não sei se gritada, pelo menos, logo no inicio mas, pelo menos, a ser mostrada. Uma ânsia, acho que era mais isso.
– Implicou sofrimento, para ti? – A resposta chegou primeiro através de um aceno de cabeça.
– Sim, sim. – Ficaram os dois calados durante algum tempo. – Mudavas alguma coisa?
– Claro que não, carago! Eu estava lá. Fui dos primeiros, estava na vanguarda. – O outro quase sorriu. – Estou com sede, vamos beber uma?
– Bute lá! Mas, com isto tudo, nem nos apresentámos.
– Chico, mais conhecido por Chico Fininho. Portista de gema, em visita à capital.
– A mim, chamam-me Rapaz Caleidoscópio.



A inspiração(!!) deste texto vem, obviamente, do tema Chico Fininho, do Rui Veloso (letra, Carlos Tê; música, Carlos Tê e Rui Veloso) e, menos obviamente, do tema Rapaz Caleidoscópio, dos UHF (letra, António Manuel Ribeiro; música, Renato Gomes e António Manuel Ribeiro)

31 comentários:

Maria Liberdade disse...

E só me ocorreu:

Tempo que perdes sem decidir
Tempo que gastas sem arriscar
Espaço que te foge das mãos
As coisas que deixas passar

Sai p'ra rua, sai p'ra rua

Deixa o rebanho, pára de pastar
Esquece o conforto do lar

Tu sai p'ra rua
Tu sai p'ra rua

Só tu podes chegar a sentir
Qual a boa solução
Mas uma coisa é mais que certa
Tens de tomar posição

Sai p'ra rua, sai p'ra rua

Deixa o rebanho, pára de pastar
Esquece o conforto do lar

Tu sai p'ra rua
Tu sai p'ra rua

(Xutos e Pontapés)

Pois é... Estão barrigudos e no sofá, a jogar na playstation que finjem ter comprado para os filhos.

Sofia disse...

Deixa vir aqui o Legivel e tu vais ver já o q lhes aconteçe!

;)

Chico fininho, uuu uuu

Fortunata Godinho disse...

Bibó Porto, carago!
E já agora viva o Boavista.
E mais, Demos vivas ao grandioso Rui Veloso, que de fininho já não tem nada, nem mesmo a expressão porque as letras, músicas e demias, semrpe foram de larga escala :)

Muito fixe, Rui!

mixtu disse...

o rui e os uhf
excelente tributo
excelente
´parece curto o comment mas não...
sempre fui mais de uhf

abrazo europeo, meu e de rosinha

Alberto Oliveira disse...

... o guarda Calvário tinha terminado o serviço na esquadra da polícia situada nas traseiras do Teatro Nacional e dirigia-se agora para sua casa na Rua Poço dos Negros. Àquela hora das noite Lisboa estava calma e apenas uma ou outra alma noctívaga se cruzavam com ele. Gente anónima, sem rosto e sem norte, pensou. E para afastar maus pensamentos, enquanto andava trauteava

"Senhor
este amor é mais puro que a jóia mais rara
que o mais puro amor
Senhor
se o amor é castigo
perdão meu Senhor... "

e de tal modo ia embrenhado na letra da canção que só deu pelos dois indíviduos em acalorada discussão quase em cima do seu nariz. Vestiam de modo vagamente suspeito e um deles -não fosse o tom masculino de voz, ia jurar pelo comprimento do cabelo que se tratava de uma mulher. E o tema da conversa não era de modo algum a de dois cidadãos respeitáveis chefes de família. Ali havia caso. Ultrapassou-os e

- Alto! Identifiquem-se! Primeiro você, que já não deve visitar o barbeiro há bastante tempo.
- Perdi os meus documentos mas sou de Almada e chamo-me Rapaz Caleidoscópio...
- De Almada e em Lisboa a estas horas... pois. Kalei dos Kopos? Claro. Um russo suspeito e amigo do tinto. ´tá preso! Agora você!
- Sou o Chico Fininho. Do Porto. E empenhei um anel de rubi para vir aqui a um concerto no Coliseu...
- Um elemento de um gang nortenho em Lisboa e ainda por cima confessa que anda a fanar rubis. ´tá preso também!!
- Mas ó sôr guarda Calvário!! nós até somos músicos!! (em uníssono)
- Quem lhes vai dar música ali na esquadra é o chefe José Alberto Reis. Vamos lá. À minha frente!

