terça-feira, setembro 11, 2007

Há Magia no Chiado (1)

A decisão de se cozinhar à vista dos clientes comporta sempre uma elevada dose de risco. Não ter cuidados mínimos de higiene, parece ser certidão de óbito inevitável para o negócio. Ou talvez não, se o universo em que nos movemos é o das tascas lisboetas. Na “Taberna do Menino Jesus”, na Rua do Jardim do Regedor, o chão nunca está limpo, nem as paredes, mesas e cadeiras. Tenho para mim, que Juvenal Costa – proprietário e único empregado do estabelecimento – faz disso questão. Você tem cá um descaramento. Onde é que já se viu uma taberna limpa. Eu já tinha visto, mas limitei-me a encolher os ombros. Nem a comida lhe havia de saber bem, digo-lhe eu que ando nisto há muitos anos. Eu tive de concordar. Afinal, só ali a bifana me sabia bem e rapidamente afastava de mim as dúvidas sobre se a origem de tão apurado gosto viria da frigideira a transbordar de banha castanho-queimado.

Juvenal também não era um primor de asseio. Criado numa aldeia da freguesia de Ínguias (não tem nada a ver com o bicho, fazia sempre questão de esclarecer), concelho de Belmonte, passou os primeiros anos de vida entre o trabalho do campo e o trato dos animais. Veio novo para Lisboa, de olhos fechados, apenas com a roupa do corpo e uma côdea seca de pão no bolso das calças. Tudo o que sabe aprendeu à sua custa. Higiene acabou por nunca ser o seu forte, mas isso nunca foi para mim razão suficiente para não ter admiração por alguém. E eu admiro Juvenal Costa.

Talvez seja a maneira simples como vê as coisas e toma decisões. Quando era cachopo, andavam lá pelas aldeias uns homens diferentes, que falavam diferente e se vestiam diferente. Chamavam-lhes Judeus. Eles contavam histórias antigas à canalha e a gente ficava de boca aberta. Aquilo é que eram aventuras! Havia reis e guerras e eles sofriam muito e fugiam para o deserto e viviam numa cidade onde havia um castelo muito grande, ou era uma igreja? Bom, toda a gente queria ir para lá e andavam sempre à bulha... era assim uma coisa importante, ‘tás a ver?! Havia um deles que até andava por cima da água do mar, vê lá. Eu sei que aquilo eram histórias, não penses que não sei. Naqueles breves minutos, Juvenal regressava à sua aldeia, coisa que nunca tinha, de facto, feito. Hoje, já não me lembra de nenhuma inteira, só bocados, mas quando para cá vim, sabia-as todas. Fazia cara séria para que a audiência não duvidasse, sem querer saber de ninguém estar a prestar-lhe realmente atenção. Os velhos apenas acenavam vagamente a cabeça enquanto, curvados sobre eles, sorviam os copos de três, segurando-os com ambas as mãos, não fossem eles fugirem-lhes – a freguesia da “Taberna do Menino Jesus” era composta exclusivamente por velhos e por mim: é que mesmo os de menos idade que lá iam, eram já velhos de espírito e corpo.

E de onde vem o nome da taberna, Juvenal? Essa despacha-se num instantinho. Contou uma vez um desses homens, um que tinha uns caracóis de cabelo de cada lado da cara, que o Menino Jesus, quando era novo, foi com as pessoas da aldeia dele numa grande viagem e entrou num tabernáculo, que era como se chamavam as tabernas naquela altura, e vai daí eu pensei: se o Menino Jesus ia a tabernas, a minha só pode ser a dele, não sei se me estás a perceber?! Eu mais ou menos estava, mas antes de lho poder dizer tive de levar umas palmadas nas costas, que a vontade de rir se misturou com o vinho verde à pressão e o engasgo foi sério.

(continua)

18 comentários:

Teresa Durães disse...

eu logo reconheci a taberna como dona de um minhoto aahahahahahh

como diria a minha avó: são porcos e não têm mesmo a noção de higiene.

Linda a tua escrita!!

Teresa Durães disse...

(ena, ena, fui a primeira!!!)

Sofia disse...

E nessaaí que vamos comer a dita bifana? ;)))

A dos porcos e sem higiene é q não percebi bem.Mas devo andar meio distraída.

Eyes wide open disse...

:)

e que continue muito proximamente...!


*

Anónimo disse...

Esta taberna fez-me lembrar a 1.ª vez que fui a taberna do Tio do PP(inho) em Vila Verde (braga), quando entramos lá era tanta mas tanta mosca que até fiquei meia aterdoada ... mas uma isca de bacalhau e um copo de vinho tinto da casa é a perdição do ppl da aldeia, a falta de higiene, o mosquedo, ... não faz diferença. Acho que o hábito faz a vida ;-)
Bjinhos e gostei de te leer.
Aguardo continuação
SS

Gi disse...

