segunda-feira, novembro 12, 2007

Um Jardim na Planície (4)

Quando recuperei a consciência, depois de ter batido com a cabeça, mantive os olhos fechados e não me mexi. Não queria que quem quer que ali estivesse comigo percebesse que tinha voltado a mim. Durante alguns minutos, mantive-me atento ao mais pequeno som, à menor vibração do chão. Não escutei nem senti nada. Apenas uma crescente dificuldade em respirar e uma forte dor no alto da cabeça, que latejava. Contrastando com o exterior, ali o calor era intenso e eu tinha agora a boca muito seca. Os lábios tinham inchado e estavam gretados. A língua era um trapo velho, curtido pelo sol e enrolado na boca, sem qualquer préstimo. Fiz um esforço por me concentrar. Precisava raciocinar, mas o oxigénio parecia estar a desaparecer e o pânico a ocupar o seu lugar.
Com as pontas dos dedos da mão, avaliei a situação como pude: estava virado de barriga para cima; a cabeça inclinada para o meu lado direito; o silêncio era absoluto; o chão era duro e uniforme, talvez em madeira; o cheiro – muito ligeiro – era o mesmo que me tinha chegado pelo buraco da fechadura. Concluí o óbvio: estava dentro da famigerada casa. O mais lentamente que consegui, entreabri a pálpebra direita. A porta estava aberta, à minha frente. Movimentei o olho e algo branco, volumoso e sem forma conhecida, surgiu mesmo ao meu lado. Fechei o olho e esperei. Estaria alguém a vigiar-me? Aguardaria apenas por um movimento para cair sobre mim? O coração começou a bater-me descontroladamente e foi a custo que controlei o impulso de sair dali a correr. Procurei dominar a respiração e os pensamentos. Alguma ideia me havia de ocorrer, apenas necessitava aguentar mais um pouco. Até que senti várias gotas de suor a convergir na têmpora esquerda. Quem está inconsciente também transpira? A garganta contraiu-se e engoli em seco, o que me doeu bastante. Maior, a gota de suor começou a deslizar-me lentamente pela face. Senti que traçava o meu destino. Num movimento que não foi pensado, abri os olhos e levantei-me rapidamente, encarando a figura branca.

No céu, o grande círculo de luz continuava vagamente amarelo e baço. Era como se eu estivesse num lugar fixo no firmamento. Desprovido de movimento de rotação e translação. Por detrás dos farrapos de nuvens, o sol continuava no mesmo local. Imperturbável. Combalido e cada vez mais confuso, eu tinha vindo ao alpendre para tentar perceber quanto tempo tinha estado inconsciente. Não podia ter sido muito.
Tudo permanecia imutável. O horizonte diante de mim, era como que a projecção de um filme com as cores desbotadas e gastas, no ecrã de um cinema antigo, num sítio parado no tempo e no espaço, em que eu era o único espectador. Tudo continuava em suspenso, à espera, como se tudo naquela paisagem tivesse sustido a respiração durante o clímax de uma cena – veio-me à ideia que talvez fosse eu que fizesse parte do filme, e fosse a natureza, diante de mim, que aguardasse pela cena seguinte.
Voltei a entrar na casa, onde a escassa e fria mancha de luz que entrava pela porta, pouco penetrava a escuridão reinante. A meus pés, jazia umas das formas brancas.

9 comentários:

Alberto Oliveira disse...

... não devia ter estado muito tempo desmaiado porque pela porta escancarada acreditou ver que ainda era noite e bem negra. O alto que tinha na testa também devia ter a mesma coloração, que a violência da pancada não deixava margem para dúvidas. Distinguiu o corpo volumoso, coberto pela camisa de dormir branca, da sua mulher morena. A voz dela parecia vir transportada por aqueles combóios-correio dos anos sessenta, que demoravam tanto tempo a partir como a chegar.

- Então homem? ´tás bem? mas que diabo te aconteceu? assim que ouvi um enorme estrondo, vim o mais depressa que pude. Mas como sabes, para atravessar esta casa, de ponta a ponta, menos de meia-hora não é nada. Bom, tens aí um galo na cabeça, que dava para um arroz de pato que nos enchia a barriga durante uma semana!!
- Não me digas nada Maria, que fosse o que fosse que nos entrou pela casa dentro, já se sumiu. Foi uma luta desigual, porque não lhe consegui ver as feições, mas venci-o! ora era eu por baixo, ora ele por cima... até dar às de vila diogo!
- Pronto homem! vejo que já estás recomposto, pois esse farol é bom sinal... vai até à cozinha e bebe um copo de água, vá! Vê lá não te enganes no garrafão!

Ele afastou-se e acto contínuo, Maria, tropeçando num outro galo - o de barcelos-decorativo, bateu com a cabeça no pescoço e estatelou-se no chão desmaiada. No chão, junto à porta, o seu corpo era uma mancha branca redonda e imensa.

lélé disse...

Não fossem estas intervenções do Legível e eu estava a 00!... Parece a história de um alucinado, parado entre o alpendre e a porta, cujo mundo se move aos tropeções e o faz cair ora dentro, ora fora de casa... Parece a nossa vida, muitas vezes... Parece o bêbado, que não sabe se caiu ele ou o banco... Parece que o alucinado tem baixa de açúcar no sangue... Enfim, coisas do dia-a-dia!... E agora poderia perguntar: mas desde quando é que o Sumol tem alcoól?...

Eyes wide open disse...

hhmmmm.... o que serão estas sombras brancas...? E SIM... desde quando é que o Sumol tem alcool?! Ehhh?!?!?!?!


:)*

Rui disse...

Eu respondo. O Sumol tem o álcool que nós quisermos - mas eu uso as espirituosas para sair de estados alucinados, não o contrário. Devia ter bebido, antes de me meter por paisagens estranhas.

(se por acaso este comentário vos pareceu muito sério, é engano; queria que fosse engraçado, mas a coisa não se deu. E obrigado.)

~pi disse...

fantasminha...fantasminha...:)))

un dress disse...

olhei à volta e depois mais acima uma nuvem que se destacava da geral bacidez amarelada do dia...

e pensei em deus e na ironia da situação.
porque para alguém que apenas desejava e lhe pedia para conhecer de perto os malefícios da felicidade...

- oh deus! - interpelei-o de mãos no ar!! :), porque me colocas afinal aqui e escrever estes delírios?
ou será que, assim suspenso no firmamento como me estou a sentir, ou será que já cheguei ao paraíso!!?...

e então olhei com mais atenção aquela forma branca...

e se fosse deus aquele ali caído? que sempre lhe tinham falado que deus se vestia de branco...





:) beijO

RC disse...

No céu, o grande círculo (finalmente) brilhava só para ti.

Gi disse...

"o calor era intenso e eu tinha agora a boca muito seca. Os lábios tinham inchado e estavam gretados. A língua era um trapo velho"

Quando comecei a ler até pensei que o personagem estava com a virose que está a dar cabo de mim há 3 ou 4 dias :) mas não ele alucina eu só tenho delírio febril. Bom pior que a febre só tu para me pôres a cabeça a andar á roda. Que raio, bem ando eu a ver se descubro quem (ou o que) são as figuras brancas e não descubro.

Se tudo isto não passa de um sonho sonhado como diz o Borges , o deus que te deu os sonhos devia ter muita imaginação ...

Um beijo

Sofia disse...

Ohh Rui, só tive uma alucinação do género, com luzes brancas e tudo, numa das vezes que fui operada e levei anestesia geral. O homem tá anestesiado?