Alberto Oliveira disse...

... ó Sofia! tu já me conheces. À distância...

Sofia disse...

;)))

é assim mesmo. Eu sabia q o legível n ia deixar esses malandros aí á solta!

Bjs aos dois (rui e legivel e nao aos presos!!!!!)

[A] disse...

Mudam-se os tempos....

:)))muito bom!Mas também gostei do José Alberto Reis!

Quanto ao boné não te preocupes: "estar na moda é estar fora de moda" e combina muito bem com o espírito (?!) do texto, se bem que tenha sido uma moda lançada pelo trolha da Areosa.


Para o caso de não nos "vermos" antes, deixo já aqui e agora, o desejo de que tenhas um Natal com todas as estrelas que mereces.
ok...que desejas.


Bjs.

[A] disse...

off topic:

Olha descobri um poema com aquele nome...

THE LOVE BIT

the colors we depend on are
red for raspberry jam,
white of the inside thigh,
purple as in deep,
the blue of moods,
green cucumbers (cars),
yellow stripes down the pants, orange suns on ill-omened days, and black as the
dirt in my fingernails.
also, brown, in the night,
appearing at its best when
the eyes turn inward, seeking
seeking, to dig everything but
our own. i.e. we make it crazy or
no, and sometimes in the afternoon.

Joel Oppenheimer(1930-1988)


da poesia: «an answer to a question you didn't know you'd asked yourself»

un dress disse...

mas que reencontro...!

fui ouvindo, com música, e passos de dança...:)

grande chico fininho, carago, ainda bem que continua a farejar a judite, a usar napa, a ser da vanguarda - há tantos anos!

e a ter aqueles trek.jeitos lá do aleixo!!




beijO.aqui.do.portO :)

Alberto Oliveira disse...

... onde se lê "... dirigia-se agora para a sua casa na Rua Poço dos Negros... ", deve ler-se "... dirigia-se agora para a sua casa na Rua das Pretas... ".
É que esta última (transversal da Rua de São José, logo a seguir à das Portas de Santo Antão) faz muito mais sentido para o percurso que o guarda Calvário estava a fazer... a pé. Corrigida a gaffe, resta-me pedir desculpa ao guarda Calvário não vá ele dar-me também, voz de prisão.

Eyes wide open disse...

always a magician with the words...!

*

cuotidiano disse...

Olha que a música não é do Rui Veloso, é também do Carlos Tê.

És muito optimista - o Chico Fininho, se ainda estiver vivo, está a arrumar carros e a dormir dentro de um outro já pôdre...

Muito bem escrito, como sempre.


Um abraço

Afonso Faria disse...

Do teu melhor Rui! Transportaste-me, senti, ouvi, "ginguei" e não pude deixar de sorrir ao longo da leitura. Inspiração de alguém, queres dizer, construção tua! Um abraço

Rui disse...

Cuotidiano,

No site do Rui Veloso (http://www.ruiveloso.net/discografia/28/d28ArDeRockSingle01.html#),
a música do Francisco Fininho é-lhe atribuída.

Abraço.

Isa e Luis disse...

Boa dia,amigo!

um olhar de esperança para que Natal seja todos os dias...

http://www.youtube.com/watch?v=LF25_RmOLA0

Feliz Nata!

beijinhos

Isa&Luis

cuotidiano disse...

No site da Sociedade Portuguesa de Autores, em entrevista com Rui Veloso e Carlos Tê:

http://spautores.pt/revista.aspx?idContent=701&idCat=175

"Rui Veloso tem como matriz os "blues". Musicava as canções de Carlos Tê, nesse clima musical. Uma delas entrou no ouvido de todos e conquistou tal popularidade que passou a ser a imagem de marca do cantor. Chico Fininho foi um êxito retumbante. Carlos Tê recorda como nasceu esta pérola: "Eu escrevi e musiquei o tema Chico Fininho. Nas festas de amigos pediam-me que o tocasse e cantasse. Um dia o Rui resolveu dar-lhe uma volta e saiu outro Chico Fininho. Foi essa versão que foi parar às mãos da Valentim de Carvalho."


Abraço

Rui disse...

