terça-feira, novembro 06, 2007

Um Jardim na Planície (3)

A imagem da minha mãe, ainda nova, materializou-se no meu espírito. Tinha aquele ar habitual, em que não se percebia onde terminava a severidade e começava a reprovação. Inclinou um pouco a cabeça e franziu um nada a testa, num movimento que me enchia de terror, enquanto criança.

Depois de muito ter batido à porta e chamado por alguém, tinha-me lembrado de espreitar pelo buraco da fechadura, e foi quando olhei em redor, com receio de ser apanhado em tão flagrante acto de intromissão, que me lembrei da minha mãe.

Mas eu já não era criança e, naquele sítio, no meio do nada, onde nem um insecto se tinha ainda deixado ver; ali, onde só as nuvens pareciam ter vida – fosse aquela massa informe e indistinta, nuvens –, onde nem eu, realmente, sabia se estava, quem se poderia ofender?

Coloquei-me de cócoras. Lentamente, encostei o nariz à madeira, fechei o olho direito e levei o esquerdo à fechadura. Não vi nada. A escuridão era absoluta, mas uma ligeira fragrância parecia escapar-se de dentro da casa. Levei o nariz à estreita abertura da chave e inspirei profundamente. Sem dúvida que havia ali um aroma, mas não consegui identificar a quê. Lembrou-me o Outono e estrelas.

Era noite e estava deitado numa manta, sobre relva, ao ar livre. O céu estava carregado de pontos brancos tremeluzentes. Uma estrela cadente e depois outra. A luz inquieta de uma fogueira reflectia-se vagamente nas copas das árvores, perto de mim. O calor suave do lume chegava-me como se fosse uma carícia. Pensava em como fazer para que aquele momento nunca acabasse, quando uma mão pousou na minha face. O polegar veio ao encontro de uma lágrima que lá não estava e fez o seu percurso até à maçã do rosto. Virei-me para ver quem comigo partilhava aquele instante, mas uma pinha estalou na fogueira e faíscas voaram em todas as direcções. As copas das árvores incendiaram-se e, no céu, as estrelas fundiram-se num mar de luz sem cor que, de tão intensa, não permitia ver nada. O toque suave e cúmplice de há pouco, era agora húmido e viscoso. Quente. E abandonava-me, cara abaixo.

Consegui vislumbrar a relva branca e o banco de pedra. Junto a mim, alguém se afastava. E depois, traves de madeira. Um tecto.

Maldisse a paisagem seca e cansativa. Maldisse a minha sorte e ter nascido. Caído no alpendre, senti pela primeira vez as forças ceder. Merecia a pena levantar-me? Talvez se dormisse um pouco o sonho acabasse.

Fosse tudo um sonho. O desespero fez-me levantar de um pulo e gritei pelo buraco da fechadura. Nada. Voltei a espreitar e, desta vez, deixei que a vista se habituasse à escuridão. Não demorei a vislumbrar vultos brancos. Três, talvez quatro, era difícil perceber. Eram baixos e largos mas, aparentemente, todos diferentes uns dos outros. Apurei a vista e respirei fundo. Precisava perceber o que era aquilo que, recebendo alguma luz que entrava pela fresta da porta, contrastava com a escuridão. Gritei de novo. Estou a vê-los! Sem resposta. A minha imagem reflectida e distorcida pela superfície côncava e dourada do puxador, era a de um desconhecido, tão grande era o transtorno em que me encontrava. Num assomo de fúria, puxei pela maçaneta da porta com quanta força consegui reunir. Ao fazer o movimento contrário, a porta, que estava aberta, escancarou-se e eu caí desamparado, indo bater com a cabeça em algo.

8 comentários:

lélé disse...

Ando meio perdida neste jardim na planície há 3 posts! Confesso que nunca ingeri LSD mas estou a curtir a "trip"!...

Eyes wide open disse...

:) consigo sentir-me dentro desta história...

*

un dress disse...

rui

...vou sonhando aqui dentro...

e fluindo.

iluminada pelas inquietantes, distorcidas e, ao mesmo tempo, precisas palavras.

essas, com que nos transportas contigo...

...e caio agora desamparada, então, coisa não rara em mim...



beijO

Alberto Oliveira disse...

- Ó homem!? acorda! não ouviste bater á porta?
- À porta? qual porta?! Tem calma Maria... Deixa-me cá sair do pesadelo em que me tinha embrulhado, que ´inda não estou em mim. Vê lá tu que estava a ter uma valente discussão com o nosso vizinho aqui do lado... que nem sequer existe. E tudo por causa de um rego de água, e acordas-me precisamente no momento em que eu lhe estava dizer umas quantas verdades...
- Mas olha que já bateram pelo menos duas vezes e com alguma violência... e à última, não me contive e fui espreitar pelo ralo da fechadura e sabes o que vi?!
- Sei lá mulher!
- Vi um enorme olho que dava ideia que queria trespassar a porta e... a mim...
- Que te queria trespassar?! A ti, Maria?! ah! isso não!!Vir jantar fora de horas índa vá que não vá. Agora trespassar a minha mulher isso é que não!
- Espera homem! não o ouves a gritar qualquer coisa? e a mexer na porta? tenho tanto medo...
- Calma Maria! que um olho não grita. Um olho, quanto muito vê. Vamos lá tratar deste assunt

Não chegou a acabar a frase. A porta de entrada da casa escancarou-se e apenas se lembra de ter caido desamparado por algo lhe ter batido na cabeça.

Gi disse...

Que seres brancos são esses? Fantasmas? Uma reunião do klu klux kan ou são simplesmente empregados de uma lavandaria que ssticam as toalhas de um restaurante chinês? Dás conta de mim com tanto mistério e ainda por cima escrito de uma forma magistral.


Já agora deixo um recado para o legível. Aposto que foi a Maria que lhe deu uma cacetada por ele ter dito mal do bacalhau com natas antes de adormecer. Devia estar tão mau que até teve pesadelos coitado. Ainda bem que não aceitaste o convite para a janta :)

Beijinhos

~pi disse...

distorção mais distorção

gritos bramidos e ecos

puxo o puxador dourado

e cai-me a cabeça ao chão



...:)



abraço

Margarida Atheling disse...

E deixas-nos assim suspensos?! :)

Bjs

Sofia disse...

Ai q stress Rui. E ainda tenho uns 3 ou 4 post pra ler, o que suponho nao me levará à resolução do enigma tão cedo.

Deixa-me ir ler o resto.....