Na baixa as tasquinhas eram procuradas não só pelos pastelinhos de bacalhau mas sobretudo pelo sabor das bifanas e das iscas. Não era segredo ... que o segredo do sabor apurado estava na frigideira que ía reduzindo de tamanho na mesma proporção que aumentava a camada de gordura nos bordos. Outro dos segredos era não olhar e sobretudo não pensar. Agora até que marchava uma com uma lambreta. sabes o que é?

beijinhos

mixtu disse...

... e olha que o menino jesus era menino para ir aí comer uma bifana
e sim... nada de higiene... sabe bem é assim...
sem dúvida...
mas tan marcados pelos judeus, podia ser taberna dos judeus, que aliás o menino também era...

abrazo ao 4 de outubro

lélé disse...

Adorei essa do tabernáculo!... Felizmente tenho o bom senso de não beber quando leio os teus textos... Olha se não tivesse! A esta hora já estava roxa!... Não estava à espera deste final de episódio, fartei-me de rir!

a_mais_fofa disse...

Fico à espera da continuação! =)

Alberto Oliveira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
José Pires F. disse...

O segredo é nunca lavar a frigideira, basta ir mantendo o nível do óleo. Conheço uma casa assim na baixa lisboeta, onde, também se servem passarinhos fritos.

Gostei da história, das descrições e do vocabulário, e aguardo a continuação com a curiosidade de quem quer saber o que vai sair daí.

Abraço.

Alberto Oliveira disse...

... o comentário excluido antes do comentário de piresf é meu. Melhor, fui eu que o removi e a explicação é simples. Já tinha escrito seguramente umas quarenta linhas (e quando é assim nunca sei quando vou parar... ) quando o meu amigo Alberto Raminhos me telefonou a perguntar se me tinha esquecido do almoço que tínhamos combinado na tasca do Guedes, que tinha abancado há mais de quarenta e cinco minutos da hora marcada e para fazer tempo já pedira (e marcharam) um caldo verde e umas iscas de vaca, mais um jarrinho de litro, de vinho tinto da casa e estava a fazer olhinhos para uma morcelita preta de arroz, a descansar num prato de cor indefinida -quem sabe por falta de lavagem, em cima do balcão e ao lado de outro prato com "queijos de uvelha frescos", tal como se lia (numa letra infantil desenhada aos saltos), num papel pardo que alguém colocara em cima dos queijos. Descansei o meu amigo Raminhos, removi o texto que estava uma beleza e voei para o tasco. Cheguei há momentos e estou com uma sonolência que não é brinquedo. Não sei se pela dobrada com feijão branco que repeti duas vezes, se pelo carrascão que escorregava de tal modo que nem se dava por ele, a verdade é que já tentei ler este post e não o compreendo. Há momentos em que as letras parecem fugir outros em que saltam... como os saltos das cabras dos tais queijos. Mas gostei do título do texto: "O Trono". Era onde eu devia estar, era, para descansar um pedaço. Mas acho que é mais fácil chegar até à cama... que é já ali... ao longe...

José Pires F. disse...

Voltei para ler a réplica do Legivel.
…que pena o homem estar assim tão turvo.

Gi disse...

Já marchava outra bifana com caldo verde :). Onde está a continuação? :)

Boa semana . Um beijinho

Boop disse...

Essas tabernas são um achado!
Mas relamente é melhor não pensar!
Eu cá quando chego a uma cidade desconhecida... tento saber onde vão comer os "nativos" - geralmente é bom e barato!

;)

Isa e Luis disse...

Olá bom dia,

Fizeste me lembrar as bifanas do Bigodes:))

Espero a continuação.

Beijinho

Isa

APC disse...

Bom... A verdade é que fico desconcertada com a genuinidade que dás às coisas. Nem digo mais... És um escritor e pêras! Aliás, que se lixem as pêras!
Lendo algumas narrativas dos melhores (vou misturá-los: Steinbeck, Hemingway, Kafka, Dostoievski... - puxando pela memória afectiva, estes vieram-me primeiro) nem sempre estou certa de serem melhores. É vero!
Um abraço.
:-)

Sara MM disse...

magnífico! até dá vontade de ir a uma taberna... sujinha q.b.! :o)

(sabes o que foi que me soube melhor que tudo durante todos os enjoos da gravidez? uma bifana encharcada em óleo, feita numa roullote com tanta higiene como uma boa tasca! devemos estar pero do segredo! :oD )

bjss