Já agora, complemento com mais esta citação que o Cuotidiano me fez chegar por mail:

Em:

http://anos80.no.sapo.pt/freak.htm

"Mas, por irónico que pareça, o Chico Fininho é anterior à própria emergência de Rui Veloso no mundo do espectáculo. O seu parceiro Carlos Tê é que o criou, escrevendo o poema por alturas de 77, ou seja, ainda antes de conhecer Rui Veloso e é também ele, ao contrário do que geralmente se julga, o autor da música. Na sua versão original, o "Chico Fininho" gingava em "slow-motion" num ritmo pachorrento, o suficiente, porém, para acender pela mão do próprio Tê alguma emoção nas festas de liceu e encontros de amigos. Quando Rui Veloso entrou em cena, é Tê que o conta, duas coisas aconteceram: o Chico Fininho passou a ter a conduzi-lo, já não a mão pesada de alguém que "tocava mal", mas os dedos hábeis de um outro que tocava guitarra excepcionalmente bem, e aprendera a domar o instrumento respondendo aos solos de B. B. King e John Lee Hooker; por outro lado, o arranjo superveniente fez o milagre de transformar a cadência adiposa dos blues num irrefreável galopar que muito devia ao "rock'n'roll" dos primórdios, dessa época heróica em que se abria para os músicos o sortilégio de um novo e imenso território virgem por explorar".

Polly Jean disse...

lindo!

Titá disse...

Excelente! Excelente!

Deixo votos de Boas festas. Feliz Natal
beijo

Titá disse...

Excelente! Excelente!

Deixo votos de Boas festas. Feliz Natal
beijo

Anónimo disse...

Gosto mais do Jorge Palma ou do Abrunhosa hehehehe ....
Rui desejo-te um FELIZ NATAL ;)
Beijinhos
SS
http://anjodecor.blogspot.com/

~pi disse...

eu gosto de caleidoscópios!

sobretudo nos dias assim escuros nas margens do natal!!...

ROSASIVENTOS disse...

talvez não tenha ainda pronto o nome a dar à cor

Anónimo disse...

feliz nata, rui. beijinho.

Gi disse...

Oh Rui , tu e o Legível é que são os verdadeiros Hansaplast da minha alma. Curam tudo e , pela troca de galhardetes que vão fazendo com a escrita , tão em cima do acontecimento só podem mesmo "pensar rápido", Hansaplast , só pode !

A tua, as vossas , história são deliciosas , vibrantes e eu só lhe posso agradecer por estes momentos preciosos. Fico à espera do Chico que com a idade já não está tão fininho e do caleidoscópio boy.

Um beijo e Bom Natal. A árvore que deixei no meu canto é para todos vós que me visitam e tu, és um raminho muito precioso.

Um beijinho

Obrigada

lélé disse...

Com a dificuldade que tenho sentido para escrever o que quer que seja, tomo a liberdade de "fazer meu" o comentário da Gi... Bem, em vez de Hansaplast, que, aliás, eram os vendidos nos semáforos pelos predecessores dos que lavavam os vidros, que por sua vez precederam os actuais "corn flakes" (aqueles que roubam carros na hora, tipo empresas na hora e essas coisas)...

... o que é que eu tava a dizer? Fui lá aos confins do tempo e perdi-me...

un dress disse...

NAS












CER









de sangue ar musgo vento e água

José Pires F. disse...

História Antiga

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da nação.

Mas, por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga


Um Excelente Natal para ti e toda a família.

Titá disse...

Que o Novo Ano Vos traga ...
cor, calor, alegria, magia, energia, felicidade, simpatia, paz, saúde, amizade, amor, sentimentos, emoções, agitações, lágrimas e canções...tostões

Que cada dia de 2008 vos faça ...
sentir, sorrir, sonhar, imaginar , acreditar e Viver com toda a intensidade que merecem.
Aprendam, sintam, reagam, lutem pelo melhor,acreditem!

Que seja um Ano de...
paz, tolerância, compreensão, conforto, justiça e Amor

Que estes números mágicos... 2008 nos unam cada vez mais e intensifiquem a amizade que nos une e a cumplicidade que nos caracteriza. Sejam felizes e façam felizes alguém... todos os dias e por favor, cheguem ao fim do ano e digam:
Caramba, Valeu a pena!!!!
Desejo-vos o melhor ano de sempre, durante o qual alcancem os vossos melhores e mais secretos sonhos e que realizem e concretizem os melhores objectivos.
Beijinhos

BOM ANO!!!!!!!

mixtu disse...

a asae vem fechar este calhau, yayaya

grande 2009

abrazo europeo